30 de junho de 2006
A separação inacabada
Por Vital Moreira
A discussão sobre a presença dos bispos católicos no protocolo oficial do Estado mostrou tanto o atraso e as dificuldades na realização do princípio da separação entre o Estados e as igrejas como a continuidade, no campo da direita política, de uma posição de resistência à realização plena da laicidade do Estado e ao fim dos privilégios oficiais da Igreja Católica. A Constituição de 1976 restaurou o princípio da separação, mas na realidade dos factos a imiscuição da religião no Estado persiste em vários aspectos. Mais recentemente, a Lei da Liberdade Religiosa veio conferir a todas as religiões direitos e vantagens de que anteriormente só a Igreja Católica gozava, mas, passados cinco anos, diversos pontos dessa lei continuam por regulamentar, mantendo-se o monopólio católico.
A resistência do CDS, nalguns aspectos acompanhado pelo PSD, ao afastamento dos bispos do protocolo do Estado, bem como a veemência com que o fizeram, revelam claramente que a direita parlamentar se mantém fiel ao paradigma religioso do Estado e da coisa pública. Na verdade, não se vê como é que se pode defender a compatibilidade da laicidade do Estado com a representação da Igreja Católica no protocolo oficial. Por definição, o protocolo do Estado tem que ver com o Estado. Havendo separação entre Estado e igrejas, a presença de representantes destas na esfera daquele implica uma óbvia violação do referido princípio. A que se deve acrescentar, aliás, uma subversão da igualdade de direitos das diferentes igrejas, porquanto só a Igreja Católica é beneficiária desse privilégio.
De resto, não se trata de caso único. Entre outros aspectos, mencionem-se a exibição de crucifixos em diversos estabelecimentos públicos (escolas, prisões, hospitais, etc.), a bênção religiosa de obras ou equipamentos públicos, a celebração de cerimónias religiosas por iniciativa de entidades públicas, a presença de entidades oficiais, nessa qualidade, em cerimónias religiosas, a existência de assistentes religiosos em estabelecimentos e serviços públicos (forças armadas, hospitais, prisões, etc.), beneficiários de qualificação oficial e de remuneração do Estado. A complacência de sucessivos governos perante todas estas situações revela o grave défice de consideração por um dos princípios fundamentais do constitucionalismo democrático entre nós. E a indisponibilidade da Igreja Católica para abrir mão das referidas regalias e privilégios por iniciativa própria comprova que ela continua a conviver mal com a separação do Estado e com a equiparação de direitos das demais religiões. Por mais que preste homenagem verbal à separação entre o poder secular e a esfera religiosa, a Igreja de Roma não consegue cortar definitivamente com a tradição cosntantiniana de se valer do braço do Estado em proveito próprio.
Porém, separação significa separação. Nem o Estado se pode imiscuir nas igrejas ou tomar parte na sua vida e na sua liturgia, nem as igrejas se devem intrometer no Estado ou participar nas manifestações do poder político. Nenhuma habilidade doutrinária ou legal pode contornar a radical incompatibilidade da mistura do Estado e das igrejas com o princípio da separação. Nem se invoque a "tradição" ou o "carácter maioritariamente católico da população portuguesa", simplesmente porque nem uma nem outra coisa são relevantes para a questão. Por um lado, a tradição não pode valer contra norma expressa da Constituição; e, de resto, se a tradição valesse alguma coisa nesta matéria, então ainda hoje Portugal teria uma religião oficial. Por outro lado, o argumento da maioria religiosa, se fosse aqui relevante, deveria funcionar ao contrário: se alguém precisava de ajuda seriam as confissões minoritárias e não a religião hegemónica, a qual, por o ser, não deveria necessitar do Estado para nada. A separação entre o Estado e as igrejas vale por si mesma, como condição da universalidade e da neutralidade religiosa do Estado e especialmente como pressuposto essencial da igualdade dos cidadãos perante o Estado, independentemente da sua posição religiosa. Mas se esse princípio é especialmente relevante, isso sucede justamente no caso das religiões maioritárias, para assegurar a independência do Estado perante os poderes espiritualmente dominantes.
Para além de proporcionar o ambiente natural da liberdade de religião e de culto e da objecção de consciência, a separação não impede que o Estado facilite a vida religiosa dos seus cidadãos e reconheça às igrejas os direitos (e eventualmente as regalias) necessários ou convenientes para o desempenho da sua missão. Aí se contam, entre outros, o acesso das igrejas às escolas públicas para ministrarem ensino religioso, a sua presença nos estabelecimentos e serviços públicos para fins de assistência religiosa, o respeito do Estado pelas convicções e obrigações religiosas dos crentes (de que os feriados religiosos são uma expressão particular), etc. Mas é evidente que uma coisa é o Estado assegurar e facilitar às igrejas e aos crentes o exercício das suas missões e obrigações religiosas, como lhe incumbe, outra coisa é identificar-se especialmente com uma religião ou igreja ou associar-se a cerimónias religiosas.
Outra vertente incontornável do princípio da separação consiste na ausência de privilégios ou prerrogativas oficiais de uma confissão ou igreja em comparação com as outras. Todas devem beneficiar dos mesmos direitos, ainda que em dimensão desigual, atenta a diferente "representatividade" de cada uma. Mas não é isso o que sucede entre nós. O Estado Novo conferiu à Igreja Católica uma série de direitos e vantagens (no ensino, no domínio fiscal, na assistência religiosa em estabelecimentos públicos, na relevância civil dos casamentos religiosos, etc.) de que as demais igrejas foram privadas. A Lei da Liberdade Religiosa procedeu à extensão de vários desses direitos às outras religiões. Mas alguns deles continuam a ser-lhes vedados, por falta de regulamentação. Tal é o caso, entre outros, da assistência religiosa nos serviços e estabelecimentos públicos, do reconhecimento civil dos casamentos religiosos e da possibilidade de os contribuintes poderem destinar uma parte do seu IRS à igreja da sua escolha.
As demais igrejas são ainda discriminadas de facto em outros aspectos, como sucede com a total falta de feriados correspondentes aos dias mais marcantes do seu calendário religioso ou a ausência de transmissão das suas cerimónias religiosas pelos meios de comunicação social públicos. É evidente que, dado o desigual peso das diferentes denominações religiosas, não se justifica uma equiparação com a Igreja Católica nesses pontos. Mas entre a descabida equiparação e o nada existente vai uma longa gradação.
A questão do protocolo do Estado teve pelo menos o mérito de pôr em relevo os resquícios de confessionalismo de Estado e de favoritismo oficial da Igreja Católica que permanecem entre nós. Mas seria errado supor que depois disto tudo fica resolvido. Como se viu, bem longe disso. A poucos anos do centenário da instauração da República, que estabeleceu a separação entre o Estado e as igrejas e reconheceu a liberdade e a igualdade em matéria religiosa, e passados trinta anos sobre o 25 de Abril, que restaurou esses princípios, já era mais do que tempo para os realizar plenamente.
(Público, Terça-feira, 27 de Junho de 2006)
A discussão sobre a presença dos bispos católicos no protocolo oficial do Estado mostrou tanto o atraso e as dificuldades na realização do princípio da separação entre o Estados e as igrejas como a continuidade, no campo da direita política, de uma posição de resistência à realização plena da laicidade do Estado e ao fim dos privilégios oficiais da Igreja Católica. A Constituição de 1976 restaurou o princípio da separação, mas na realidade dos factos a imiscuição da religião no Estado persiste em vários aspectos. Mais recentemente, a Lei da Liberdade Religiosa veio conferir a todas as religiões direitos e vantagens de que anteriormente só a Igreja Católica gozava, mas, passados cinco anos, diversos pontos dessa lei continuam por regulamentar, mantendo-se o monopólio católico.
A resistência do CDS, nalguns aspectos acompanhado pelo PSD, ao afastamento dos bispos do protocolo do Estado, bem como a veemência com que o fizeram, revelam claramente que a direita parlamentar se mantém fiel ao paradigma religioso do Estado e da coisa pública. Na verdade, não se vê como é que se pode defender a compatibilidade da laicidade do Estado com a representação da Igreja Católica no protocolo oficial. Por definição, o protocolo do Estado tem que ver com o Estado. Havendo separação entre Estado e igrejas, a presença de representantes destas na esfera daquele implica uma óbvia violação do referido princípio. A que se deve acrescentar, aliás, uma subversão da igualdade de direitos das diferentes igrejas, porquanto só a Igreja Católica é beneficiária desse privilégio.
De resto, não se trata de caso único. Entre outros aspectos, mencionem-se a exibição de crucifixos em diversos estabelecimentos públicos (escolas, prisões, hospitais, etc.), a bênção religiosa de obras ou equipamentos públicos, a celebração de cerimónias religiosas por iniciativa de entidades públicas, a presença de entidades oficiais, nessa qualidade, em cerimónias religiosas, a existência de assistentes religiosos em estabelecimentos e serviços públicos (forças armadas, hospitais, prisões, etc.), beneficiários de qualificação oficial e de remuneração do Estado. A complacência de sucessivos governos perante todas estas situações revela o grave défice de consideração por um dos princípios fundamentais do constitucionalismo democrático entre nós. E a indisponibilidade da Igreja Católica para abrir mão das referidas regalias e privilégios por iniciativa própria comprova que ela continua a conviver mal com a separação do Estado e com a equiparação de direitos das demais religiões. Por mais que preste homenagem verbal à separação entre o poder secular e a esfera religiosa, a Igreja de Roma não consegue cortar definitivamente com a tradição cosntantiniana de se valer do braço do Estado em proveito próprio.
Porém, separação significa separação. Nem o Estado se pode imiscuir nas igrejas ou tomar parte na sua vida e na sua liturgia, nem as igrejas se devem intrometer no Estado ou participar nas manifestações do poder político. Nenhuma habilidade doutrinária ou legal pode contornar a radical incompatibilidade da mistura do Estado e das igrejas com o princípio da separação. Nem se invoque a "tradição" ou o "carácter maioritariamente católico da população portuguesa", simplesmente porque nem uma nem outra coisa são relevantes para a questão. Por um lado, a tradição não pode valer contra norma expressa da Constituição; e, de resto, se a tradição valesse alguma coisa nesta matéria, então ainda hoje Portugal teria uma religião oficial. Por outro lado, o argumento da maioria religiosa, se fosse aqui relevante, deveria funcionar ao contrário: se alguém precisava de ajuda seriam as confissões minoritárias e não a religião hegemónica, a qual, por o ser, não deveria necessitar do Estado para nada. A separação entre o Estado e as igrejas vale por si mesma, como condição da universalidade e da neutralidade religiosa do Estado e especialmente como pressuposto essencial da igualdade dos cidadãos perante o Estado, independentemente da sua posição religiosa. Mas se esse princípio é especialmente relevante, isso sucede justamente no caso das religiões maioritárias, para assegurar a independência do Estado perante os poderes espiritualmente dominantes.
Para além de proporcionar o ambiente natural da liberdade de religião e de culto e da objecção de consciência, a separação não impede que o Estado facilite a vida religiosa dos seus cidadãos e reconheça às igrejas os direitos (e eventualmente as regalias) necessários ou convenientes para o desempenho da sua missão. Aí se contam, entre outros, o acesso das igrejas às escolas públicas para ministrarem ensino religioso, a sua presença nos estabelecimentos e serviços públicos para fins de assistência religiosa, o respeito do Estado pelas convicções e obrigações religiosas dos crentes (de que os feriados religiosos são uma expressão particular), etc. Mas é evidente que uma coisa é o Estado assegurar e facilitar às igrejas e aos crentes o exercício das suas missões e obrigações religiosas, como lhe incumbe, outra coisa é identificar-se especialmente com uma religião ou igreja ou associar-se a cerimónias religiosas.
Outra vertente incontornável do princípio da separação consiste na ausência de privilégios ou prerrogativas oficiais de uma confissão ou igreja em comparação com as outras. Todas devem beneficiar dos mesmos direitos, ainda que em dimensão desigual, atenta a diferente "representatividade" de cada uma. Mas não é isso o que sucede entre nós. O Estado Novo conferiu à Igreja Católica uma série de direitos e vantagens (no ensino, no domínio fiscal, na assistência religiosa em estabelecimentos públicos, na relevância civil dos casamentos religiosos, etc.) de que as demais igrejas foram privadas. A Lei da Liberdade Religiosa procedeu à extensão de vários desses direitos às outras religiões. Mas alguns deles continuam a ser-lhes vedados, por falta de regulamentação. Tal é o caso, entre outros, da assistência religiosa nos serviços e estabelecimentos públicos, do reconhecimento civil dos casamentos religiosos e da possibilidade de os contribuintes poderem destinar uma parte do seu IRS à igreja da sua escolha.
As demais igrejas são ainda discriminadas de facto em outros aspectos, como sucede com a total falta de feriados correspondentes aos dias mais marcantes do seu calendário religioso ou a ausência de transmissão das suas cerimónias religiosas pelos meios de comunicação social públicos. É evidente que, dado o desigual peso das diferentes denominações religiosas, não se justifica uma equiparação com a Igreja Católica nesses pontos. Mas entre a descabida equiparação e o nada existente vai uma longa gradação.
A questão do protocolo do Estado teve pelo menos o mérito de pôr em relevo os resquícios de confessionalismo de Estado e de favoritismo oficial da Igreja Católica que permanecem entre nós. Mas seria errado supor que depois disto tudo fica resolvido. Como se viu, bem longe disso. A poucos anos do centenário da instauração da República, que estabeleceu a separação entre o Estado e as igrejas e reconheceu a liberdade e a igualdade em matéria religiosa, e passados trinta anos sobre o 25 de Abril, que restaurou esses princípios, já era mais do que tempo para os realizar plenamente.
(Público, Terça-feira, 27 de Junho de 2006)