22 de julho de 2006
Entre as ruínas, ninguém leva a melhor
Por Vital Moreira
Quando um Estado, para responder a uma acção bélica inimiga, resolve atacar alvos civis, matar gente inocente a esmo, destruir estradas e pontes, portos e aeroportos, centrais eléctricas e bairros urbanos, isso tem um nome feio: terrorismo. No caso, terrorismo de Estado. Na vertigem da violência que é o interminável conflito israelo-palestiniano, Israel adopta decididamente a mesma lógica fatal de que acusa os seus inimigos, ou seja, transformar os civis em carne para canhão.
A faísca que desencadeou a nova guerra de Israel contra o território palestiniano de Gaza, primeiro, e contra o Líbano, depois, foi a captura de um soldado israelita pelo braço armado do Hamas, seguida do aprisionamento, já depois da ofensiva israelita em Gaza, de mais dois soldados pelo Hezbollah, o movimento extremista xiita sedeado no Líbano. Importa dizer que, num conflito armado, o ataque a forças militares e a captura de soldados não podem ser equiparados a terrorismo ou a "tomada de reféns" (noções que só têm sentindo quando as vítimas sejam civis), como quer fazer crer o Governo israelita, seguido nessa linguagem, acriticamente, por muitos observadores coniventes ou desatentos. Israel ocupa ilegalmente, e pela força militar, os territórios de Gaza e da Cisjordânia, desde há quase 40 anos. A resistência dos palestinianos à ocupação é perfeitamente legítima e o ataque a objectivos militares e a forças militares ocupantes é um direito seu. Muitos dos que criticam a resistência palestiniana fariam o mesmo que eles, se colocados no seu lugar. Apodar de "terroristas" essas acções tem somente por objectivo confundir os conceitos e tentar deslegitimar a resistência palestiniana contra a infindável ocupação e opressão israelita.
É evidente que Israel pode responder militarmente aos ataques contra as suas forças militares, e ainda mais os que atinjam o seu território, desde que tenha por objectivo os responsáveis por eles. Mas não foi isso que sucedeu. Em resposta ao ataque do braço armado do Hamas, Israel resolveu lançar uma ofensiva-relâmpago contra a Faixa de Gaza, que aliás prossegue, atingindo primariamente objectivos exclusivamente civis (pontes, estradas e outras infra-estruturas) e matando pessoas ao acaso, numa orgia de violência que seria sempre desproporcionada, mesmo se fosse justificada, o que não era. Do mesmo modo, contra a segunda acção, a do Hezbolah, essa vinda do exterior, Telavive lançou-se indiscriminadamente sobre o Líbano, de novo sobre objectivos civis (estradas, pontes, o aeroporto civil de Beirute, portos, bairros urbanos, etc.,) e novamente com um saldo de numerosas vítimas inocentes.
Israel é, de resto, useiro e vezeiro neste tipo de retaliações contra terceiros, visando castigar e intimidar colectivamente todo o povo palestiniano. Não têm conta os casos de bombardeamento indiscriminado de aldeias de onde teriam saído bombistas suicidas, bem como a demolição de casas de familiares dos mesmos, a destruição de colheitas, a inutilização de poços e de outros equipamentos colectivos, etc. São violências como essas que têm alimentado e acumulado o ódio palestiniano contra Israel, em geral, e contra a ocupação israelita, em especial. Mas a actual guerra de destruição de Gaza e do Líbano atinge uma dimensão e uma gravidade que não pode deixar de ter por efeito o reforço do apoio das correntes mais radicais contra Israel, tanto na Palestina como fora dela. Pior do que isso, estas acções de castigo e represália colectiva sobre inocentes não podem deixar de fazer lembrar os dias mais negros da ocupação alemã de vários países na II Guerra Mundial, quando as forças ocupantes também recorriam a acções de vingança colectiva (fuzilamentos, arrasamento de povoações, etc.). A repulsa que este tipo de acções suscita e a particular violência e insensibilidade com que Israel as leva a cabo, do alto da sua incomensurável superioridade militar, só podem levar a fazer-lhe perder a superioridade moral que os ataques terroristas (os propriamente ditos) de que tem sido vítima e ataques externos como o do Hezbollah lhe podiam conferir, para se tornar também em algoz, com a agravante de se tratar de um Estado.
Para além disso, não se consegue descortinar a racionalidade desta espiral de violência bélica por parte de Israel. A acção da facção armada do Hamas foi claramente uma reacção à declaração oficial do governo palestiniano que reconhecia implicitamente o Estado de Israel, tal como este (e a comunidade internacional) exigiam, aliás sem contrapartida no reconhecimento por Israel do direito dos palestinianos ao seu próprio Estado, com jurisdição nos territórios ocupados (uma dualidade de critérios cuja justificação em vão se busca). Ora, em vez da prudência que se impunha, Israel decidiu "embarcar" na óbvia provocação (para satisfação dos autores desta), retaliando a ferro e fogo para além de toda a medida, sem poder ignorar que isso não poderia deixar de descarrilar a crítica situação que já se vivia desde a incapacitação de Sharon e, depois, com a vitória eleitoral do Hamas nas eleições palestinianas (eleições livres e democráticas, importa aliás lembrar os esquecidos, que gostam de omitir que a Palestina é, porventura, o "Estado" mais democrático em todo o mundo árabe...).
Que outra razão para a conduta israelita, se não a de que o Governo de Telavive desejou deliberadamente interromper as perspectivas que se abriam à evolução favorável da posição palestiniana, preferindo lançar o caos sobre todo o processo de paz e provocar a generalização do conflito? Israel é recorrente nesta linha de deslegitimação do adversário e de cancelamento de qualquer possibilidade de afirmação de um interlocutor válido do outro lado. Sharon fez tudo para socavar e humilhar a autoridade de Arafat, para depois se queixar hipocritamente de que não tinha interlocutor e declarar que Israel resolveria as coisas unilateralmente. O novo Governo israelita segue as mesmas pisadas, aproveitando a primeira provocação, grave embora, para fugir (mesmo à custa de uma nova sangueira) da hipótese de ter de conviver com a autoridade política do Hamas. Tudo, ao fim e ao cabo, para não ter de negociar a curto prazo com os dirigentes palestinianos uma paz global, que envolva o reconhecimento recíproco dos dois Estados, nas fronteiras de 1967, ou seja, as fronteiras internacionalmente reconhecidas de Israel.
Israel sabe que um dia, mais cedo ou mais tarde, terá de chegar, ou será forçado a chegar, a um acordo com os palestinianos. A sua resistência tem a ver com o tempo, querendo protelar esse momento o mais possível, de modo a consumar a ocupação e a integração efectiva dos territórios ocupados de que se quer apropriar, nem que para isso tenha de destruir toda e qualquer possibilidade de uma Palestina independente, viável e estável. Entretanto, não se importa de manter a paz no Médio Oriente refém da sua estratégia. É evidente que Israel tem direito a garantir a sua segurança, dentro das suas fronteiras reconhecidas, sem margem para qualquer surpresa. Mas essa segurança passa necessariamente pela solução justa da questão palestiniana, num arranjo global para a região avalizado pela comunidade internacional. Enquanto atrasar deliberadamente esse momento por culpa sua, com o apoio dos Estados Unidos e a conivência da Europa, Israel só está a contribuir para tornar mais penoso o necessário caminho para a paz.
Militarmente, Israel ganhará todas as guerras. Mas, enquanto mantiver a ocupação, não ganhará a paz.
(Público, Terça-feira, 18 de Julho de 2006)
Quando um Estado, para responder a uma acção bélica inimiga, resolve atacar alvos civis, matar gente inocente a esmo, destruir estradas e pontes, portos e aeroportos, centrais eléctricas e bairros urbanos, isso tem um nome feio: terrorismo. No caso, terrorismo de Estado. Na vertigem da violência que é o interminável conflito israelo-palestiniano, Israel adopta decididamente a mesma lógica fatal de que acusa os seus inimigos, ou seja, transformar os civis em carne para canhão.
A faísca que desencadeou a nova guerra de Israel contra o território palestiniano de Gaza, primeiro, e contra o Líbano, depois, foi a captura de um soldado israelita pelo braço armado do Hamas, seguida do aprisionamento, já depois da ofensiva israelita em Gaza, de mais dois soldados pelo Hezbollah, o movimento extremista xiita sedeado no Líbano. Importa dizer que, num conflito armado, o ataque a forças militares e a captura de soldados não podem ser equiparados a terrorismo ou a "tomada de reféns" (noções que só têm sentindo quando as vítimas sejam civis), como quer fazer crer o Governo israelita, seguido nessa linguagem, acriticamente, por muitos observadores coniventes ou desatentos. Israel ocupa ilegalmente, e pela força militar, os territórios de Gaza e da Cisjordânia, desde há quase 40 anos. A resistência dos palestinianos à ocupação é perfeitamente legítima e o ataque a objectivos militares e a forças militares ocupantes é um direito seu. Muitos dos que criticam a resistência palestiniana fariam o mesmo que eles, se colocados no seu lugar. Apodar de "terroristas" essas acções tem somente por objectivo confundir os conceitos e tentar deslegitimar a resistência palestiniana contra a infindável ocupação e opressão israelita.
É evidente que Israel pode responder militarmente aos ataques contra as suas forças militares, e ainda mais os que atinjam o seu território, desde que tenha por objectivo os responsáveis por eles. Mas não foi isso que sucedeu. Em resposta ao ataque do braço armado do Hamas, Israel resolveu lançar uma ofensiva-relâmpago contra a Faixa de Gaza, que aliás prossegue, atingindo primariamente objectivos exclusivamente civis (pontes, estradas e outras infra-estruturas) e matando pessoas ao acaso, numa orgia de violência que seria sempre desproporcionada, mesmo se fosse justificada, o que não era. Do mesmo modo, contra a segunda acção, a do Hezbolah, essa vinda do exterior, Telavive lançou-se indiscriminadamente sobre o Líbano, de novo sobre objectivos civis (estradas, pontes, o aeroporto civil de Beirute, portos, bairros urbanos, etc.,) e novamente com um saldo de numerosas vítimas inocentes.
Israel é, de resto, useiro e vezeiro neste tipo de retaliações contra terceiros, visando castigar e intimidar colectivamente todo o povo palestiniano. Não têm conta os casos de bombardeamento indiscriminado de aldeias de onde teriam saído bombistas suicidas, bem como a demolição de casas de familiares dos mesmos, a destruição de colheitas, a inutilização de poços e de outros equipamentos colectivos, etc. São violências como essas que têm alimentado e acumulado o ódio palestiniano contra Israel, em geral, e contra a ocupação israelita, em especial. Mas a actual guerra de destruição de Gaza e do Líbano atinge uma dimensão e uma gravidade que não pode deixar de ter por efeito o reforço do apoio das correntes mais radicais contra Israel, tanto na Palestina como fora dela. Pior do que isso, estas acções de castigo e represália colectiva sobre inocentes não podem deixar de fazer lembrar os dias mais negros da ocupação alemã de vários países na II Guerra Mundial, quando as forças ocupantes também recorriam a acções de vingança colectiva (fuzilamentos, arrasamento de povoações, etc.). A repulsa que este tipo de acções suscita e a particular violência e insensibilidade com que Israel as leva a cabo, do alto da sua incomensurável superioridade militar, só podem levar a fazer-lhe perder a superioridade moral que os ataques terroristas (os propriamente ditos) de que tem sido vítima e ataques externos como o do Hezbollah lhe podiam conferir, para se tornar também em algoz, com a agravante de se tratar de um Estado.
Para além disso, não se consegue descortinar a racionalidade desta espiral de violência bélica por parte de Israel. A acção da facção armada do Hamas foi claramente uma reacção à declaração oficial do governo palestiniano que reconhecia implicitamente o Estado de Israel, tal como este (e a comunidade internacional) exigiam, aliás sem contrapartida no reconhecimento por Israel do direito dos palestinianos ao seu próprio Estado, com jurisdição nos territórios ocupados (uma dualidade de critérios cuja justificação em vão se busca). Ora, em vez da prudência que se impunha, Israel decidiu "embarcar" na óbvia provocação (para satisfação dos autores desta), retaliando a ferro e fogo para além de toda a medida, sem poder ignorar que isso não poderia deixar de descarrilar a crítica situação que já se vivia desde a incapacitação de Sharon e, depois, com a vitória eleitoral do Hamas nas eleições palestinianas (eleições livres e democráticas, importa aliás lembrar os esquecidos, que gostam de omitir que a Palestina é, porventura, o "Estado" mais democrático em todo o mundo árabe...).
Que outra razão para a conduta israelita, se não a de que o Governo de Telavive desejou deliberadamente interromper as perspectivas que se abriam à evolução favorável da posição palestiniana, preferindo lançar o caos sobre todo o processo de paz e provocar a generalização do conflito? Israel é recorrente nesta linha de deslegitimação do adversário e de cancelamento de qualquer possibilidade de afirmação de um interlocutor válido do outro lado. Sharon fez tudo para socavar e humilhar a autoridade de Arafat, para depois se queixar hipocritamente de que não tinha interlocutor e declarar que Israel resolveria as coisas unilateralmente. O novo Governo israelita segue as mesmas pisadas, aproveitando a primeira provocação, grave embora, para fugir (mesmo à custa de uma nova sangueira) da hipótese de ter de conviver com a autoridade política do Hamas. Tudo, ao fim e ao cabo, para não ter de negociar a curto prazo com os dirigentes palestinianos uma paz global, que envolva o reconhecimento recíproco dos dois Estados, nas fronteiras de 1967, ou seja, as fronteiras internacionalmente reconhecidas de Israel.
Israel sabe que um dia, mais cedo ou mais tarde, terá de chegar, ou será forçado a chegar, a um acordo com os palestinianos. A sua resistência tem a ver com o tempo, querendo protelar esse momento o mais possível, de modo a consumar a ocupação e a integração efectiva dos territórios ocupados de que se quer apropriar, nem que para isso tenha de destruir toda e qualquer possibilidade de uma Palestina independente, viável e estável. Entretanto, não se importa de manter a paz no Médio Oriente refém da sua estratégia. É evidente que Israel tem direito a garantir a sua segurança, dentro das suas fronteiras reconhecidas, sem margem para qualquer surpresa. Mas essa segurança passa necessariamente pela solução justa da questão palestiniana, num arranjo global para a região avalizado pela comunidade internacional. Enquanto atrasar deliberadamente esse momento por culpa sua, com o apoio dos Estados Unidos e a conivência da Europa, Israel só está a contribuir para tornar mais penoso o necessário caminho para a paz.
Militarmente, Israel ganhará todas as guerras. Mas, enquanto mantiver a ocupação, não ganhará a paz.
(Público, Terça-feira, 18 de Julho de 2006)