17 de abril de 2006
A India, o Irão e a bomba
por Ana Gomes (publicado no EXPRESSO em 1.4.2006)
A coluna de opinião do Embaixador José Cutileiro no "Expresso" de 11 de Março último - 'A Índia, o Irão e a bomba' - merece resposta. É chocante a displicência do autor em relação ao perigo da proliferação nuclear e à erosão do edifício normativo construído com base no Tratado de Não Proliferação Nuclear (NPT), que resultam do recente (e indecente e contra-producente) acordo nuclear entre a Índia e os EUA.
O autor engana-se quando diz que "fora do Tratado fabricam armas nucleares, além da Índia, o Paquistão e Israel que não foram ostracizados por isso." A combinação das regras do NPT, da legislação interna dos EUA e das regras informais do Nuclear Suppliers Group (NSG) têm limitado seriamente a capacidade daqueles países de produzir armas nucleares em grande número e de satisfazer ao mesmo tempo as suas necessidades de energia pela via nuclear. O caso da Índia é paradigmático: começava a sofrer de asfixia energética por ser incapaz de adquirir legalmente suficiente combustível nuclear para alimentar os seus programas nucleares civis e militares.
Nesse sentido, o acordo negociado pela Administração Bush, ao abrir as portas para a venda de combustível nuclear, salva a Índia e coloca-a numa situação sui generis: se o acordo receber o aval do Congresso americano (e espero que não, quero crer que o bom-senso prevalecerá), Nova Delhi terá todas as vantagens de uma potência nuclear legal, sem ficar sujeita (como é o caso dos EUA, da Rússia, da República Popular da China, do Reino Unido e da França) aos compromissos legais decorrentes do NPT, como as obrigações de reduzir gradualmente os seus arsenais nucleares e de submeter a totalidade dos seus programas nucleares - civis e militares - a inspecções regulares por parte da Agência Internacional de Energia Atómica. Para além disso, todas as potências nucleares pelo menos assinaram (os EUA ainda persistem em não ter ratificado) o Tratado contra Testes Nucleares e comprometeram-se a pôr fim à produção de plutónio e de urânio enriquecido para fins militares. Ora, nada disto é exigido à Índia.
E é este o problema principal: o acordo nuclear entre EUA e Índia é um tremendo desincentivo ao cumprimento das regras que orientam a cooperação nuclear entre Estados e que constituem a principal barreira contra a proliferação em cascata que todos tememos (menos, com certeza, o Dr. José Cutileiro). Por exemplo, como explicar ao Brasil, outra "democracia decente e amante da liberdade", que não tem o direito a adquirir um programa nuclear para fins militares? E como impedir que a China venha propor um regime de excepção semelhante para o Paquistão?
São assustadoramente vagos os conceitos que o Dr. José Cutileiro usa para identificar quais os Estados que devem cumprir o Direito Internacional. Segundo ele, doravante as "atitudes para com [novas potências nucleares] serão determinadas por vários factores, sendo os mais importantes a natureza do sistema político interno e o teor do relacionamento internacional do país." Sabemos que os únicos Estados que ainda não assinaram o NPT são Israel, a Índia e o Paquistão. Logicamente, qualquer 'nova potência' nuclear terá de violar o NPT para o ser. O que significa que o Dr. José Cutileiro acredita que o NPT deve ser aplicado selectivamente, de acordo com critérios subjectivos e impossíveis de universalizar.
Dividindo o mundo em 'bons' (que devem ter a bomba) e 'maus' (que devem cumprir o Direito Internacional), esquece o Embaixador Cutileiro as implicações de outro factor relevante para avaliar o acordo India-EUA: as vantagens económicas da venda de combustível nuclear. Como explicou Condoleezza Rice, em artigo do passado dia 13 de Março no "Washington Post", se apenas dois dos oito reactores nucleares que a Índia precisa forem comprados aos EUA, isso "representará milhares de novos empregos para trabalhadores americanos". O Presidente Chirac, que não sofre de excesso de escrúpulos no que toca a questões nucleares, apressou-se a oferecer a 'cooperação' da indústria nuclear francesa mal os EUA anunciaram o acordo com a Índia. Em 2001 a Rússia foi severamente criticada por violar as regras do NSG ao vender 58 toneladas de combustível nuclear para a central nuclear de Tarapur, na então ostracizada Índia; agora, no seguimento do acordo nuclear EUA-Índia, a Rússia apressa-se a fazer saber que vai repetir o exercício. Como observou Jon Wolfsthal, do Center for Strategic and International Studies "se os EUA decidiram pôr os negócios acima das prioridades da não proliferação, outros países decerto farão a mesma coisa".
Mas, para o Dr. José Cutileiro o decisivo é que "democracias decentes e amantes da liberdade... contribuirão tanto mais para a paz e segurança do mundo quanto mais bem armadas estiverem." A palavra-chave deste acordo seria, então, a paz. Em nome da paz e da segurança, já o estou a ver a apoiar solicitamente a proliferação de programas nucleares militares em Portugal, Espanha, Alemanha, Argentina, Itália, Chile, Brasil, Indonésia, Africa do Sul...
A coluna de opinião do Embaixador José Cutileiro no "Expresso" de 11 de Março último - 'A Índia, o Irão e a bomba' - merece resposta. É chocante a displicência do autor em relação ao perigo da proliferação nuclear e à erosão do edifício normativo construído com base no Tratado de Não Proliferação Nuclear (NPT), que resultam do recente (e indecente e contra-producente) acordo nuclear entre a Índia e os EUA.
O autor engana-se quando diz que "fora do Tratado fabricam armas nucleares, além da Índia, o Paquistão e Israel que não foram ostracizados por isso." A combinação das regras do NPT, da legislação interna dos EUA e das regras informais do Nuclear Suppliers Group (NSG) têm limitado seriamente a capacidade daqueles países de produzir armas nucleares em grande número e de satisfazer ao mesmo tempo as suas necessidades de energia pela via nuclear. O caso da Índia é paradigmático: começava a sofrer de asfixia energética por ser incapaz de adquirir legalmente suficiente combustível nuclear para alimentar os seus programas nucleares civis e militares.
Nesse sentido, o acordo negociado pela Administração Bush, ao abrir as portas para a venda de combustível nuclear, salva a Índia e coloca-a numa situação sui generis: se o acordo receber o aval do Congresso americano (e espero que não, quero crer que o bom-senso prevalecerá), Nova Delhi terá todas as vantagens de uma potência nuclear legal, sem ficar sujeita (como é o caso dos EUA, da Rússia, da República Popular da China, do Reino Unido e da França) aos compromissos legais decorrentes do NPT, como as obrigações de reduzir gradualmente os seus arsenais nucleares e de submeter a totalidade dos seus programas nucleares - civis e militares - a inspecções regulares por parte da Agência Internacional de Energia Atómica. Para além disso, todas as potências nucleares pelo menos assinaram (os EUA ainda persistem em não ter ratificado) o Tratado contra Testes Nucleares e comprometeram-se a pôr fim à produção de plutónio e de urânio enriquecido para fins militares. Ora, nada disto é exigido à Índia.
E é este o problema principal: o acordo nuclear entre EUA e Índia é um tremendo desincentivo ao cumprimento das regras que orientam a cooperação nuclear entre Estados e que constituem a principal barreira contra a proliferação em cascata que todos tememos (menos, com certeza, o Dr. José Cutileiro). Por exemplo, como explicar ao Brasil, outra "democracia decente e amante da liberdade", que não tem o direito a adquirir um programa nuclear para fins militares? E como impedir que a China venha propor um regime de excepção semelhante para o Paquistão?
São assustadoramente vagos os conceitos que o Dr. José Cutileiro usa para identificar quais os Estados que devem cumprir o Direito Internacional. Segundo ele, doravante as "atitudes para com [novas potências nucleares] serão determinadas por vários factores, sendo os mais importantes a natureza do sistema político interno e o teor do relacionamento internacional do país." Sabemos que os únicos Estados que ainda não assinaram o NPT são Israel, a Índia e o Paquistão. Logicamente, qualquer 'nova potência' nuclear terá de violar o NPT para o ser. O que significa que o Dr. José Cutileiro acredita que o NPT deve ser aplicado selectivamente, de acordo com critérios subjectivos e impossíveis de universalizar.
Dividindo o mundo em 'bons' (que devem ter a bomba) e 'maus' (que devem cumprir o Direito Internacional), esquece o Embaixador Cutileiro as implicações de outro factor relevante para avaliar o acordo India-EUA: as vantagens económicas da venda de combustível nuclear. Como explicou Condoleezza Rice, em artigo do passado dia 13 de Março no "Washington Post", se apenas dois dos oito reactores nucleares que a Índia precisa forem comprados aos EUA, isso "representará milhares de novos empregos para trabalhadores americanos". O Presidente Chirac, que não sofre de excesso de escrúpulos no que toca a questões nucleares, apressou-se a oferecer a 'cooperação' da indústria nuclear francesa mal os EUA anunciaram o acordo com a Índia. Em 2001 a Rússia foi severamente criticada por violar as regras do NSG ao vender 58 toneladas de combustível nuclear para a central nuclear de Tarapur, na então ostracizada Índia; agora, no seguimento do acordo nuclear EUA-Índia, a Rússia apressa-se a fazer saber que vai repetir o exercício. Como observou Jon Wolfsthal, do Center for Strategic and International Studies "se os EUA decidiram pôr os negócios acima das prioridades da não proliferação, outros países decerto farão a mesma coisa".
Mas, para o Dr. José Cutileiro o decisivo é que "democracias decentes e amantes da liberdade... contribuirão tanto mais para a paz e segurança do mundo quanto mais bem armadas estiverem." A palavra-chave deste acordo seria, então, a paz. Em nome da paz e da segurança, já o estou a ver a apoiar solicitamente a proliferação de programas nucleares militares em Portugal, Espanha, Alemanha, Argentina, Itália, Chile, Brasil, Indonésia, Africa do Sul...