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11 de maio de 2006

Controvérsias eleitorais 

Por Vital Moreira

O anúncio recentemente feito pelo PS do propósito de desencadear proximamente o processo de revisão da lei eleitoral para a Assembleia da República suscitou imediata reacção negativa dos partidos menores do leque parlamentar, que foram até à acusação de "golpe contra a democracia" e "atentado à Constituição". Descontadas as hipérboles, importa ver os termos da questão.
Cumpre constatar, à partida, que os propósitos de reforma eleitoral nada têm de inconstitucional, nem de inédito ou surpreendente. Por um lado, desde 1997 a Constituição faculta soluções como as que agora são propostas. Por outro lado, trata-se somente de ressuscitar o projecto de reforma que foi amplamente estudado e discutido ainda nos tempos do primeiro governo de António Guterres, tendo havido mesmo uma proposta de lei, que não chegou, porém, a ser aprovada, por falta de apoio político suficiente, designadamente do PSD, visto que essa reforma carece de uma maioria qualificada de 2/3 dos votos. Além disso, o sistema eleitoral proposto não passa de uma adaptação do que vigora com êxito na Alemanha desde os anos 50 do século passado e que tem ultimamente sido importado para diversos outros países por esse mundo fora.
A principal inovação estaria na criação de círculos de eleição de um só deputado (círculos uninominais), em número equivalente a pouco menos de metade dos deputados, continuando os demais a ser eleitos em círculos plurinominais, como sucede actualmente. Por conseguinte, o país seria dividido em tantos círculos eleitorais "locais" quantos os deputados a eleger pelo novo método. Na proposta conhecida, subsistiriam os círculos distritais (eventualmente agrupados, no caso dos mais pequenos), embora elegendo menos deputados (menos de metade). E seria criado um círculo nacional, igualmente previsto na Constituição desde há muito, mas não concretizado até agora.
Os eleitores teriam dois votos, um para escolherem o deputado "local" e outro para escolherem a lista partidária do seu distrito/região e do círculo nacional. Mas a transformação dos votos em mandatos seria feita de acordo com o segundo voto. Manter-se-ia assim o actual sistema proporcional. A única consequência directa da pretendida mudança estaria em que, depois de calculado o número de deputados atribuídos a cada partido (de acordo com o sistema proporcional e a partir do 2.º voto dos eleitores), entre eles estariam necessariamente os seus candidatos que tivessem vencido em círculos uninominais, só se indo buscar os candidatos das listas plurinominais (distritais/regionais e nacional), caso esse partido ainda tivesse direito a mais deputados do que aqueles que elegeu a nível dos círculos uninominais.
A principal crítica dos pequenos partidos a esta proposta consiste em acusá-la de favorecer a bipolarização eleitoral entre o PS e o PSD, dado que só eles estão em condições de vencer na quase totalidade dos círculos uninominais, o que fomentaria a lógica da concentração e do voto útil. Essa lógica de voto útil poderia contaminar o segundo voto, resultando implicitamente num prejuízo dos partidos que não têm possibilidades de disputar com êxito os círculos uninominais. Percebe-se o argumento, embora seja difícil dar-lhe razão. Primeiro, já sucede hoje que na maior parte dos círculos eleitorais distritais só os dois principais partidos têm hipótese de eleger deputados, pelo que o voto nos demais partidos é puramente desperdiçado. Ora, apesar disso, continua a haver uma estável votação nesses partidos, por vezes considerável; há mesmo casos de recuperação de deputados perdidos, como sucedeu por exemplo com o PCP em Braga. Em segundo lugar, no sistema proposto, o 2.º voto, mesmo nos pequenos partidos parlamentares, teria sempre valia, dada a criação do círculo nacional; ou seja, diferentemente do que hoje sucede, em que o voto no PCP, no CDS e no Bloco não vale nada em muitos distritos, doravante passaria a ter relevância directa na repartição pelo menos dos deputados atribuídos ao círculo nacional. Portanto, mesmo se admitíssemos que os votantes desses partidos se poderiam sentir tentados a votar útil ou a absterem-se na disputa entre PSD e PS nos círculos uninominais, a verdade é que o seu 2.º voto passaria a ter uma relevância que hoje não tem, em qualquer parte do país. Nesta perspectiva, o novo sistema até poderia favorecer os partidos mais pequenos...
Deve, aliás, dizer-se que se os dois partidos eleitoralmente dominantes quisessem acentuar a bipolarização eleitoral, à custa dos demais partidos, teriam soluções bem mais simples e expeditas do que a via proposta. Bastaria fazer uma de duas coisas, ou ambas ao mesmo tempo: diminuir o número de deputados (o que aliás colheria uma aplauso quase geral na opinião pública!...) ou dividir os círculos eleitorais maiores, nomeadamente Lisboa e Porto. Por qualquer dessas vias, tão eficaz uma como outra, seria automaticamente reduzido o índice de proporcionalidade eleitoral, diminuindo o limiar da maioria absoluta, ao mesmo tempo que seria elevada a "barreira de acesso" implícita no sistema eleitoral, tornando mais difícil a eleição de deputados pelos pequenos partidos.
São conhecidos os argumentos a favor do sistema proposto, amplamente sublinhados pelos seus defensores (entre os quais moderadamente me incluo): personalizar a escolha dos deputados, dando-lhes maior visibilidade individual; diminuir o peso dos líderes distritais na escolha dos candidatos, segundo critérios de fidelidade política e pessoal; permitir aos eleitores exercer maior escrutínio e pedir mais responsabilidade aos deputados individuais do "seu círculo"; eliminar a actual rotatividade dos deputados, mercê de substituições numerosas, emprestando maior estabilidade ao Parlamento; conferir aos deputados eleitos numa base pessoal uma certa dose de autonomia em relação aos partidos por que foram eleitos e aos respectivos governos. Tudo isso pode creditar-se à conta de uma melhoria da qualidade da democracia eleitoral.
Contudo, o sistema proposto não tem somente vantagens. Para além das objecções acima analisadas (e que, no terreno, podem não se revelar totalmente infundadas...), há a assinalar pelo menos os seguintes pontos: facilitarem-se fenómenos de caciquismo e de populismo localista, como os que se verificam a nível do poder local; estabelecer-se uma distinção entre duas categorias de deputados, ou seja, os eleitos numa base individual e os deputados de "partido", com tendencial tentativa de deslegitimação destes, por não se terem submetido a sufrágio directo e pessoal; a quase inevitável consequência de os grupos parlamentares dos partidos maiores serem ocupados por deputados eleitos em círculos uninominais, enquanto os grupos parlamentares dos partidos pequenos seriam preenchidos por deputados saídos da lista do círculo nacional; a tendencial divisão do país eleitoral em duas "cores" partidárias, o rosa e o laranja, de acordo com a vitória nos círculos uninominais.
É bem sabido que não há sistemas eleitorais perfeitos. O mesmo sucede com as suas reformas. Do que se trata de saber é se o novo arranjo proposto tem mais vantagens e menos desvantagens do que o actual. Os argumentos a seu favor são poderosos e em geral convincentes; as contra-indicações podem ser desvalorizadas ou atenuadas. Mas numa matéria politicamente tão sensível como esta não basta ter razão, sendo preciso provar convincentemente que não há excessivas "externalidades negativas" ou inaceitáveis propósitos escondidos.
(Público, 3ª feira, 9 de Maio de 2006)

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