22 de maio de 2006
O "partido dos negócios"
Por Vital Moreira
A lentidão da saída da depressão económica herdada do antecedente e as más perspectivas sobre o ritmo do crescimento económico nos próximos anos são o principal espectro que ameaça o sucesso do Governo de José Sócrates. Um fraco desempenho da economia pode comprometer todos os meritórios esforços no respeitante à disciplina das finanças públicas, à reforma da Segurança Social e da administração pública, etc. Daí a compreensível preocupação com o lançamento de grandes investimentos públicos (por último, a antecipação da realização do plano rodoviário nacional) e de cativação e estímulo de investimentos privados. Importa cuidar, porém, que a obsessão do crescimento económico não favoreça o triunfo do "partido dos negócios".
A prioridade ao crescimento económico é justíssima. Sem ele não haverá paragem no desemprego, muito menos a sua diminuição, nem aumento do rendimento pessoal e do nível de vida. A própria equação das finanças públicas será muito mais difícil, em consequência da estagnação das receitas fiscais e das contribuições sociais e do maior crescimento das despesas sociais (subsídios de desemprego, sobretudo). A continuação da divergência do desenvolvimento do país em relação à média comunitária é psicologicamente desanimadora, alimentando o sentimento do declínio a que estamos colectivamente propensos.
Infelizmente, há razões para preocupação. O défice de competitividade da economia nacional está para durar, visto que, na impossibilidade de uma diminuição dos custos do trabalho, só o aumento da produtividade pode fazer aumentar a competitividade. O alargamento da UE ao Leste, com economias mais competitivas, e a entrada em força da China e da Índia nos mercados internacionais constituem poderosos factores de agravamento da crise das nossas indústrias tradicionais, levando à perda de mercados externos e ao desvio de investimentos estrangeiros, por deslocalização de empresas instaladas em Portugal. Para complicar ainda mais a situação, a enorme subida dos preços do petróleo e do gás, combinada com a nossa extrema dependência energética, só vem tornar ainda mais problemático o ritmo da retoma e do crescimento económico entre nós.
Não ficam por aí os factores negativos. Primeiro, várias actividades económicas tradicionais (têxteis, vestuário, calçado, etc.) podem estar definitivamente condenadas pela concorrência internacional - com a agravante de serem actividades de utilização intensiva de mão-de-obra -, sendo provável que o principal impacto da reconversão económica ainda esteja para vir, com os custos sociais inerentes, sobretudo em termos de desemprego. Segundo, as nossas carências em matéria educacional, de qualificação profissional e de capacidade tecnológica colocam-nos em má posição para desenvolver rapidamente as actividades económicas alternativas de maior valor acrescentado. Por último, as grandes exigências do reequilíbrio das contas públicas não permitem grande folga em termos de alívio da carga fiscal e de investimento público na qualificação de recursos humanos e em projectos económicos dinamizadores.
Compreende-se por isso a preocupação do Governo em aproveitar todas as oportunidades para anunciar novos projectos de investimento público e privado e em estimular um clima de confiança e uma dinâmica favoráveis ao crescimento. Mas o frenesi pode ser mau conselheiro, levando a precipitações malfazejas ou a cedências desproporcionadas, se não humilhantes, em relação ao mundo dos negócios. Mesmo em tempo de "dura necessidade" há que manter a supremacia do interesse público sobre os interesses privados e a separação entre o poder político e o poder económico.
Há muitas vezes a tentação do tratamento privilegiado na atracção pública de grandes investimentos privados, quer na forma de ajudas de Estado (subsídios, isenções de impostos, isenção de taxas sociais), quer em cedências no campo ambiental e em outras condicionantes. Todavia, há sempre uma ponderação objectiva a fazer entre os custos e os benefícios, prevenindo o risco de sobreavaliar os benefícios e de subestimar os custos, bem como de trocar vantagens imediatas, muitas vezes efémeras, por elevados custos futuros. No caso do frustrado projecto da refinaria de Sines, por exemplo, para além da equação financeira, havia desde logo a dúvida sobre se os custos da emissão de gases com efeito de estufa valiam o investimento; e já antes também se pode duvidar sobre se era necessário transigir numa eucaliptização adicional do país para apoiar o grande investimento de uma empresa de celulose.
A necessária separação entre o Governo e o mundo dos negócios requer também a redução das parcerias empresariais em que o Estado coabita com os grandes grupos privados e o aumento da sua transparência. O controlo que a manutenção de participações accionistas em antigas empresas públicas dá ao Estado é muitas vezes neutralizado ou até pervertido pelo alinhamento público com estratégias dos accionistas privados. Não é preciso andar muito informado sobre a gestão de algumas das grandes empresas nacionais onde o Estado mantém participações accionistas para verificar que o interesse público nem sempre é compatível com os interesses do BES ou do BCP.
Numa moderna economia de mercado a função do Estado, para além da planificação e lançamento das grandes infra-estruturas físicas (portos, aeroportos, rede rodoviária e ferroviária, etc.) e da manutenção de algumas posições económicas estratégicas (como sucede entre nós com a CGD, a AdP, etc.), deve centrar-se essencialmente no seu papel de regulação eficaz, de garantia da concorrência e de responsável por um enquadramento favorável à actividade empresarial - em termos administrativos, fiscais, de legislação laboral, etc. - e por um ambiente político de confiança no investimento. Os incentivos ad hoc devem ser excepcionais.
Hoje em dia, um governo do Partido Socialista não tem de ter inibições doutrinárias quanto a uma política amiga do mercado e das empresas, mas não pode ceder, nem dar a impressão de ceder, ao "partido dos negócios". Tendo recaído sobre si a responsabilidade de reformas imprescindíveis que afectam sobretudo a sua base social de apoio (Segurança Social, administração pública, saúde, etc.), que está a levar a cabo com notável convicção, o mínimo que agora se lhe exige é assegurar que os sacrifícios revertam em benefício geral e não em proveito privativo de uma elite dos negócios, pronta a aproveitar-se das dificuldades de todos os poderes em todas as circunstâncias.
(Publico, Terça-feira, 16 de Maio de 2006)
A lentidão da saída da depressão económica herdada do antecedente e as más perspectivas sobre o ritmo do crescimento económico nos próximos anos são o principal espectro que ameaça o sucesso do Governo de José Sócrates. Um fraco desempenho da economia pode comprometer todos os meritórios esforços no respeitante à disciplina das finanças públicas, à reforma da Segurança Social e da administração pública, etc. Daí a compreensível preocupação com o lançamento de grandes investimentos públicos (por último, a antecipação da realização do plano rodoviário nacional) e de cativação e estímulo de investimentos privados. Importa cuidar, porém, que a obsessão do crescimento económico não favoreça o triunfo do "partido dos negócios".
A prioridade ao crescimento económico é justíssima. Sem ele não haverá paragem no desemprego, muito menos a sua diminuição, nem aumento do rendimento pessoal e do nível de vida. A própria equação das finanças públicas será muito mais difícil, em consequência da estagnação das receitas fiscais e das contribuições sociais e do maior crescimento das despesas sociais (subsídios de desemprego, sobretudo). A continuação da divergência do desenvolvimento do país em relação à média comunitária é psicologicamente desanimadora, alimentando o sentimento do declínio a que estamos colectivamente propensos.
Infelizmente, há razões para preocupação. O défice de competitividade da economia nacional está para durar, visto que, na impossibilidade de uma diminuição dos custos do trabalho, só o aumento da produtividade pode fazer aumentar a competitividade. O alargamento da UE ao Leste, com economias mais competitivas, e a entrada em força da China e da Índia nos mercados internacionais constituem poderosos factores de agravamento da crise das nossas indústrias tradicionais, levando à perda de mercados externos e ao desvio de investimentos estrangeiros, por deslocalização de empresas instaladas em Portugal. Para complicar ainda mais a situação, a enorme subida dos preços do petróleo e do gás, combinada com a nossa extrema dependência energética, só vem tornar ainda mais problemático o ritmo da retoma e do crescimento económico entre nós.
Não ficam por aí os factores negativos. Primeiro, várias actividades económicas tradicionais (têxteis, vestuário, calçado, etc.) podem estar definitivamente condenadas pela concorrência internacional - com a agravante de serem actividades de utilização intensiva de mão-de-obra -, sendo provável que o principal impacto da reconversão económica ainda esteja para vir, com os custos sociais inerentes, sobretudo em termos de desemprego. Segundo, as nossas carências em matéria educacional, de qualificação profissional e de capacidade tecnológica colocam-nos em má posição para desenvolver rapidamente as actividades económicas alternativas de maior valor acrescentado. Por último, as grandes exigências do reequilíbrio das contas públicas não permitem grande folga em termos de alívio da carga fiscal e de investimento público na qualificação de recursos humanos e em projectos económicos dinamizadores.
Compreende-se por isso a preocupação do Governo em aproveitar todas as oportunidades para anunciar novos projectos de investimento público e privado e em estimular um clima de confiança e uma dinâmica favoráveis ao crescimento. Mas o frenesi pode ser mau conselheiro, levando a precipitações malfazejas ou a cedências desproporcionadas, se não humilhantes, em relação ao mundo dos negócios. Mesmo em tempo de "dura necessidade" há que manter a supremacia do interesse público sobre os interesses privados e a separação entre o poder político e o poder económico.
Há muitas vezes a tentação do tratamento privilegiado na atracção pública de grandes investimentos privados, quer na forma de ajudas de Estado (subsídios, isenções de impostos, isenção de taxas sociais), quer em cedências no campo ambiental e em outras condicionantes. Todavia, há sempre uma ponderação objectiva a fazer entre os custos e os benefícios, prevenindo o risco de sobreavaliar os benefícios e de subestimar os custos, bem como de trocar vantagens imediatas, muitas vezes efémeras, por elevados custos futuros. No caso do frustrado projecto da refinaria de Sines, por exemplo, para além da equação financeira, havia desde logo a dúvida sobre se os custos da emissão de gases com efeito de estufa valiam o investimento; e já antes também se pode duvidar sobre se era necessário transigir numa eucaliptização adicional do país para apoiar o grande investimento de uma empresa de celulose.
A necessária separação entre o Governo e o mundo dos negócios requer também a redução das parcerias empresariais em que o Estado coabita com os grandes grupos privados e o aumento da sua transparência. O controlo que a manutenção de participações accionistas em antigas empresas públicas dá ao Estado é muitas vezes neutralizado ou até pervertido pelo alinhamento público com estratégias dos accionistas privados. Não é preciso andar muito informado sobre a gestão de algumas das grandes empresas nacionais onde o Estado mantém participações accionistas para verificar que o interesse público nem sempre é compatível com os interesses do BES ou do BCP.
Numa moderna economia de mercado a função do Estado, para além da planificação e lançamento das grandes infra-estruturas físicas (portos, aeroportos, rede rodoviária e ferroviária, etc.) e da manutenção de algumas posições económicas estratégicas (como sucede entre nós com a CGD, a AdP, etc.), deve centrar-se essencialmente no seu papel de regulação eficaz, de garantia da concorrência e de responsável por um enquadramento favorável à actividade empresarial - em termos administrativos, fiscais, de legislação laboral, etc. - e por um ambiente político de confiança no investimento. Os incentivos ad hoc devem ser excepcionais.
Hoje em dia, um governo do Partido Socialista não tem de ter inibições doutrinárias quanto a uma política amiga do mercado e das empresas, mas não pode ceder, nem dar a impressão de ceder, ao "partido dos negócios". Tendo recaído sobre si a responsabilidade de reformas imprescindíveis que afectam sobretudo a sua base social de apoio (Segurança Social, administração pública, saúde, etc.), que está a levar a cabo com notável convicção, o mínimo que agora se lhe exige é assegurar que os sacrifícios revertam em benefício geral e não em proveito privativo de uma elite dos negócios, pronta a aproveitar-se das dificuldades de todos os poderes em todas as circunstâncias.
(Publico, Terça-feira, 16 de Maio de 2006)