13 de abril de 2006
É desta?
Por Vital Moreira
Se existem importantes reformas políticas por realizar, entre elas conta-se seguramente a do governo das universidades. Concluída a implementação legislativa do "processo de Bolonha", o ministro da Ciência e do Ensino Superior, J. Mariano Gago, tem agora a oportunidade de avançar com aquela reforma, que só perde pela demora. Há mais de uma década em discussão, com vários estudos e relatórios produzidos e publicados, é altura de a levar a cabo, assumindo as competentes opções políticas. Apesar de se tratar de uma iniciativa presumivelmente árdua e susceptível de levantar forte contestação, nem por isso ela pode ficar esquecida. Pelo contrário. Quanto mais adiada, mais difícil ela se torna.
A reforma do governo das universidades - e o mesmo pode ser dito para as instituições de ensino superior em geral - suscita essencialmente três problemas, a saber: a revisão da relação do Estado com as instituições do ensino superior público; a reformulação do sistema de órgãos governativos das universidades; e a criação de mecanismos de responsabilidade externa das universidades perante a colectividade, em geral, e o Estado, em particular.
As relações entre o governo e as universidades oscilam entre o controleirismo mais descabido e o laxismo mais extremo. Na primeira situação está, por exemplo, a gestão financeira, onde continuam a existir numerosos casos de autorização ministerial. Na segunda situação está, por exemplo, a criação de cursos e de graus académicos, onde o Governo tem abdicado em geral de qualquer intervenção, com o conhecido resultado da proliferação de cursos, sem paralelo noutro país, muitas vezes com duplicações ou triplicações perfeitamente incompreensíveis. O que se deixou fazer com o apagamento da fronteira entre o ensino politécnico e o ensino universitário condena só por si os sucessivos governos que assistiram sem qualquer medida correctiva a tal evolução, caracterizada pela "universitarização" do ensino politécnico e pela "politecnização" das universidades. Com algumas excepções (Medicina, Direito, Arquitectura, e poucos cursos mais), a generalidade das formações são hoje duplicadas indiferenciadamente pelos dois sistemas de ensino superior, que deveriam proporcionar ensino de diferente natureza e de distinta vocação.
Neste aspecto, como noutros, o problema do ensino superior português não é de autonomia a menos e de Estado a mais, mas justamente o inverso, como referiu recentemente, com toda a razão nesse ponto, o reitor da Universidade de Coimbra. Recuperar a responsabilidade do Estado no planeamento e na coordenação do ensino superior (bem como no seu financiamento, bem entendido) é uma tarefa urgente e inadiável.
O segundo tema da reforma universitária tem a ver especificamente com a questão do sistema de governo. É impossível dizer algo de novo no que respeita ao que está mal no actual estado de coisas nessa área. Primeiro, falta separação de poderes e de responsabilidades, nomeadamente entre órgãos deliberativos e de controlo e órgãos executivos. Segundo, os funcionários e os alunos gozam de uma intervenção desmesurada na gestão universitária, sem paralelo em outros países. Assim, se os funcionários públicos não participam em geral na gestão dos respectivos serviços da administração pública, por que é que hão-de ter esse privilégio nas universidades, ainda por cima em alguns casos com poderes decisivos, como sucede em muitas faculdades? E que razão há para que os estudantes, com uma passagem transitória pelas escolas, tenham o peso determinante que têm na generalidades das instituições, ao abrigo de um injustificado princípio de paridade, em temos tais que nada pode ser feito contra a sua oposição?
Terceiro, o sistema de governo universitário é endógeno e fechado sobre si mesmo, sem suficiente abertura ao exterior, ou seja, à colectividade em geral, e aos stakeholders externos, em especial. A lei deixa pequena margem para a intervenção de elementos externos às instituições, situação agravada pela maior parte dos estatutos universitários, que a reduziram a uma caricatura.
Neste domínio, o ponto porventura mais susceptível de levantar resistências dos interessados, nomeadamente das organizações estudantis, é o da composição dos órgãos de governo universitário. No entanto, não podem restar grandes margens para compromissos. Afastar os funcionários da gestão universitária, reduzir substancialmente o peso dos estudantes, aumentar a participação de elementos exteriores, eis o que não pode deixar de constituir a linha directora da revisão da actual "constituição universitária".
O terceiro tópico essencial de qualquer reforma da gestão da universidade hoje em dia tem a ver com a falta de mecanismos eficazes de accountability perante o exterior. Nesta questão tenho defendido, desde há muitos anos, a criação de um conselho de supervisão em cada instituição, constituído por representantes do Estado e das autarquias locais interessadas, das ordens e sindicatos profissionais e das organizações empresariais, das associações de estudantes e das associações de antigos estudantes, etc., com funções de acompanhamento e controlo da gestão da instituição, incluindo a apreciação das linhas de orientação estratégica, dos programas de desenvolvimento e de internacionalização e dos planos anuais de actividades, bem como dos relatórios anuais relativos à actividade desenvolvida. Existem, porém, várias outras soluções alternativas, com preocupações afins. O importante é pôr fim à actual insulação e défice de responsabilidade externa da governação universitária.
Seria ilusório pensar que esta reforma da gestão universitária pode ser efectuada sem dificuldade e sem uma forte oposição. Foi seguramente a antecipação de umas e de outra que até agora impediu que ela avançasse. Mas a situação não pode prosseguir indefinidamente e o actual Governo já mostrou à saciedade que não teme as resistências suscitada pelas reformas, quando estas são necessárias. É altura de lançar mãos à obra.
[Público, 3ª feira, 11 de Abril de 2006]
Se existem importantes reformas políticas por realizar, entre elas conta-se seguramente a do governo das universidades. Concluída a implementação legislativa do "processo de Bolonha", o ministro da Ciência e do Ensino Superior, J. Mariano Gago, tem agora a oportunidade de avançar com aquela reforma, que só perde pela demora. Há mais de uma década em discussão, com vários estudos e relatórios produzidos e publicados, é altura de a levar a cabo, assumindo as competentes opções políticas. Apesar de se tratar de uma iniciativa presumivelmente árdua e susceptível de levantar forte contestação, nem por isso ela pode ficar esquecida. Pelo contrário. Quanto mais adiada, mais difícil ela se torna.
A reforma do governo das universidades - e o mesmo pode ser dito para as instituições de ensino superior em geral - suscita essencialmente três problemas, a saber: a revisão da relação do Estado com as instituições do ensino superior público; a reformulação do sistema de órgãos governativos das universidades; e a criação de mecanismos de responsabilidade externa das universidades perante a colectividade, em geral, e o Estado, em particular.
As relações entre o governo e as universidades oscilam entre o controleirismo mais descabido e o laxismo mais extremo. Na primeira situação está, por exemplo, a gestão financeira, onde continuam a existir numerosos casos de autorização ministerial. Na segunda situação está, por exemplo, a criação de cursos e de graus académicos, onde o Governo tem abdicado em geral de qualquer intervenção, com o conhecido resultado da proliferação de cursos, sem paralelo noutro país, muitas vezes com duplicações ou triplicações perfeitamente incompreensíveis. O que se deixou fazer com o apagamento da fronteira entre o ensino politécnico e o ensino universitário condena só por si os sucessivos governos que assistiram sem qualquer medida correctiva a tal evolução, caracterizada pela "universitarização" do ensino politécnico e pela "politecnização" das universidades. Com algumas excepções (Medicina, Direito, Arquitectura, e poucos cursos mais), a generalidade das formações são hoje duplicadas indiferenciadamente pelos dois sistemas de ensino superior, que deveriam proporcionar ensino de diferente natureza e de distinta vocação.
Neste aspecto, como noutros, o problema do ensino superior português não é de autonomia a menos e de Estado a mais, mas justamente o inverso, como referiu recentemente, com toda a razão nesse ponto, o reitor da Universidade de Coimbra. Recuperar a responsabilidade do Estado no planeamento e na coordenação do ensino superior (bem como no seu financiamento, bem entendido) é uma tarefa urgente e inadiável.
O segundo tema da reforma universitária tem a ver especificamente com a questão do sistema de governo. É impossível dizer algo de novo no que respeita ao que está mal no actual estado de coisas nessa área. Primeiro, falta separação de poderes e de responsabilidades, nomeadamente entre órgãos deliberativos e de controlo e órgãos executivos. Segundo, os funcionários e os alunos gozam de uma intervenção desmesurada na gestão universitária, sem paralelo em outros países. Assim, se os funcionários públicos não participam em geral na gestão dos respectivos serviços da administração pública, por que é que hão-de ter esse privilégio nas universidades, ainda por cima em alguns casos com poderes decisivos, como sucede em muitas faculdades? E que razão há para que os estudantes, com uma passagem transitória pelas escolas, tenham o peso determinante que têm na generalidades das instituições, ao abrigo de um injustificado princípio de paridade, em temos tais que nada pode ser feito contra a sua oposição?
Terceiro, o sistema de governo universitário é endógeno e fechado sobre si mesmo, sem suficiente abertura ao exterior, ou seja, à colectividade em geral, e aos stakeholders externos, em especial. A lei deixa pequena margem para a intervenção de elementos externos às instituições, situação agravada pela maior parte dos estatutos universitários, que a reduziram a uma caricatura.
Neste domínio, o ponto porventura mais susceptível de levantar resistências dos interessados, nomeadamente das organizações estudantis, é o da composição dos órgãos de governo universitário. No entanto, não podem restar grandes margens para compromissos. Afastar os funcionários da gestão universitária, reduzir substancialmente o peso dos estudantes, aumentar a participação de elementos exteriores, eis o que não pode deixar de constituir a linha directora da revisão da actual "constituição universitária".
O terceiro tópico essencial de qualquer reforma da gestão da universidade hoje em dia tem a ver com a falta de mecanismos eficazes de accountability perante o exterior. Nesta questão tenho defendido, desde há muitos anos, a criação de um conselho de supervisão em cada instituição, constituído por representantes do Estado e das autarquias locais interessadas, das ordens e sindicatos profissionais e das organizações empresariais, das associações de estudantes e das associações de antigos estudantes, etc., com funções de acompanhamento e controlo da gestão da instituição, incluindo a apreciação das linhas de orientação estratégica, dos programas de desenvolvimento e de internacionalização e dos planos anuais de actividades, bem como dos relatórios anuais relativos à actividade desenvolvida. Existem, porém, várias outras soluções alternativas, com preocupações afins. O importante é pôr fim à actual insulação e défice de responsabilidade externa da governação universitária.
Seria ilusório pensar que esta reforma da gestão universitária pode ser efectuada sem dificuldade e sem uma forte oposição. Foi seguramente a antecipação de umas e de outra que até agora impediu que ela avançasse. Mas a situação não pode prosseguir indefinidamente e o actual Governo já mostrou à saciedade que não teme as resistências suscitada pelas reformas, quando estas são necessárias. É altura de lançar mãos à obra.
[Público, 3ª feira, 11 de Abril de 2006]