12 de fevereiro de 2006
Fazer o jogo do terrorismo
por Ana Gomes
Para mim, ateia, religião é ópio. Poderia ridicularizar crentes, deuses ou profetas de qualquer religião, valendo-me da liberdade de expressão. Mas não o faço. Porque seria abusar dela e provocar estupidamente. Porque a tolerância democrática me impõe respeito por quem não pensa como eu. E por simples bom senso: a história mostra que a religião incendeia, porquê atiçar mais conflitualidade?
Marcada, mesmo sem querer, pela matriz judaico-cristã, vivi laicamente na Genebra calvinista, na Londres anglicana, no shinto-budismo de Tóquio, na babilónia nova-iorquina e no maior país muçulmano. E foi na Indonésia - onde colegas egípcios desdenhavam do que chamavam «disco-Islão» - que mais respeito ganhei por quem se assumia como crente: percebi como é, em geral, muito séria e consequente a devoção, como são mais apertados os laços familiares e de entre-ajuda social prescritos religiosamente.
Percebi também como a ignorância do Islão, a insensibilidade e preconceitos de superioridade ocidentais tinham perversas consequências, transformando em agravos de fé ressentimentos políticos e culturais contra colonizadores e apoios externos de regimes opressivos. Indignei-me com líderes políticos e religiosos incapazes de demarcar a sua religião de actos terroristas perpetrados em nome dela; e admirei a coragem de outros que denunciavam o anti-islamismo da Al Qaeda e Bin Laden e o seu principal exportador, o wahabismo saudita.
Foi também na Indonésia que apreendi como é injusto e contraproducente estigmatizar todos os muçulmanos e o Islão pelas interpretações mais reaccionárias deste. Por isso, há meses, no Parlamento Europeu, empenhei-me (e consegui, com apoio socialista) em combater uma tentativa da direita espanhola para incluir num relatório sobre o combate ao terrorismo na UE a noção de "terrorismo islâmico". Que não existe, assim como não existe «terrorismo católico» na Irlanda. Existem, sim, terroristas que se proclamam defensores de religiões e causas respeitáveis para perpetrar ignominiosos crimes.
Os «cartoons» publicados num jornal da extrema-direita racista e xenófoba da Dinamarca lembraram-me as caricaturas nazis contra judeus. Arrepiou-me a displicência do governo de direita daquele país, invocando pretensa neutralidade para recusar distanciar-se de propósitos insultuosos, tornando assim cidadãos e empresas alvo da revolta no mundo islâmico (veja-se, em contraste, o exemplo de demarcacação dos rabinos-chefes de França e Reino Unido) .
Uma revolta de que ainda não conhecemos todas as consequências - e já está a morrer gente. Porque a Dinamarca se tornou a face duma Europa ultrajante para milhões de muçulmanos. Muitos europeus desmemoriados (portugueses incluidos), a pretexto da liberdade de expressão e do laicismo, trataram de empolar o insulto generalizado e fazê-lo galgar fronteiras. Em ominosa sinergia com fundamentalistas que se reclamam do Islão e a quem, nesta conjuntura política, no Irão, Síria, Gaza, Iraque, Paquistão,Afeganistão, Indonésia ou cidades europeias, convem cavalgar a indignação, extremar a violência e aprestar a próxima vaga de ataques terroristas.
Quem se empenha em concretizar a profecia do "choque de civilizações", como os fundamentalistas de todos os quadrantes, deita mão à xenofobia e à ofensa de sentimentos religiosos. Quem o justifica, a qualquer pretexto, inclusivé o da liberdade de expressão, faz objectivamente o jogo dos terroristas.
(publicado no «Courrier Internacional», edição de 10.2.06)
Para mim, ateia, religião é ópio. Poderia ridicularizar crentes, deuses ou profetas de qualquer religião, valendo-me da liberdade de expressão. Mas não o faço. Porque seria abusar dela e provocar estupidamente. Porque a tolerância democrática me impõe respeito por quem não pensa como eu. E por simples bom senso: a história mostra que a religião incendeia, porquê atiçar mais conflitualidade?
Marcada, mesmo sem querer, pela matriz judaico-cristã, vivi laicamente na Genebra calvinista, na Londres anglicana, no shinto-budismo de Tóquio, na babilónia nova-iorquina e no maior país muçulmano. E foi na Indonésia - onde colegas egípcios desdenhavam do que chamavam «disco-Islão» - que mais respeito ganhei por quem se assumia como crente: percebi como é, em geral, muito séria e consequente a devoção, como são mais apertados os laços familiares e de entre-ajuda social prescritos religiosamente.
Percebi também como a ignorância do Islão, a insensibilidade e preconceitos de superioridade ocidentais tinham perversas consequências, transformando em agravos de fé ressentimentos políticos e culturais contra colonizadores e apoios externos de regimes opressivos. Indignei-me com líderes políticos e religiosos incapazes de demarcar a sua religião de actos terroristas perpetrados em nome dela; e admirei a coragem de outros que denunciavam o anti-islamismo da Al Qaeda e Bin Laden e o seu principal exportador, o wahabismo saudita.
Foi também na Indonésia que apreendi como é injusto e contraproducente estigmatizar todos os muçulmanos e o Islão pelas interpretações mais reaccionárias deste. Por isso, há meses, no Parlamento Europeu, empenhei-me (e consegui, com apoio socialista) em combater uma tentativa da direita espanhola para incluir num relatório sobre o combate ao terrorismo na UE a noção de "terrorismo islâmico". Que não existe, assim como não existe «terrorismo católico» na Irlanda. Existem, sim, terroristas que se proclamam defensores de religiões e causas respeitáveis para perpetrar ignominiosos crimes.
Os «cartoons» publicados num jornal da extrema-direita racista e xenófoba da Dinamarca lembraram-me as caricaturas nazis contra judeus. Arrepiou-me a displicência do governo de direita daquele país, invocando pretensa neutralidade para recusar distanciar-se de propósitos insultuosos, tornando assim cidadãos e empresas alvo da revolta no mundo islâmico (veja-se, em contraste, o exemplo de demarcacação dos rabinos-chefes de França e Reino Unido) .
Uma revolta de que ainda não conhecemos todas as consequências - e já está a morrer gente. Porque a Dinamarca se tornou a face duma Europa ultrajante para milhões de muçulmanos. Muitos europeus desmemoriados (portugueses incluidos), a pretexto da liberdade de expressão e do laicismo, trataram de empolar o insulto generalizado e fazê-lo galgar fronteiras. Em ominosa sinergia com fundamentalistas que se reclamam do Islão e a quem, nesta conjuntura política, no Irão, Síria, Gaza, Iraque, Paquistão,Afeganistão, Indonésia ou cidades europeias, convem cavalgar a indignação, extremar a violência e aprestar a próxima vaga de ataques terroristas.
Quem se empenha em concretizar a profecia do "choque de civilizações", como os fundamentalistas de todos os quadrantes, deita mão à xenofobia e à ofensa de sentimentos religiosos. Quem o justifica, a qualquer pretexto, inclusivé o da liberdade de expressão, faz objectivamente o jogo dos terroristas.
(publicado no «Courrier Internacional», edição de 10.2.06)