<$BlogRSDUrl$>

2 de junho de 2006

As farmácias e o poder 

Por Vital Moreira

O acordo entre o Governo e a Associação Nacional de Farmácias (ANF) sobre o novo regime das farmácias e do medicamento, que José Sócrates anunciou há dias na Assembleia da República, deve ser analisado quanto a dois aspectos bem distintos. Quanto ao conteúdo, há que saudar as importantes mudanças anunciadas, por tardias e incompletas que sejam. Já quanto à forma, o acordo levanta sérias reservas sob o ponto de vista da praxiologia democrática.
Começando pelo princípio, e pelo óbvio, o novo regime da farmácia constitui uma substancial reforma do sector, de que os utentes são os primeiros beneficiários. Haverá mais farmácias, a funcionar durante mais tempo; os hospitais passarão a dispor de farmácias abertas ao público todos os dias, durante 24 horas; os actuais preços fixos serão substituídos por preços máximos; abre-se a possibilidade de aquisição de medicamentos pela Internet; haverá venda em unidose. Tudo redunda em favor de melhor acessibilidade e de possível descida de preço dos medicamentos. Um inequívoco e substancial ganho social, portanto.
No entanto, a reforma fica a meio caminho em matéria de liberalização do sector e de abertura à concorrência, ficando aquém das recomendações da Autoridade da Concorrência. Termina, é certo, o insólito monopólio corporativo da propriedade das farmácias pelos farmacêuticos, pelo que doravante elas já podem ser criadas e adquiridas por qualquer pessoa (ressalvadas as necessárias incompatibilidades). É, inegavelmente, uma grande mudança simbólica. Mantêm-se, porém, ainda que atenuadas, as limitações da distância mínima entre farmácias e da capitação populacional mínima em cada concelho, também sem paralelo na nossa ordem económica.
Deste modo, persistem substanciais restrições à liberdade de estabelecimento e à concorrência no sector, com os inerentes custos para os consumidores que a Autoridade da Concorrência apontou, o que só pode justificar-se, não por qualquer interesse público, mas sim pelo interesse privado de assegurar por via oficial a rentabilidade às farmácias instaladas. Não se vislumbram as razões que podem explicar a manutenção de tais restrições. Numa economia de mercado, não compete ao Estado garantir os proveitos comerciais das empresas. Trata-se de um privilégio anómalo, cuja manutenção não honra a reforma.
É evidente que entre uma reforma sem concessões, mas susceptível de forte oposição da ANF, e uma reforma "consensual", o Governo optou pelas cedências necessárias à segunda alternativa. O aval dado pela associação empresarial das farmácias à reforma pode parecer surpreendente, visto que algumas das medidas anunciadas sempre contaram com a sua oposição. Porém, analisado o acordo em todos os seus aspectos, o "golpe de rins" da ANF faz todo o sentido.
Na verdade, a ANF só deixou sacrificar os anéis de nobreza (nomeadamente o exclusivo da propriedade farmacêutica) para preservar o essencial, ou seja, a continuação do racionamento do número de farmácias (embora menos severo) e, portanto, a confortável renda que as situações deste tipo asseguram aos seus beneficiários. Além disso, na troca, a ANF ainda conseguiu alguns bónus não despiciendos para os proprietários de farmácias: a concessão das novas farmácias dos hospitais, um considerável alargamento da área de negócios das farmácias, a possibilidade de venda de medicamentos hoje disponíveis só nos hospitais, a possibilidade de acumular quatro farmácias (hoje cada farmacêutico só pode ter uma), etc. É evidente que a ANF não somente controlou os danos da liberalização mas também conseguiu valiosas contrapartidas.
O novo regime também vai beneficiar os demais farmacêuticos (ou seja, os que não são proprietários de farmácias), bem como a profissão, em geral. Na verdade, vai haver mais lugares de director técnico e outros lugares nas novas farmácias, mais independência dos farmacêuticos face aos proprietários das farmácias, etc. Por isso, só por cegueira dogmática é que a Ordem dos Farmacêuticos (OF) se insurge contra o novo regime, na defesa do exclusivo corporativo da propriedade das farmácias. É caso para dizer que a OF cuida mais dos interesses comerciais dos farmacêuticos-proprietários, que são uma minoria beneficiada, do que dos interesses profissionais dos outros farmacêuticos, que são muitos mais. A OF só devia representar a profissão farmacêutica e não a propriedade farmacêutica.
Se a reforma do regime da farmácia vai no bom sentido (ressalvada a manutenção do racionamento das farmácias), já não merece aplauso a forma como ela foi concebida e decidida. De facto, a sua negociação "secreta" e a sua contratualização formal com o principal grupo de interesses do sector, a ANF, através de um acordo que enuncia o conjunto das medidas legislativas a tomar é pouco conforme com os princípios democráticos da decisão política. Uma coisa é ouvir e considerar as posições dos interessados - e não apenas a ANF (nesse aspecto, a Ordem dos Farmacêuticos tem toda a razão quando se queixa de não ter sido ouvida) - e depois decidir soberanamente; outra coisa é o Governo negociar e celebrar pactos de conteúdo político e legislativo com um lobby económico, comprometendo-se contratualmente com ele, ainda por cima envolvendo mudanças legislativas que são da competência reservada da Assembleia da República, que assim vai ser chamada a carimbar, sem possibilidade de alterações, as soluções acordadas como facto consumado, pelo Governo com a ANF, num procedimento furtado ao escrutínio público.
Nem se diga que outro tanto se verifica no caso da "concertação social". Essa figura está expressamente prevista na Constituição e na lei, além de que aí o Estado aparece como terceira entidade em relação aos interesses contrapostos dos "parceiros sociais" e acima deles, o que é bem diferente de o Governo negociar privativamente uma reforma legislativa, em pé de igualdade, com um grupo profissional ou empresarial, sem qualquer anúncio prévio das orientações governamentais. Acresce que um acordo desta natureza constitui um precedente que outros grupos de interesses podem reivindicar em seu benefício. Por que não negociar e pactuar também a reforma da justiça com os sindicatos das profissões judiciárias, ou a reforma da defesa com as associações profissionais das forças armadas, ou a reforma da regulação bancária com a associação de bancos, e assim por diante?
Há mais duas objecções a acrescentar. Primeiro, a contratualização não implica somente uma barganha entre o interesse público e os interesses particulares, sacrificando o primeiro aos segundos na medida necessária à obtenção do acordo, mas também um congelamento da liberdade de decisão política ulterior, visto que o poder político fica vinculado aos termos do contrato (pacta sunt servanda); sintomaticamente, o pacto não tem prazo de vigência. Em segundo lugar, tal mecanismo confere ao grupo de interesses contratante um estatuto privilegiado de "parceiro oficial" na definição das políticas públicas, o que não condiz com os princípios da igualdade, da neutralidade e do não favoritismo político do Estado.
Foi este o segundo triunfo da ANF nesta ocorrência. Tendo em conta o histórico de sobranceria desta organização perante os governos e os partidos políticos, sempre que se tratou de bulir com os seus interesses (basta recordar a selvagem reacção contra a proposta do PS em 2002 para a criação de "farmácias sociais", com ingerência directa na campanha eleitoral), é caso para dizer que o poder económico sempre prevalece e a arrogância política compensa.

(Público, terça-feira, 30 de Maio de 2006)

This page is powered by Blogger. Isn't yours?