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16 de julho de 2006

"Nem Fidel Castro se esquivou" 

Por Vital Moreira

A falta do chefe do Governo espanhol Rodríguez Zapatero à missa celebrada por Papa Bento XVI em Valência há dias suscitou uma amarga queixa pública do Vaticano. Segundo a imprensa italiana, um porta-voz do papado declarou que se tratou de uma "desfeita" inédita na história das visitas papais.
Nas suas palavras, nem os piores "anticristos" deste mundo ousaram tamanho ultraje: "Quando fomos à Nicarágua, Daniel Ortega foi à missa. Em Varsóvia, durante o período comunista, Wojciech Jaruzelski fez o mesmo." Até na visita papal a Cuba, rematou ele, "Fidel não se esquivou à missa".
Neste episódio, não se sabe o que mais surpreende: se a coragem de Rodríguez Zapatero, ao cortar com tão augusta tradição (outros nomes poderiam, aliás, ter sido mencionados pelo porta-voz eclesiástico...), arrostando com a condenação de Roma, ou o topete do Vaticano ao censurar o chefe do Governo do Estado anfitrião, e nos termos que o fez. É certo que a reacção do Vaticano não pode desligar-se das razões de queixa contra o Governo socialista de Madrid, por causa das medidas que têm atormentado a Igreja Católica (reconhecimento dos casamentos homossexuais, facultatividade do ensino religioso nas escolas públicas, revisão do financiamento público da Igreja Católica, etc.). A verdade, porém, é que o primeiro-ministro espanhol se "limitou" a observar a mais elementar consequência da separação entre o Estado e as igrejas, que não é compatível com a sua participação na liturgia religiosa (nem o inverso).
Já o Vaticano revelou, mais uma vez, que continua a não aceitar a separação nas suas vertentes mais fulcrais e que, passado todo este tempo, ainda não "digeriu" a revolução da Paz da Vestfália de 1648, que abriu a era da autonomia dos Estados em relação a Roma. A Igreja Católica continua a pensar que os chefes terrenos devem vassalagem ao Papa, apesar de já não precisarem de ser ungidos nem consagrados, nem tampouco poderem ser destituídos por ele.
Num Estado aconfessional, os governantes podem seguramente participar em cerimónias e ofícios religiosos, desde que a título pessoal, no exercício da sua liberdade pessoal e religiosa de crentes (ou não); não é por serem governantes que perdem tal liberdade. O que não podem, nem devem, é misturar a sua qualidade oficial e as suas funções de representantes do Estado com cerimónias de uma Igreja, seja ela qual for. Se a isso se juntar, aliás, que muitas vezes se trata de pessoas que não são crentes e que até são conhecidas pelo seu agnosticismo ou pelo seu ateísmo, a violação do princípio da separação é agravada pela demonstração de hipocrisia pessoal, que não abona muito a favor do carácter de quem assim procede.
Por isso, a atitude do presidente do Governo espanhol tem de ser saudada, quer enquanto governante, quer enquanto pessoa. Como chefe do Governo, recebeu oficialmente e saudou amistosamente o ilustre visitante no aeroporto de Valência, como mandam as regras da cortesia internacional, tratando-se, para mais, do líder de uma Igreja de relevo universal e, para além disso, chefe de um "Estado" com estatuto reconhecido no direito internacional e com representação diplomática em numerosos países (embora a questão da "estatalidade" do Vaticano não deixe de ser controversa). Depois, no entanto, como chefe do Governo de um país constitucionalmente caracterizado pela separação entre o Estado e as religiões, recusou associar-se às cerimónias religiosas a que o Papa vinha presidir. Decência e sentido de Estado em toda a linha!
A descabelada censura feita ao primeiro-ministro espanhol revela a dificuldade com que o Vaticano continua a lidar com o seu afastamento da esfera do poder temporal, reflexo da sua vocação "constantiniana", nunca abandonada. A Igreja quer o Estado na sua liturgia justamente pela mesma razão por que está sempre disponível para participar nas cerimónias do Estado, e mesmo no próprio poder. No caso português, por exemplo, a sua resistência em abandonar o lugar que ilegitimamente mantém no protocolo de Estado e em abdicar das situações em que beneficia de posições oficiais (como é o caso dos capelães religiosos nos serviços públicos, com relevo para o das Forças Armadas, que goza do estatuto de oficial das Forças Armadas!) mostra ostensivamente a sua incapacidade para aceitar a secularização do Estado e para deixar cortar os laços íntimos que historicamente sempre manteve com o poder político.
A separação entre a esfera do poder político e a esfera religiosa não visa somente respeitar e assegurar a independência do Estado face à Igreja Católica e às religiões em geral (aliás constitucionalmente imposta). Trata-se também, e não menos importante, de respeitar e assegurar a liberdade e autonomia daquelas perante o Estado, sem as quais não existe verdadeira liberdade religiosa nem pluralismo religioso.
O que admira é que ela esteja disposta a transaccionar essa autonomia a troco de umas migalhas de poder áulico ou da sua participação na liturgia do poder político, sobretudo se isso for acompanhado da conservação dos velhos sinais da antiga "obediência espiritual" (e política!) que Roma continua a reclamar dos chefes do poder temporal.
Ora, a firme, e serena, atitude do chefe do Governo espanhol mostra que é possível respeitar devidamente a Igreja Católica e o Papa, sem infringir a separação nem fazer concessões ilegítimas às conveniências. Prouvera que o exemplo espanhol seja seguido em Portugal, incluindo da próxima vez que o Papa visitar o país (diferentemente do que sucedeu da última vez, com a presença oficial do então Presidente da República numa missa em Fátima...). Se a catolicíssima e "fidelíssima" Espanha pôde mostrar que é possível tratar o Vaticano com deferência sem subserviência, outro tanto pode e de ve ser conseguido do lado de cá da fronteira, onde as razões para o servilismo religioso do Estado ainda são menores.

(Público, Terça-feira, 11 de Julho de 2006)

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