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6 de julho de 2006

Os beneficiários 

Por Vital Moreira

Causou algum frémito político a notícia de que um grupo de especialistas propõe que se acabe com as deduções fiscais de que beneficiam as despesas de educação (entre outras). O Governo apressou-se a esclarecer, como convinha, que não foi tomada qualquer decisão política sobre o assunto, e os beneficiários dessa regalia fiscal não perderam tempo a defender o statu quo. Ora, que sentido é que fazem as deduções fiscais de certas despesas e encargos dos contribuintes, e em especial as despesas de educação?
Há duas pechas normalmente atribuídas ao nosso sistema fiscal: por um lado, a sua complexidade, com inúmeras excepções e regimes especiais; por outro lado, a latitude dos benefícios fiscais, com numerosas e generosas deduções à colecta e ao rendimento colectável e outras regalias fiscais. A primeira torna o sistema opaco e de gestão onerosa e difícil, facilitando a evasão e a fuga ao fisco; a segunda tem consideráveis custos fiscais (receita não arrecadada), distorce a igualdade fiscal e prejudica a progressividade do imposto de rendimento, além de proporcionar vantagens a segmentos seleccionados da população, normalmente os titulares de mais altos rendimentos.
Renovando uma iniciativa que vinha de governos anteriores, o actual Governo nomeou um grupo de trabalho, composto por especialistas, para esclarecer a situação existente e para fornecer ideias de reforma. Entre as propostas conhecidas, conta-se justamente a eliminação de benefícios fiscais (lato sensu), designadamente a dedução actualmente prevista para certas despesas, ressalvando somente as despesas de saúde e as aplicações em esquemas complementares de reforma. Segundo a notícia vinda a lume (o relatório ainda não é conhecido publicamente), os especialistas consideram que os impostos não são o instrumento mais idóneo para as políticas sociais e redistributivas, as quais devem passar preferencialmente por subsídios ou pelo fornecimento directo de bens ou serviços pelos poderes públicos.
Deixando de lado a filosofia invocada pelos proponentes para fundamentar a sua proposta, importa discutir se se justifica tal benefício, em termos de justiça social e fiscal. Vejamos a situação. No nosso país, existe um serviço público de ensino, desde o ensino primário ao terciário (superior), que em princípio cobre as necessidades de toda a população. Isso só não sucede no ensino infantil, em que as carências da rede pública são consideráveis e, residualmente, no ensino superior, onde o numerus clausus ainda constitui uma efectiva barreira à entrada em alguns cursos, para os alunos menos classificados. Acresce que a frequência das escolas públicas é gratuita no ensino básico e secundário, sendo a contribuição dos estudantes no ensino superior apenas uma pequena percentagem dos custos envolvidos. Por conseguinte, a dedução das despesas de educação não se justifica no caso do ensino público. Mesmo no caso do ensino infantil, faz mais sentido subsidiar as famílias com menores rendimentos do que estabelecer uma dedução fiscal universal, que favorece sobretudo os mais endinheirados.
Deste modo, os principais beneficiários da referida dedução fiscal são os que têm os filhos a frequentar o ensino privado. Qualquer estudo sociológico mostrará que se trata sobretudo de titulares de rendimentos médios e elevados, que frequentemente por razões de classe ou de status preferem uma escola privativa (preferivelmente uma escola de elite) do que a "escola de toda a gente". No fundo, o desconto fiscal constitui uma forma soft de admitir uma espécie de opting out do sistema público, que a lógica do serviço público universal não poderia consentir. Os interessados não têm o direito de reclamar o reembolso da sua quota-parte no financiamento do sistema público de ensino, mas recuperam a título de dedução fiscal uma parte dos encargos adicionais que a opção pelo ensino privado lhes acarreta.
Os efeitos desta medida em termos de despesa fiscal (receita deixada de cobrar) e de atenuação ou cancelamento da progressividade do IRS (diminuindo substancialmente o montante sujeito a imposto) são conhecidos de toda a gente, sendo provável e desejável que o relatório do grupo de trabalho os contabilize devidamente. É por estas e por outras que a taxa média do IRS sobre o rendimento bruto é entre nós tão baixa, beneficiando obviamente os titulares dos rendimentos mais elevados, já que os outros não têm possibilidade de desviar para essas despesas uma parte considerável dos seus rendimentos.
Menos debatidos, mas de não menor impacto, são os efeitos nefastos sobre os sistemas de serviços públicos correspondentes. Por um lado, a fuga dos abastados para sistemas privados tende a identificar os serviços públicos de ensino e de saúde como a solução dos pobres e não como a solução de toda a gente. Por outro lado, à medida que as elites económicas e sociais (e políticas) fogem para os esquemas privados, elas deixam de ter interesse em melhorar a eficiência e qualidade dos serviços públicos, crescentemente abandonados aos que não podem seguir idêntico caminho. O resultado final é um ciclo vicioso, de crescente abandono e de progressiva tolerância com a degradação dos serviços públicos, desde logo por falta de financiamento adequado, esse mesmo financiamento que o Estado perde condições para prover justamente por causa dos benefícios fiscais que causam considerável perda de receitas.
Ou seja, a dedução fiscal dos encargos com a educação salda-se num favorecimento óbvio do ensino privado e num prejuízo do ensino público. Não por acaso, as escolas privadas gozam ainda de tratamento favorável no que respeita ao IRC. O mesmo vale aliás para a dedução das despesas de saúde, só que aqui ainda não se foi ao ponto de dar tratamento fiscal favorável às clínicas privadas (sem porém omitir a quase imunidade fiscal que a forma de sociedade proporciona aos consultórios médicos...).
Diga-se com toda a frontalidade: num sistema como o nosso, em que o Estado tem a obrigação constitucional de proporcionar certos serviços públicos de qualidade a todos, a título gratuito ou quase, quem quiser optar por não os utilizar (como é, aliás, seu direito) não pode invocar depois nenhum direito a ser desonerado das suas obrigações fiscais por causa dos encargos adicionais que tem por recorrer a serviços privados. Mesmo se existem limites às deduções (no caso da educação, só 30 por cento das despesas podem ser deduzidos, com um limite máximo de 160 por cento do salário mínimo, que pode subir por escalões de mais 30 por cento no caso de três ou mais descendentes com encargos de educação), a sua natureza de privilégio dos segmentos sociais mais ricos não pode ser escamoteado, até porque só eles é que podem arcar com as despesas que não são dedutíveis...
Dito isto, não se podem depositar grandes expectativas quanto ao futuro desta proposta. Não é necessário dispor de estudos sociológicos para verificar que grande parte da "classe governante" (na maioria e na oposição) é beneficiária destas regalias fiscais, independentemente dos partidos. Ora, na ausência de um forte voluntarismo político de quem governa (como sucedeu no ano passado com os regimes especiais do sector público), não se imagina que quem beneficia de regalias ou privilégios esteja disponível para abdicar deles de motu proprio. E depois há o lobby do ensino privado, com a Igreja Católica à cabeça, que teme perder alguma clientela (embora haja boas razões para pensar que não é por causa dos benefícios fiscais que a maior parte dos que optam pela escola privada o fazem).
Seja como for, desta vez a questão foi colocada na ordem do dia por uma entidade alheia à esfera política, com fundamentos técnicos, e não pode ser escamoteada. O Governo e a sua maioria parlamentar vão ter de lhe dar resposta.
(Público, Terça-feira, 4 de Julho de 2006)

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