23 de abril de 2006
Escola pública e interesses privados
Por Vital Moreira
Entre as coisas em que a direita conservadora tradicional e a direita neoliberal convergem conta-se seguramente a hostilidade à escola pública e o desejo de ver o Estado a pagar as escolas privadas. Compreendem-se os seus objectivos e o seu afã. Já não tem a mínima justificação a sua pretensão de impor ao Estado uma tal obrigação em nome de um entendimento propositadamente abusivo da liberdade de ensino.
No nosso sistema constitucional, a escola pública é um direito de todos e uma obrigação do Estado; e a escola privada é uma liberdade de todos, que o Estado assegura e respeita. A liberdade de criação de escolas particulares, bem como liberdade de as frequentar, está inteiramente garantido a todos os interessados, incluindo as confissões religiosas. Sendo o ensino básico constitucionalmente obrigatório, não existe porém nenhuma obrigatoriedade de frequência da escola pública; o ensino das escolas privadas tem a mesma valia das escolas públicas, verificados certos requisitos. Sob o ponto de vista institucional, portanto, a liberdade de ensino não sofre entre nós nenhuma limitação.
Também na sua vertente de liberdade individual de aprender e de ensinar a liberdade de ensino está plenamente garantida na escola pública. Ao contrário das escolas privadas, o Estado não pode programar o ensino de acordo com linhas ideológicas ou religiosas. Todas as religiões têm direito de acesso à escola pública para ministrar ensino religioso aos seus seguidores. A escola pública é por definição constitucional e legal um espaço de liberdade e de pluralismo ideológico. Por isso, invocar a liberdade de ensino para promover a escola privada contra a escola pública é, neste aspecto, verdadeiramente contraditório. Na verdade, só a escola pública pode garantir essa vertente da liberdade de ensino.
Ao contrário do que defendem os campeões do ensino privado, não existe nenhuma obrigação constitucional nem legal do Estado de custear a frequência da escola privadas, seja mediante o financiamento directo às escolas, seja mediante o financiamento individual dos alunos, por meio do chamado "cheque ensino". A única obrigação constitucional do Estado é para com a escola pública, cuja frequência deve ser proporcionada a toda a gente em condições de qualidade e de igualdade. É evidente que constitucionalmente nada impede o Estado de subsidiar o ensino privado, desde que isso não ponha em causa os recursos necessários para manter e desenvolver a escola pública. Aliás, os gastos do Estado com o ensino privado são tudo menos despiciendos, se se contabilizarem as despesas com os "contratos de associação", os subsídios a instalações, equipamentos e formação, o financiamento da acção social escolar do ensino superior particular, as isenções fiscais dos estabelecimentos de ensino e, last but not the least, a considerável despesa fiscal representada pelas generosas deduções dos encargos com a educação em sede de imposto de rendimento pessoal. Mas uma coisa é a faculdade política de financiar o ensino particular, outra coisa é ficcionar uma obrigação de financiamento, em pé de igualdade com o ensino público, em nome da liberdade de ensino das escolas privadas, que ninguém questiona.
Sob o ponto de vista constitucional e legal, a pretensão de obrigar o Estado a financiar a frequência das escolas privadas não tem nenhuma viabilidade. Os tribunais competentes têm-se encarregado de mostrar a sua falta de fundamento. Independentemente porém das questões jurídicas, há todas as razões para contestar o financiamento público do ensino privado nos termos pretendidos. Primeiro, sendo os recursos públicos escassos, os gastos com o ensino privado só podem afectar a capacidade do Estado para zelar pelo ensino público, que, esse sim, constitui uma responsabilidade constitucional sua. Segundo, o financiamento da frequência de escolas privadas traduzir-se-ia num subsídio às camadas sociais mais abastadas para frequentar as escolas privadas de elite, desse modo fomentando o aumento da desigualdade de oportunidades no campo do ensino. Terceiro, os principais beneficiários do financiamento público seriam os grupos sociais mais favorecidos e os grupos religiosos mais activistas, contribuindo assim para fomentar as escolas confessionais e ideologicamente definidas. Quarto, e mais importante, o financiamento público do ensino privado arrastaria inexoravelmente uma tendência para restringir a universalidade e o pluralismo social e cultural da escola pública, com as inevitáveis repercussões em matéria de criação de escolas de acordo com divisões sociais, religiosa e étnicas.
O financiamento público do ensino privado contraria radicalmente o modelo republicano da escola pública, como garantia de serviço público de ensino universal, interclassista e multicultural, como instância de socialização e de integração cívica, de igualdade de oportunidades, de não discriminação social na esfera do ensino e de coesão económica e social. No dia em que o sistema escolar reproduzisse as diversas clivagens sociais, a escola teria deixado de ser um factor de integração cultural e de coesão social, para ser um instrumento de reprodução dessas divisões e, mesmo, de criação de um apartheid religioso, étnico e cultural.
O ensino público básico e secundário (e, em grande medida, o superior) é gratuito para os utentes, sendo pago por meio do Orçamento do Estado - ou seja, pelos impostos - e não por taxas de frequência, que os utentes pudessem deixar de pagar, se preferissem não frequentar o ensino público. Quem não quiser beneficiar do ensino público não pode invocar essa preferência para reivindicar o pagamento público do ensino privado ou uma isenção de pagamento do ensino público. Os que frequentam ou desejam frequentar escolas privadas gozam dessa liberdade, mas não têm mais direito a ser financiados pelo erário público do que os que escolhem clínicas privadas em vez de hospitais do SNS ou sistemas complementares de pensões, em complemento do sistema público de Segurança Social, ou esquemas de segurança privada, em substituição dos meios de segurança pública.
Porventura nos dias de hoje, em que a questão do sistema económico passou a ser relativamente pacífica e a relação entre o Estado e a economia também não suscita grandes clivagens entre a esquerda e a direita, nada distingue tanto as posições políticas como a atitude em relação aos serviços públicos, em geral, e ao serviço público de ensino, em especial. A questão essencial é a de saber se queremos manter serviços públicos de vocação universal, essencialmente gratuitos para os utentes e pagos mediante impostos (ou seguros públicos obrigatórios), ou se vamos transformar os serviços públicos em serviços residuais e subsidiários, de qualidade mediana ou simplesmente sofrível, para quem não pode suportar os custos de serviços privativos de qualidade superior.
É evidente que nesta matéria não são só os valores conservadores e neoliberais que "puxam" pelo ensino privado contra a escola pública. Sob o ponto de vista dos interesses pessoais e de grupo, todas as elites sociais e políticas (mesmo à esquerda) prefeririam tirar partido das vantagens dos serviços de saúde e de ensino privado subsidiados pelo Estado, autodispensando-se de financiar os sistemas públicos destinados às massas. Por isso, nesta matéria só valores e convicções políticas e ideológicas é que podem salvaguardar a herança incontornável do Estado social e dos serviços públicos universais.
(Público, Terça-feira, 18 de Abril de 2006)
Entre as coisas em que a direita conservadora tradicional e a direita neoliberal convergem conta-se seguramente a hostilidade à escola pública e o desejo de ver o Estado a pagar as escolas privadas. Compreendem-se os seus objectivos e o seu afã. Já não tem a mínima justificação a sua pretensão de impor ao Estado uma tal obrigação em nome de um entendimento propositadamente abusivo da liberdade de ensino.
No nosso sistema constitucional, a escola pública é um direito de todos e uma obrigação do Estado; e a escola privada é uma liberdade de todos, que o Estado assegura e respeita. A liberdade de criação de escolas particulares, bem como liberdade de as frequentar, está inteiramente garantido a todos os interessados, incluindo as confissões religiosas. Sendo o ensino básico constitucionalmente obrigatório, não existe porém nenhuma obrigatoriedade de frequência da escola pública; o ensino das escolas privadas tem a mesma valia das escolas públicas, verificados certos requisitos. Sob o ponto de vista institucional, portanto, a liberdade de ensino não sofre entre nós nenhuma limitação.
Também na sua vertente de liberdade individual de aprender e de ensinar a liberdade de ensino está plenamente garantida na escola pública. Ao contrário das escolas privadas, o Estado não pode programar o ensino de acordo com linhas ideológicas ou religiosas. Todas as religiões têm direito de acesso à escola pública para ministrar ensino religioso aos seus seguidores. A escola pública é por definição constitucional e legal um espaço de liberdade e de pluralismo ideológico. Por isso, invocar a liberdade de ensino para promover a escola privada contra a escola pública é, neste aspecto, verdadeiramente contraditório. Na verdade, só a escola pública pode garantir essa vertente da liberdade de ensino.
Ao contrário do que defendem os campeões do ensino privado, não existe nenhuma obrigação constitucional nem legal do Estado de custear a frequência da escola privadas, seja mediante o financiamento directo às escolas, seja mediante o financiamento individual dos alunos, por meio do chamado "cheque ensino". A única obrigação constitucional do Estado é para com a escola pública, cuja frequência deve ser proporcionada a toda a gente em condições de qualidade e de igualdade. É evidente que constitucionalmente nada impede o Estado de subsidiar o ensino privado, desde que isso não ponha em causa os recursos necessários para manter e desenvolver a escola pública. Aliás, os gastos do Estado com o ensino privado são tudo menos despiciendos, se se contabilizarem as despesas com os "contratos de associação", os subsídios a instalações, equipamentos e formação, o financiamento da acção social escolar do ensino superior particular, as isenções fiscais dos estabelecimentos de ensino e, last but not the least, a considerável despesa fiscal representada pelas generosas deduções dos encargos com a educação em sede de imposto de rendimento pessoal. Mas uma coisa é a faculdade política de financiar o ensino particular, outra coisa é ficcionar uma obrigação de financiamento, em pé de igualdade com o ensino público, em nome da liberdade de ensino das escolas privadas, que ninguém questiona.
Sob o ponto de vista constitucional e legal, a pretensão de obrigar o Estado a financiar a frequência das escolas privadas não tem nenhuma viabilidade. Os tribunais competentes têm-se encarregado de mostrar a sua falta de fundamento. Independentemente porém das questões jurídicas, há todas as razões para contestar o financiamento público do ensino privado nos termos pretendidos. Primeiro, sendo os recursos públicos escassos, os gastos com o ensino privado só podem afectar a capacidade do Estado para zelar pelo ensino público, que, esse sim, constitui uma responsabilidade constitucional sua. Segundo, o financiamento da frequência de escolas privadas traduzir-se-ia num subsídio às camadas sociais mais abastadas para frequentar as escolas privadas de elite, desse modo fomentando o aumento da desigualdade de oportunidades no campo do ensino. Terceiro, os principais beneficiários do financiamento público seriam os grupos sociais mais favorecidos e os grupos religiosos mais activistas, contribuindo assim para fomentar as escolas confessionais e ideologicamente definidas. Quarto, e mais importante, o financiamento público do ensino privado arrastaria inexoravelmente uma tendência para restringir a universalidade e o pluralismo social e cultural da escola pública, com as inevitáveis repercussões em matéria de criação de escolas de acordo com divisões sociais, religiosa e étnicas.
O financiamento público do ensino privado contraria radicalmente o modelo republicano da escola pública, como garantia de serviço público de ensino universal, interclassista e multicultural, como instância de socialização e de integração cívica, de igualdade de oportunidades, de não discriminação social na esfera do ensino e de coesão económica e social. No dia em que o sistema escolar reproduzisse as diversas clivagens sociais, a escola teria deixado de ser um factor de integração cultural e de coesão social, para ser um instrumento de reprodução dessas divisões e, mesmo, de criação de um apartheid religioso, étnico e cultural.
O ensino público básico e secundário (e, em grande medida, o superior) é gratuito para os utentes, sendo pago por meio do Orçamento do Estado - ou seja, pelos impostos - e não por taxas de frequência, que os utentes pudessem deixar de pagar, se preferissem não frequentar o ensino público. Quem não quiser beneficiar do ensino público não pode invocar essa preferência para reivindicar o pagamento público do ensino privado ou uma isenção de pagamento do ensino público. Os que frequentam ou desejam frequentar escolas privadas gozam dessa liberdade, mas não têm mais direito a ser financiados pelo erário público do que os que escolhem clínicas privadas em vez de hospitais do SNS ou sistemas complementares de pensões, em complemento do sistema público de Segurança Social, ou esquemas de segurança privada, em substituição dos meios de segurança pública.
Porventura nos dias de hoje, em que a questão do sistema económico passou a ser relativamente pacífica e a relação entre o Estado e a economia também não suscita grandes clivagens entre a esquerda e a direita, nada distingue tanto as posições políticas como a atitude em relação aos serviços públicos, em geral, e ao serviço público de ensino, em especial. A questão essencial é a de saber se queremos manter serviços públicos de vocação universal, essencialmente gratuitos para os utentes e pagos mediante impostos (ou seguros públicos obrigatórios), ou se vamos transformar os serviços públicos em serviços residuais e subsidiários, de qualidade mediana ou simplesmente sofrível, para quem não pode suportar os custos de serviços privativos de qualidade superior.
É evidente que nesta matéria não são só os valores conservadores e neoliberais que "puxam" pelo ensino privado contra a escola pública. Sob o ponto de vista dos interesses pessoais e de grupo, todas as elites sociais e políticas (mesmo à esquerda) prefeririam tirar partido das vantagens dos serviços de saúde e de ensino privado subsidiados pelo Estado, autodispensando-se de financiar os sistemas públicos destinados às massas. Por isso, nesta matéria só valores e convicções políticas e ideológicas é que podem salvaguardar a herança incontornável do Estado social e dos serviços públicos universais.
(Público, Terça-feira, 18 de Abril de 2006)