20 de março de 2006
O discurso
por Vital Moreira
Dos "cinco desafios" políticos que Cavaco Silva enunciou no seu importante discurso de tomada de posse, todos são relativamente consensuais na opinião pública, além de estarem em geral em consonância com os objectivos do actual Governo. De facto, poucos poderão discordar da prioridade ao desenvolvimento económico, à qualificação dos portugueses em matéria educativa e profissional, ao reforço da credibilidade e eficiência do sistema de justiça, à sustentabilidade do sistema de segurança social, à credibilização do nosso sistema político.
O problema está em saber se compete ao Presidente da República não só seleccionar tais prioridades políticas, e não outras possíveis, mas também fazê-lo segundo uma clara orientação política. É certo que se trata de um programa claramente "centrista", incluindo algumas preocupações alinhadas com valores tradicionais da esquerda, como a "melhoria da justiça social, o combate à exclusão, o apoio aos mais desfavorecidos da nossa sociedade", isto para não mencionar a declaração de que a culpa da baixa produtividade da economia nacional "não cabe aos trabalhadores", como quer o preconceito conservador tradicional. Seguramente que, se houve alguém que não gostou do discurso presidencial, foram os nossos ultraliberais, que devem ter visto aí perigosos sinais de intervencionismo estadual e de fidelidade ao modelo social europeu.
Seja como for, há aqui um problema. Na verdade, a função presidencial deveria ter a ver menos com as prioridades estratégicas e com o conteúdo das políticas públicas - é para isso que existem os governos - do que com as práticas e os modos de exercício do poder político. O que deve constituir prioridade nas preocupações presidenciais é o regular funcionamento das instituições, a observância das regras do jogo e dos mecanismos democráticos, o respeito dos direitos das oposições, a transparência e a responsabilidade política, o preenchimento dos requisitos de debate democrático. O Presidente deve ser, acima de tudo, o garante da observância do "due process" democrático. Importa mais velar pela legitimidade do procedimento político do que controlar as políticas públicas, muito menos fazer prevalecer uma agenda política própria. De resto, o Presidente deve estar preparado para conviver com governos de todas as orientações constitucionalmente admissíveis, desde que observem os procedimentos democráticos.
A centralidade da função de garantia ao "due process" democrático não significa nenhuma diminuição da função presidencial, pelo contrário. Trata-se antes de privilegiar o papel mais relevante dessa mesma função. Se há uma passagem onde o Presidente vai ao cerne das suas funções, é aquela onde ele sublinha a sua preocupação com os procedimentos democráticos. "Os agentes políticos" - disse ele - "têm de ser exemplo de cultura de honestidade, de transparência, de responsabilidade, de rigor na utilização dos recursos do Estado, de ética de serviço público, de respeito pela dignidade das pessoas, de cumprimento de promessas feitas." Nesta linha só pode aplaudir-se a sua ênfase na luta contra a corrupção, que seguramente ninguém lhe contestará.
Outra óbvia preocupação presidencial é a busca de consensos políticos, que resulta do apelo à classe política para "juntar esforços para ultrapassar diferenças e fazer obra em comum", acrescentando que há "seguramente domínios onde podem e devem ser procurados entendimentos alargados entre Governo e oposição e mesmo com organizações da nossa sociedade civil".
Ora, fora circunstâncias políticas excepcionais, o próprio de uma democracia não é o consenso e a união das diferentes forças políticas, mas sim a dialéctica entre a maioria e a oposição. Não se pode exigir da maioria que compartilhe com a oposição o seu programa de Governo, nem se exige da oposição que faça "fretes" ao Governo ou que se comprometa com as medidas que ele proponha. No final, a responsabilidade política do Governo só pode ter sentido se ele for o responsável único dos seus êxitos ou fracassos, sem arrastar nesse juízo a oposição. Quando um dos motivos do distanciamento de muita gente em relação à política é não haver diferenças entre os partidos no Governo, não se pode favorecer artificialmente um consensualismo que agrave ainda mais essa sensação de indiferenciação.
É certo que há matérias que, pela sua importância estrutural, devem estar fora do poder da maioria, exigindo um apoio alargado às oposições. Assim se passa, por exemplo, com as leis que definem o funcionamento do próprio sistema político, como as leis relativas aos partidos políticos e ao sistema eleitoral. É justamente por isso que a Constituição exige que tais leis sejam aprovadas por maioria parlamentar de 2/3, maioria de que em princípio nenhum governo monopartidário pode ter num sistema eleitoral proporcional como o nosso. O próprio Presidente da República pode impor, mediante o seu veto, a votação com maioria qualificada de leis em outras matérias constitucionalmente definidas. Mas, fora esses casos, não faz sentido impor à maioria governamental nem à oposição consensos que um ou outro não desejem. O consensualismo "a outrance" não faz parte da filosofia democrática.
A secundarização da essência da democracia como governo da maioria sob controlo da oposição leva o Presidente a defender posições mais do que controversas. A certa altura ele disse que "a escolha dos altos responsáveis não eleitos não pode senão nortear-se exclusivamente por critérios de mérito, onde as considerações político-partidárias não podem contar". Ora, esta formulação só pode compreender-se, ignorando a distinção fundamental entre cargos administrativos e cargos políticos. De facto, há muitos outros cargos políticos de confiança governamental, em que as considerações políticas podem e devem ter lugar. Não faria nenhum sentido que, por exemplo, os governadores civis, ou os presidentes dos institutos públicos, ou os directores regionais dos ministérios não fossem escolhidos tendo em conta a capacidade dos nomeados para levar a cabo as orientações governamentais. E o que se diz do Estado deve valer também a nível regional e a nível local, sem esquecer as nomeações da competência do próprio Presidente da República...
Um dos pontos mais controversos do discurso presidencial é seguramente o que diz respeito à estabilidade política, que parecia um dos pontos adquiridos do pensamento político de Cavaco Silva. Introduzindo algumas nuances assaz equívocas, o novo inquilino de Belém negou à estabilidade política um valor em si mesma (reduzindo-a ao estatuto de "condição") e falou numa indefinida noção de "estabilidade dinâmica", em contraponto com uma indesejada "estabilidade estática".
Ora, numa democracia consolidada, a estabilidade política tem de ser um valor em si mesma, sem prejuízo de ocasionalmente poder ter de ceder perante valores mais altos, como o regular funcionamento das instituições ou a dignidade e seriedade do poder político. Com esta inesperada tergiversação acerca da própria valia da estabilidade política, o Presidente introduziu, ele mesmo, um óbvio factor de instabilidade nas suas relações com o Governo, que não pode deixar de ter sido deliberado. Resta saber se se trata somente um "lip service" prestado aos seus mais impacientes apoiantes à direita, ou também de um aviso à navegação governativa.
No entanto, a meu ver, o principal equívoco na concepção presidencial de Cavaco Silva é o de que o Presidente tem o poder e o dever de se associar ao Governo (ou de chamar o Governo a associar-se a si) na prossecução em comum de certos objectivos políticos, aliás muito vastos. Daí a ideia da "cooperação estratégica" e do "trabalho em comum".
Ora, essa concepção não se afigura facilmente compatível com duas ideias que são básicas no desenho constitucional da figura e do papel presidencial. Primeiro, a função essencial do Presidente é a de regulador, moderador, árbitro e fiscal do funcionamento das instituições e da actividade governativa; segundo, o Presidente não é politicamente responsável perante ninguém, diferentemente do Governo, que é responsável perante o Parlamento, na base do seu programa de governo. Daí que, em vez de uma associação ou intromissão na área governativa, o Presidente da República deve resguardar-se e manter um prudente distanciamento em relação ao Governo.
No momento em que um Governo possa queixar-se com razão de que não pode levar a cabo o seu programa de governo por efeito de indevida interferência presidencial, ou de que se vê forçado a cumprir uma agenda política diferente da sua, então dificilmente se pode sustentar que está a ser observada a separação de poderes, que é a chave da democracia constitucional. No momento em que, por se ter associado à orientação e condução política do Governo, o Presidente da República seja também visto como co-responsável pelos seus êxitos e fracassos, então estará decisivamente inquinada a relação de responsabilidade governativa e a independência e irresponsabilidade política do Presidente.
(Público, terça-feira, 14 de Março de 2006)
Dos "cinco desafios" políticos que Cavaco Silva enunciou no seu importante discurso de tomada de posse, todos são relativamente consensuais na opinião pública, além de estarem em geral em consonância com os objectivos do actual Governo. De facto, poucos poderão discordar da prioridade ao desenvolvimento económico, à qualificação dos portugueses em matéria educativa e profissional, ao reforço da credibilidade e eficiência do sistema de justiça, à sustentabilidade do sistema de segurança social, à credibilização do nosso sistema político.
O problema está em saber se compete ao Presidente da República não só seleccionar tais prioridades políticas, e não outras possíveis, mas também fazê-lo segundo uma clara orientação política. É certo que se trata de um programa claramente "centrista", incluindo algumas preocupações alinhadas com valores tradicionais da esquerda, como a "melhoria da justiça social, o combate à exclusão, o apoio aos mais desfavorecidos da nossa sociedade", isto para não mencionar a declaração de que a culpa da baixa produtividade da economia nacional "não cabe aos trabalhadores", como quer o preconceito conservador tradicional. Seguramente que, se houve alguém que não gostou do discurso presidencial, foram os nossos ultraliberais, que devem ter visto aí perigosos sinais de intervencionismo estadual e de fidelidade ao modelo social europeu.
Seja como for, há aqui um problema. Na verdade, a função presidencial deveria ter a ver menos com as prioridades estratégicas e com o conteúdo das políticas públicas - é para isso que existem os governos - do que com as práticas e os modos de exercício do poder político. O que deve constituir prioridade nas preocupações presidenciais é o regular funcionamento das instituições, a observância das regras do jogo e dos mecanismos democráticos, o respeito dos direitos das oposições, a transparência e a responsabilidade política, o preenchimento dos requisitos de debate democrático. O Presidente deve ser, acima de tudo, o garante da observância do "due process" democrático. Importa mais velar pela legitimidade do procedimento político do que controlar as políticas públicas, muito menos fazer prevalecer uma agenda política própria. De resto, o Presidente deve estar preparado para conviver com governos de todas as orientações constitucionalmente admissíveis, desde que observem os procedimentos democráticos.
A centralidade da função de garantia ao "due process" democrático não significa nenhuma diminuição da função presidencial, pelo contrário. Trata-se antes de privilegiar o papel mais relevante dessa mesma função. Se há uma passagem onde o Presidente vai ao cerne das suas funções, é aquela onde ele sublinha a sua preocupação com os procedimentos democráticos. "Os agentes políticos" - disse ele - "têm de ser exemplo de cultura de honestidade, de transparência, de responsabilidade, de rigor na utilização dos recursos do Estado, de ética de serviço público, de respeito pela dignidade das pessoas, de cumprimento de promessas feitas." Nesta linha só pode aplaudir-se a sua ênfase na luta contra a corrupção, que seguramente ninguém lhe contestará.
Outra óbvia preocupação presidencial é a busca de consensos políticos, que resulta do apelo à classe política para "juntar esforços para ultrapassar diferenças e fazer obra em comum", acrescentando que há "seguramente domínios onde podem e devem ser procurados entendimentos alargados entre Governo e oposição e mesmo com organizações da nossa sociedade civil".
Ora, fora circunstâncias políticas excepcionais, o próprio de uma democracia não é o consenso e a união das diferentes forças políticas, mas sim a dialéctica entre a maioria e a oposição. Não se pode exigir da maioria que compartilhe com a oposição o seu programa de Governo, nem se exige da oposição que faça "fretes" ao Governo ou que se comprometa com as medidas que ele proponha. No final, a responsabilidade política do Governo só pode ter sentido se ele for o responsável único dos seus êxitos ou fracassos, sem arrastar nesse juízo a oposição. Quando um dos motivos do distanciamento de muita gente em relação à política é não haver diferenças entre os partidos no Governo, não se pode favorecer artificialmente um consensualismo que agrave ainda mais essa sensação de indiferenciação.
É certo que há matérias que, pela sua importância estrutural, devem estar fora do poder da maioria, exigindo um apoio alargado às oposições. Assim se passa, por exemplo, com as leis que definem o funcionamento do próprio sistema político, como as leis relativas aos partidos políticos e ao sistema eleitoral. É justamente por isso que a Constituição exige que tais leis sejam aprovadas por maioria parlamentar de 2/3, maioria de que em princípio nenhum governo monopartidário pode ter num sistema eleitoral proporcional como o nosso. O próprio Presidente da República pode impor, mediante o seu veto, a votação com maioria qualificada de leis em outras matérias constitucionalmente definidas. Mas, fora esses casos, não faz sentido impor à maioria governamental nem à oposição consensos que um ou outro não desejem. O consensualismo "a outrance" não faz parte da filosofia democrática.
A secundarização da essência da democracia como governo da maioria sob controlo da oposição leva o Presidente a defender posições mais do que controversas. A certa altura ele disse que "a escolha dos altos responsáveis não eleitos não pode senão nortear-se exclusivamente por critérios de mérito, onde as considerações político-partidárias não podem contar". Ora, esta formulação só pode compreender-se, ignorando a distinção fundamental entre cargos administrativos e cargos políticos. De facto, há muitos outros cargos políticos de confiança governamental, em que as considerações políticas podem e devem ter lugar. Não faria nenhum sentido que, por exemplo, os governadores civis, ou os presidentes dos institutos públicos, ou os directores regionais dos ministérios não fossem escolhidos tendo em conta a capacidade dos nomeados para levar a cabo as orientações governamentais. E o que se diz do Estado deve valer também a nível regional e a nível local, sem esquecer as nomeações da competência do próprio Presidente da República...
Um dos pontos mais controversos do discurso presidencial é seguramente o que diz respeito à estabilidade política, que parecia um dos pontos adquiridos do pensamento político de Cavaco Silva. Introduzindo algumas nuances assaz equívocas, o novo inquilino de Belém negou à estabilidade política um valor em si mesma (reduzindo-a ao estatuto de "condição") e falou numa indefinida noção de "estabilidade dinâmica", em contraponto com uma indesejada "estabilidade estática".
Ora, numa democracia consolidada, a estabilidade política tem de ser um valor em si mesma, sem prejuízo de ocasionalmente poder ter de ceder perante valores mais altos, como o regular funcionamento das instituições ou a dignidade e seriedade do poder político. Com esta inesperada tergiversação acerca da própria valia da estabilidade política, o Presidente introduziu, ele mesmo, um óbvio factor de instabilidade nas suas relações com o Governo, que não pode deixar de ter sido deliberado. Resta saber se se trata somente um "lip service" prestado aos seus mais impacientes apoiantes à direita, ou também de um aviso à navegação governativa.
No entanto, a meu ver, o principal equívoco na concepção presidencial de Cavaco Silva é o de que o Presidente tem o poder e o dever de se associar ao Governo (ou de chamar o Governo a associar-se a si) na prossecução em comum de certos objectivos políticos, aliás muito vastos. Daí a ideia da "cooperação estratégica" e do "trabalho em comum".
Ora, essa concepção não se afigura facilmente compatível com duas ideias que são básicas no desenho constitucional da figura e do papel presidencial. Primeiro, a função essencial do Presidente é a de regulador, moderador, árbitro e fiscal do funcionamento das instituições e da actividade governativa; segundo, o Presidente não é politicamente responsável perante ninguém, diferentemente do Governo, que é responsável perante o Parlamento, na base do seu programa de governo. Daí que, em vez de uma associação ou intromissão na área governativa, o Presidente da República deve resguardar-se e manter um prudente distanciamento em relação ao Governo.
No momento em que um Governo possa queixar-se com razão de que não pode levar a cabo o seu programa de governo por efeito de indevida interferência presidencial, ou de que se vê forçado a cumprir uma agenda política diferente da sua, então dificilmente se pode sustentar que está a ser observada a separação de poderes, que é a chave da democracia constitucional. No momento em que, por se ter associado à orientação e condução política do Governo, o Presidente da República seja também visto como co-responsável pelos seus êxitos e fracassos, então estará decisivamente inquinada a relação de responsabilidade governativa e a independência e irresponsabilidade política do Presidente.
(Público, terça-feira, 14 de Março de 2006)