14 de outubro de 2006
A ameaça coreana
por Ana Gomes
Não foi por acaso que a provocação da Coreia do Norte ocorreu na véspera do Conselho de Segurança nomear o sul-coreano Ban Ki-moon para Secretário-Geral da ONU.
Já em 1993 Pyongyang ameaçara retirar-se do Tratado de Não Proliferação Nuclear (TNP); na altura, a diplomacia do Presidente Clinton conseguiu congelar o programa nuclear norte-coreano. Porém em 2001, o extremismo neo-conservador dominante na Administração Bush rejeitou a proposta do Secretário de Estado Colin Powell de prosseguir a negociação bilateral herdada de Clinton. Seguiu-se a expulsão dos inspectores da AIEA em 2002. Em Janeiro de 2003 Pyongyang retirou-se mesmo do TNP. E entretanto reprocessou plutónio suficiente para várias bombas.
Alguns actores externos, sem querer, ajudaram: na procura de 'estabilidade' a todo o custo na sua área de influência, a China tem sido o primeiro fornecedor de energia, ajuda económica e apoio político a Pyongyang; por isso, o teste nuclear é particularmente humilhante para Beijing, que vê assim expostos os limites da sua influência sobre o regime norte-coreano. A Coreia do Sul, na ânsia de apaziguar a ameaçadora vizinha, também prodigalizou apoio económico a pretexto humanitário, pouco contribuindo para a solução da disputa nuclear e para a própria reunificação da península.
Mas o teste nuclear norte-coreano demonstra sobretudo o falhanço da política de contra-proliferação de Bush, desbaratando o capital diplomático construído por Clinton. Incalculável é também o estrago causado pela invasão do Iraque: atacando-se Bagdad, que fazia "bluff" com as ADM que afinal não tinha, só se incentivou um regime como o norte-coreano (e o iraniano...) a apressar-se a obtê-las; acresce que a gradual aceitação do estatuto nuclear de três potências fora do TNP (Israel, Índia, Paquistão) só instila a sensação de que prevaricar afinal compensa, além de evidenciar que os EUA não têm real empenho na universalização do TNP (além de não o cumprirem).
Resta agora tentar controlar estragos! E como os EUA sozinhos não chegam e nem sequer têm credibilidade, é fundamental que todos os membros do Conselho de Segurança apoiem uma resolução, sob o Capítulo VII da Carta das Nações Unidas, impondo sanções inteligentes contra Pyongyang. É preciso interromper o fornecimento de material que possa ser utilizado para a produção de ADM e inspeccionar cargas de e para a RPDC. É preciso impedir transacções que permitam ao regime financiar o programa nuclear e exportar material bélico. É preciso proibir viagens e importações de artigos de luxo consumidos pelo ditador Kim Jong-Il e pela nomenclatura que o rodeia. Mas, ao mesmo tempo, é fundamental garantir que o povo norte-coreano, que já morre de fome e da execrável desgovernação, não atribua o sofrimento à comunidade internacional e sobretudo não se sinta mais isolado e desapoiado no exterior. Importa por isso manter o apoio humanitário à população civil e investir, incluindo através dos media, no seu contacto com o mundo exterior.
A China ameaçara com "consequências graves" se a RPDC levasse a cabo o teste e já afirmou que a ONU deve tomar "acções apropriadas" contra Pyongyang. Talvez o susto do teste nuclear, o abrandamento da tensão entre Pequim e Tóquio e o risco sério de proliferação em cascata no nordeste asiático levem os EUA a emendar a mão e a liderar, com a China, uma aliança regional para lidar com a RPDC. Mas a ameaça de proliferação nuclear é global. E por isso a UE não pode continuar a assobiar para o lado no que respeita à RPDC.
E lidar com a ameaça vai implicar regime change na RPDC. Não à maneira de Bush, invadindo militarmente, com os desastrosos efeitos do Iraque. Antes pacientemente e por dentro. Quebrando o isolamento do povo norte-coreano. Fomentando e fortalecendo uma oposição democrática contra a ditadura, ajudando à implosão do edifício repressivo. Face à ameaça nuclear e pelos direitos humanos, regime change na Coreia do Norte deve ser prioridade. Assuma-se ou não. Em qualquer caso, a UE não pode confiá-lo apenas às mãos de Washington ou Pequim.
(publicado no "COURRIER INTERNACIONAL" de 13.10.06)
Não foi por acaso que a provocação da Coreia do Norte ocorreu na véspera do Conselho de Segurança nomear o sul-coreano Ban Ki-moon para Secretário-Geral da ONU.
Já em 1993 Pyongyang ameaçara retirar-se do Tratado de Não Proliferação Nuclear (TNP); na altura, a diplomacia do Presidente Clinton conseguiu congelar o programa nuclear norte-coreano. Porém em 2001, o extremismo neo-conservador dominante na Administração Bush rejeitou a proposta do Secretário de Estado Colin Powell de prosseguir a negociação bilateral herdada de Clinton. Seguiu-se a expulsão dos inspectores da AIEA em 2002. Em Janeiro de 2003 Pyongyang retirou-se mesmo do TNP. E entretanto reprocessou plutónio suficiente para várias bombas.
Alguns actores externos, sem querer, ajudaram: na procura de 'estabilidade' a todo o custo na sua área de influência, a China tem sido o primeiro fornecedor de energia, ajuda económica e apoio político a Pyongyang; por isso, o teste nuclear é particularmente humilhante para Beijing, que vê assim expostos os limites da sua influência sobre o regime norte-coreano. A Coreia do Sul, na ânsia de apaziguar a ameaçadora vizinha, também prodigalizou apoio económico a pretexto humanitário, pouco contribuindo para a solução da disputa nuclear e para a própria reunificação da península.
Mas o teste nuclear norte-coreano demonstra sobretudo o falhanço da política de contra-proliferação de Bush, desbaratando o capital diplomático construído por Clinton. Incalculável é também o estrago causado pela invasão do Iraque: atacando-se Bagdad, que fazia "bluff" com as ADM que afinal não tinha, só se incentivou um regime como o norte-coreano (e o iraniano...) a apressar-se a obtê-las; acresce que a gradual aceitação do estatuto nuclear de três potências fora do TNP (Israel, Índia, Paquistão) só instila a sensação de que prevaricar afinal compensa, além de evidenciar que os EUA não têm real empenho na universalização do TNP (além de não o cumprirem).
Resta agora tentar controlar estragos! E como os EUA sozinhos não chegam e nem sequer têm credibilidade, é fundamental que todos os membros do Conselho de Segurança apoiem uma resolução, sob o Capítulo VII da Carta das Nações Unidas, impondo sanções inteligentes contra Pyongyang. É preciso interromper o fornecimento de material que possa ser utilizado para a produção de ADM e inspeccionar cargas de e para a RPDC. É preciso impedir transacções que permitam ao regime financiar o programa nuclear e exportar material bélico. É preciso proibir viagens e importações de artigos de luxo consumidos pelo ditador Kim Jong-Il e pela nomenclatura que o rodeia. Mas, ao mesmo tempo, é fundamental garantir que o povo norte-coreano, que já morre de fome e da execrável desgovernação, não atribua o sofrimento à comunidade internacional e sobretudo não se sinta mais isolado e desapoiado no exterior. Importa por isso manter o apoio humanitário à população civil e investir, incluindo através dos media, no seu contacto com o mundo exterior.
A China ameaçara com "consequências graves" se a RPDC levasse a cabo o teste e já afirmou que a ONU deve tomar "acções apropriadas" contra Pyongyang. Talvez o susto do teste nuclear, o abrandamento da tensão entre Pequim e Tóquio e o risco sério de proliferação em cascata no nordeste asiático levem os EUA a emendar a mão e a liderar, com a China, uma aliança regional para lidar com a RPDC. Mas a ameaça de proliferação nuclear é global. E por isso a UE não pode continuar a assobiar para o lado no que respeita à RPDC.
E lidar com a ameaça vai implicar regime change na RPDC. Não à maneira de Bush, invadindo militarmente, com os desastrosos efeitos do Iraque. Antes pacientemente e por dentro. Quebrando o isolamento do povo norte-coreano. Fomentando e fortalecendo uma oposição democrática contra a ditadura, ajudando à implosão do edifício repressivo. Face à ameaça nuclear e pelos direitos humanos, regime change na Coreia do Norte deve ser prioridade. Assuma-se ou não. Em qualquer caso, a UE não pode confiá-lo apenas às mãos de Washington ou Pequim.
(publicado no "COURRIER INTERNACIONAL" de 13.10.06)
9 de outubro de 2006
Sobrevivências corporativas (2)
Por Vital Moreira
Volto ao tema das sobrevivências corporativas na área da segurança social e dos cuidados de saúde. Na verdade, elas não se reduzem à ADSE, cuja situação abordei em artigo anterior. Longe disso. E também revelam a mesma capacidade de resistência à extinção que aquela.
Recordemos a situação de partida, à data do 25 de Abril. Antes de 1974, no regime corporativo do Estado Novo, os sistemas de Segurança Social e de cuidados de saúde, com excepção da função pública, eram incipientes, fragmentários e, sobretudo, estavam enquadrados na organização corporativa, através das caixas sindicais de previdência, que asseguravam simultaneamente cuidados de saúde e prestações sociais. A excepção a este panorama eram os funcionários públicos, que estavam fora da organização corporativa (não podiam sindicalizar-se, sequer) e a quem o Estado proporcionava um sistema de pensões (a Caixa Geral de Aposentações) e um sistema de cuidados de saúde (a ADSE), ambos de base contributiva, por serem financiados pelo menos em boa parte pelos seus beneficiários. Em qualquer caso, não havia nada de parecido com um serviço nacional de saúde, nem com um sistema geral de Segurança Social.
O 25 de Abril e a Constituição de 1976 vieram trazer uma revolução na esfera dos direitos sociais, da Segurança Social e dos cuidados de saúde (revolução de cujo alcance infelizmente tendemos a esquecermo-nos com excessiva facilidade). Primeiro, foram constitucionalmente reconhecidos e garantidos os direitos à Segurança Social e aos cuidados de saúde. Segundo, foram instituídos dois sistemas públicos destinados a garantir separadamente esses dois direitos a toda a gente (universalidade) e em todas as suas prestações (generalidade). Para a Segurança Social, optou-se por um sistema contributivo, com base em contribuições dos beneficiários para um fundo comum, para cobrir as pensões de velhice e as eventualidades de incapacidade, doença e desemprego. Para os cuidados de saúde optou-se por um sistema de tipo britânico, directamente suportado pelo orçamento do Estado, ou seja, pelos impostos.
Dessa forma, todas as pessoas passaram a estar virtualmente protegidas por sistemas universais de Segurança Social e de cuidados de saúde. O problema eram os mecanismos de tipo sindical-corporativo vindos do antecedente. Se a maior parte deles foram facilmente extintos e os seus beneficiários integrados nos dois sistemas públicos, já o mesmo não sucedeu onde aqueles regimes privativos ofereciam prestações especialmente atraentes ou pertenciam a profissões com especial poder sindical (caso dos empregados bancários) ou com especial influência social e política (caso dos jornalistas e dos advogados). A verdade é que, 30 anos depois da Constituição, subsistem esquemas de Segurança Social e de cuidados de saúde à margem dos respectivos sistemas públicos. Alguns misturam prestações sociais e cuidados de saúde, outros actuam apenas numa dessas vertentes.
Os problemas que essas situações suscitam não têm a ver somente de desconformidade com a Constituição (pelo menos inconstitucionalidade por omissão, na medida em que os beneficiários desses esquemas privativos não foram integrados nos referidos sistemas públicos universais). Há também o problema da igualdade, visto que alguns daqueles sistemas privativos (se não todos) se traduzem em claros privilégios profissionais. E há também, no caso da Segurança Social, as dificuldades criadas para a aplicação da norma constitucional da contagem de todo o tempo de actividade profissional, onde quer que tenha decorrido, para efeitos do cálculo das pensões, dada a mobilidade profissional hoje em dia existente. Por exemplo, no caso de um trabalhador bancário que venha de uma profissão onde descontava para o regime geral, sem porém ter constituído direito a pensão de reforma, não existe meio de contabilizar esse tempo de serviço na pensão a que tem direito do seu banco.
Mas existem situações ainda mais controversas, que são aquelas em que o Estado subsidia ou suporta parcialmente esses regimes privativos, como sucede com o sistema de Segurança Social e de cuidados de saúde privativo dos advogados e dos solicitadores (parcialmente alimentado por receitas de taxas de justiça) e com o regime de cuidados de saúde dos jornalistas, que têm um regime semelhante à ADSE, suportado directamente pelo Estado. Obviamente, existem profissões com afinidades electivas com o Estado...
A verdade é que o Estado tem pouca autoridade para extinguir esses regimes privativos, por duas simples razões. Por um lado, o próprio Estado manteve até ao início do corrente ano um regime privativo de pensões de reforma para os seus funcionários (a Caixa Geral de Aposentações) e continua a suportar o regime privativo de cuidados de saúde para os mesmos funcionários (a ADSE). Por outro lado, no caso dos cuidados de saúde, o Estado aproveitou os diversos subsistemas de saúde privativos para encaixar algumas receitas, fazendo-os pagar os cuidados de saúde que os seus beneficiários recebem no SNS (aos quais teriam direito na mesma, a título gratuito, como quaisquer cidadãos).
As objecções, constitucionais e outras, à existência destes sistemas privativos, nada têm a ver com a existência de mecanismos complementares dos sistemas públicos, que se adicionem a estes. Ninguém está impedido de subscrever um plano de reforma, nem um plano de saúde complementar, para beneficiar de um acréscimo de pensão ou para ter acesso a cuidados de saúde privados, mais prontos ou de melhor qualidade. Mas antes disso existe o direito de beneficiar do sistema geral de Segurança Social e o dever de contribuir para ele, bem como o direito de beneficiar gratuitamente (ou quase...) dos cuidados de saúde do SNS e de contribuir através dos seus impostos para o seu financiamento.
Do que se trata, afinal, nos regimes privativos existentes é do reconhecimento implícito de uma faculdade de opting out dos sistemas públicos, que no caso da saúde não dispensa da obrigação de contribuir para ele (visto que este é financiado por impostos), mas que mesmo aí pode justificar a reivindicação da saída do sistema quanto à própria obrigação de financiamento. Pois, se esses subsistemas libertam o SNS da prestação de cuidados de saúde ou pagam os cuidados que obtêm do SNS, por que é que os seus beneficiários não podem libertar-se do financiamento deste, quando já suportam financeiramente os encargos dos respectivos regimes privativos?
Quando a coerência dos sistemas é sacrificada à inércia ou ao oportunismo, os efeitos colaterais negativos são inevitáveis.
(Público, terça-feira, 3 de Outubro de 2006)
Volto ao tema das sobrevivências corporativas na área da segurança social e dos cuidados de saúde. Na verdade, elas não se reduzem à ADSE, cuja situação abordei em artigo anterior. Longe disso. E também revelam a mesma capacidade de resistência à extinção que aquela.
Recordemos a situação de partida, à data do 25 de Abril. Antes de 1974, no regime corporativo do Estado Novo, os sistemas de Segurança Social e de cuidados de saúde, com excepção da função pública, eram incipientes, fragmentários e, sobretudo, estavam enquadrados na organização corporativa, através das caixas sindicais de previdência, que asseguravam simultaneamente cuidados de saúde e prestações sociais. A excepção a este panorama eram os funcionários públicos, que estavam fora da organização corporativa (não podiam sindicalizar-se, sequer) e a quem o Estado proporcionava um sistema de pensões (a Caixa Geral de Aposentações) e um sistema de cuidados de saúde (a ADSE), ambos de base contributiva, por serem financiados pelo menos em boa parte pelos seus beneficiários. Em qualquer caso, não havia nada de parecido com um serviço nacional de saúde, nem com um sistema geral de Segurança Social.
O 25 de Abril e a Constituição de 1976 vieram trazer uma revolução na esfera dos direitos sociais, da Segurança Social e dos cuidados de saúde (revolução de cujo alcance infelizmente tendemos a esquecermo-nos com excessiva facilidade). Primeiro, foram constitucionalmente reconhecidos e garantidos os direitos à Segurança Social e aos cuidados de saúde. Segundo, foram instituídos dois sistemas públicos destinados a garantir separadamente esses dois direitos a toda a gente (universalidade) e em todas as suas prestações (generalidade). Para a Segurança Social, optou-se por um sistema contributivo, com base em contribuições dos beneficiários para um fundo comum, para cobrir as pensões de velhice e as eventualidades de incapacidade, doença e desemprego. Para os cuidados de saúde optou-se por um sistema de tipo britânico, directamente suportado pelo orçamento do Estado, ou seja, pelos impostos.
Dessa forma, todas as pessoas passaram a estar virtualmente protegidas por sistemas universais de Segurança Social e de cuidados de saúde. O problema eram os mecanismos de tipo sindical-corporativo vindos do antecedente. Se a maior parte deles foram facilmente extintos e os seus beneficiários integrados nos dois sistemas públicos, já o mesmo não sucedeu onde aqueles regimes privativos ofereciam prestações especialmente atraentes ou pertenciam a profissões com especial poder sindical (caso dos empregados bancários) ou com especial influência social e política (caso dos jornalistas e dos advogados). A verdade é que, 30 anos depois da Constituição, subsistem esquemas de Segurança Social e de cuidados de saúde à margem dos respectivos sistemas públicos. Alguns misturam prestações sociais e cuidados de saúde, outros actuam apenas numa dessas vertentes.
Os problemas que essas situações suscitam não têm a ver somente de desconformidade com a Constituição (pelo menos inconstitucionalidade por omissão, na medida em que os beneficiários desses esquemas privativos não foram integrados nos referidos sistemas públicos universais). Há também o problema da igualdade, visto que alguns daqueles sistemas privativos (se não todos) se traduzem em claros privilégios profissionais. E há também, no caso da Segurança Social, as dificuldades criadas para a aplicação da norma constitucional da contagem de todo o tempo de actividade profissional, onde quer que tenha decorrido, para efeitos do cálculo das pensões, dada a mobilidade profissional hoje em dia existente. Por exemplo, no caso de um trabalhador bancário que venha de uma profissão onde descontava para o regime geral, sem porém ter constituído direito a pensão de reforma, não existe meio de contabilizar esse tempo de serviço na pensão a que tem direito do seu banco.
Mas existem situações ainda mais controversas, que são aquelas em que o Estado subsidia ou suporta parcialmente esses regimes privativos, como sucede com o sistema de Segurança Social e de cuidados de saúde privativo dos advogados e dos solicitadores (parcialmente alimentado por receitas de taxas de justiça) e com o regime de cuidados de saúde dos jornalistas, que têm um regime semelhante à ADSE, suportado directamente pelo Estado. Obviamente, existem profissões com afinidades electivas com o Estado...
A verdade é que o Estado tem pouca autoridade para extinguir esses regimes privativos, por duas simples razões. Por um lado, o próprio Estado manteve até ao início do corrente ano um regime privativo de pensões de reforma para os seus funcionários (a Caixa Geral de Aposentações) e continua a suportar o regime privativo de cuidados de saúde para os mesmos funcionários (a ADSE). Por outro lado, no caso dos cuidados de saúde, o Estado aproveitou os diversos subsistemas de saúde privativos para encaixar algumas receitas, fazendo-os pagar os cuidados de saúde que os seus beneficiários recebem no SNS (aos quais teriam direito na mesma, a título gratuito, como quaisquer cidadãos).
As objecções, constitucionais e outras, à existência destes sistemas privativos, nada têm a ver com a existência de mecanismos complementares dos sistemas públicos, que se adicionem a estes. Ninguém está impedido de subscrever um plano de reforma, nem um plano de saúde complementar, para beneficiar de um acréscimo de pensão ou para ter acesso a cuidados de saúde privados, mais prontos ou de melhor qualidade. Mas antes disso existe o direito de beneficiar do sistema geral de Segurança Social e o dever de contribuir para ele, bem como o direito de beneficiar gratuitamente (ou quase...) dos cuidados de saúde do SNS e de contribuir através dos seus impostos para o seu financiamento.
Do que se trata, afinal, nos regimes privativos existentes é do reconhecimento implícito de uma faculdade de opting out dos sistemas públicos, que no caso da saúde não dispensa da obrigação de contribuir para ele (visto que este é financiado por impostos), mas que mesmo aí pode justificar a reivindicação da saída do sistema quanto à própria obrigação de financiamento. Pois, se esses subsistemas libertam o SNS da prestação de cuidados de saúde ou pagam os cuidados que obtêm do SNS, por que é que os seus beneficiários não podem libertar-se do financiamento deste, quando já suportam financeiramente os encargos dos respectivos regimes privativos?
Quando a coerência dos sistemas é sacrificada à inércia ou ao oportunismo, os efeitos colaterais negativos são inevitáveis.
(Público, terça-feira, 3 de Outubro de 2006)
4 de outubro de 2006
Afeganistão: lições da insegurança
por Ana Gomes
O Representante Especial de Javier Solana no Afeganistão, Francesc Vendrell, é um optimista, pelos anos em que perseverou nas Nações Unidas por Timor-Leste. Mas a situação no Afeganistão não está para optimismos: "as duas últimas semanas têm sido mesmo más", sublinhou há dias no Parlamento Europeu.
Os ataques suicidas aumentaram exponencialmente nos últimos meses, em especial na provincia de Kandahar (sul do Afeganistão). 2006 é, de longe, o ano mais sangrento para a ISAF (a missão da NATO) desde a invasão de 2001, necessária e legítima, nos termos da Carta da ONU: 130 soldados mortos.
Duros combates marcaram a recente Operação Medusa da NATO, na provincia de Kandahar, infligindo baixas pesadas aos Talibãs. Mas no combate ao narcotráfico, a derrota é total: entre 2005 e 2006, a área de cultivo de ópio aumentou 50%. O Afeganistão representa hoje 92% da oferta global de ópio - verdadeira ADM assestada à Europa, ouve-se em meios NATO. As fontes de financiamento dos Talibãs - 'fundações islâmicas' nos países do Golfo e o narcotráfico - continuam intactas. No Paquistão continuam movimentações e campos de treino dos Talibãs; nas províncias, a autoridade de Cabul é vista como corrupta, ou, na melhor das hipóteses, ausente...
Como explicar a degradação, num país que em 2002 se prometia não voltar a abandonar nas mãos do terrorismo e do obscurantismo?
Depois da derrota dos Talibãs em 2002, a diplomacia americana, liderada por Colin Powell, propôs o envio de um grande força multinacional de manutenção de paz. Mas o Secretário da Defesa recusou, alegando tradicional aversão dos afegãos em relação a tropas estrangeiras. O consenso hoje é que os afegãos, longe de rejeitar a presença internacional, estavam sedentos de estabilidade e ansiosos por ela, naquela altura. Ora Rumsfeld decidiu só manter 8.000 tropas americanas, concentradas no Sul e no Leste do país, à caça da Al-Qaeda. Durante 18 decisivos meses, a coligação liderada pelos EUA teve zero tropas fora de Cabul. E por isso hoje estão no terreno 20.000 tropas da NATO e 20.000 americanas, a tentar recuperar o tempo perdido e a pagar o preço por querer reconstruir países pelo barato... Porque um outro grave erro foi também não se haver realmente investido na reabilitação e reconstrução do país.
Os erros não acabam aqui: certos membros da ISAF interpretam o mandato, sob o Capítulo VII da Carta da ONU, como sendo de 'manutenção de paz' e não de 'imposição de paz', logo não se dispõem a intervenções mais robustas. Enquanto puderam, trataram de fugir à evidência de que não podiam deixar os EUA combater sozinhos os Talibãs. Muitos ainda impõem limitações operacionais ("caveats") aos seus contingentes.
Depois há o óbvio: recursos insubstituíveis foram desviados do teatro afegão, quando em 2003 se lançou a aventura desastrosa no Iraque. Os resultados estão à vista...
Há lições a tirar:
Primeiro, não chega organizar eleições para ter governo e parlamento legítimos; nem chega imprensa livre, melhoria jurídica da situação das mulheres, inclusão dos senhores da guerra no processo político: nada disto chega para a sustentabilidade de qualquer operação de 'construção nacional' se não houver segurança. A pacificação nos Balcãs deves-se justamente à forte presença de tropas internacionais durante longo período de tempo (11 anos depois, a UE ainda tem 6.000 soldados na Bósnia; 7 anos depois ainda estão 18.000 tropas NATO no Kosovo).
Segundo, a presença internacional pós-conflito tem que ser imediatamente forte e visível: uma vez reacendidos focos de conflito e posta em causa a legitimidade da presença internacional, é muito difícil recuperá-la. Nesse sentido, a fé cega do Pentágono na capacidade de forças locais assumirem rapidamente responsabilidades de segurança - especialmente num país com a história fratricida do Afeganistão - é tão ilusória como nas ADM de Saddam.
Finalmente, mais cedo ou mais tarde há que correr riscos. E, por isso, mais vale cedo, do que tarde. Não se cria segurança sem tropas no terreno, sem arriscar vidas. A Europa não é credível se ficar longe das áreas inseguras nos países em conflito ou a sair dele. Se mandar contingentes apenas para missões inofensivas. Se deixar os EUA (quando estão no terreno, o que não acontece no Congo e Líbano) carregar o fardo das missões de combate, enquanto tropas europeias se limitam a construir pontes. Sem segurança, as pontes voltarão a cair, sob golpes de obus. E as escolas serão usadas como campos de tiro.
Por isso, é errado pensar - e fazer crer - que os 140 paraquedistas portugueses recentemente deslocados para Kandahar não correm mais riscos do que em Cabul. Kandahar é, realmente, zona muito mais perigosa. Quem serve nas Forças Armadas sabe que corre riscos. Os governantes e responsáveis políticos têm o dever de explicar às suas opiniões públicas que se paga um preço pela segurança. E que a segurança das ruas de Lisboa ou do Porto também passa pela segurança de paragens distantes e inóspitas como Panjwayi, no sul do Afeganistão.
(Publicado no DIÁRIO DE NOTICIAS em 1.10.06
O Representante Especial de Javier Solana no Afeganistão, Francesc Vendrell, é um optimista, pelos anos em que perseverou nas Nações Unidas por Timor-Leste. Mas a situação no Afeganistão não está para optimismos: "as duas últimas semanas têm sido mesmo más", sublinhou há dias no Parlamento Europeu.
Os ataques suicidas aumentaram exponencialmente nos últimos meses, em especial na provincia de Kandahar (sul do Afeganistão). 2006 é, de longe, o ano mais sangrento para a ISAF (a missão da NATO) desde a invasão de 2001, necessária e legítima, nos termos da Carta da ONU: 130 soldados mortos.
Duros combates marcaram a recente Operação Medusa da NATO, na provincia de Kandahar, infligindo baixas pesadas aos Talibãs. Mas no combate ao narcotráfico, a derrota é total: entre 2005 e 2006, a área de cultivo de ópio aumentou 50%. O Afeganistão representa hoje 92% da oferta global de ópio - verdadeira ADM assestada à Europa, ouve-se em meios NATO. As fontes de financiamento dos Talibãs - 'fundações islâmicas' nos países do Golfo e o narcotráfico - continuam intactas. No Paquistão continuam movimentações e campos de treino dos Talibãs; nas províncias, a autoridade de Cabul é vista como corrupta, ou, na melhor das hipóteses, ausente...
Como explicar a degradação, num país que em 2002 se prometia não voltar a abandonar nas mãos do terrorismo e do obscurantismo?
Depois da derrota dos Talibãs em 2002, a diplomacia americana, liderada por Colin Powell, propôs o envio de um grande força multinacional de manutenção de paz. Mas o Secretário da Defesa recusou, alegando tradicional aversão dos afegãos em relação a tropas estrangeiras. O consenso hoje é que os afegãos, longe de rejeitar a presença internacional, estavam sedentos de estabilidade e ansiosos por ela, naquela altura. Ora Rumsfeld decidiu só manter 8.000 tropas americanas, concentradas no Sul e no Leste do país, à caça da Al-Qaeda. Durante 18 decisivos meses, a coligação liderada pelos EUA teve zero tropas fora de Cabul. E por isso hoje estão no terreno 20.000 tropas da NATO e 20.000 americanas, a tentar recuperar o tempo perdido e a pagar o preço por querer reconstruir países pelo barato... Porque um outro grave erro foi também não se haver realmente investido na reabilitação e reconstrução do país.
Os erros não acabam aqui: certos membros da ISAF interpretam o mandato, sob o Capítulo VII da Carta da ONU, como sendo de 'manutenção de paz' e não de 'imposição de paz', logo não se dispõem a intervenções mais robustas. Enquanto puderam, trataram de fugir à evidência de que não podiam deixar os EUA combater sozinhos os Talibãs. Muitos ainda impõem limitações operacionais ("caveats") aos seus contingentes.
Depois há o óbvio: recursos insubstituíveis foram desviados do teatro afegão, quando em 2003 se lançou a aventura desastrosa no Iraque. Os resultados estão à vista...
Há lições a tirar:
Primeiro, não chega organizar eleições para ter governo e parlamento legítimos; nem chega imprensa livre, melhoria jurídica da situação das mulheres, inclusão dos senhores da guerra no processo político: nada disto chega para a sustentabilidade de qualquer operação de 'construção nacional' se não houver segurança. A pacificação nos Balcãs deves-se justamente à forte presença de tropas internacionais durante longo período de tempo (11 anos depois, a UE ainda tem 6.000 soldados na Bósnia; 7 anos depois ainda estão 18.000 tropas NATO no Kosovo).
Segundo, a presença internacional pós-conflito tem que ser imediatamente forte e visível: uma vez reacendidos focos de conflito e posta em causa a legitimidade da presença internacional, é muito difícil recuperá-la. Nesse sentido, a fé cega do Pentágono na capacidade de forças locais assumirem rapidamente responsabilidades de segurança - especialmente num país com a história fratricida do Afeganistão - é tão ilusória como nas ADM de Saddam.
Finalmente, mais cedo ou mais tarde há que correr riscos. E, por isso, mais vale cedo, do que tarde. Não se cria segurança sem tropas no terreno, sem arriscar vidas. A Europa não é credível se ficar longe das áreas inseguras nos países em conflito ou a sair dele. Se mandar contingentes apenas para missões inofensivas. Se deixar os EUA (quando estão no terreno, o que não acontece no Congo e Líbano) carregar o fardo das missões de combate, enquanto tropas europeias se limitam a construir pontes. Sem segurança, as pontes voltarão a cair, sob golpes de obus. E as escolas serão usadas como campos de tiro.
Por isso, é errado pensar - e fazer crer - que os 140 paraquedistas portugueses recentemente deslocados para Kandahar não correm mais riscos do que em Cabul. Kandahar é, realmente, zona muito mais perigosa. Quem serve nas Forças Armadas sabe que corre riscos. Os governantes e responsáveis políticos têm o dever de explicar às suas opiniões públicas que se paga um preço pela segurança. E que a segurança das ruas de Lisboa ou do Porto também passa pela segurança de paragens distantes e inóspitas como Panjwayi, no sul do Afeganistão.
(Publicado no DIÁRIO DE NOTICIAS em 1.10.06
Irrelevante, a ONU ?
por Ana Gomes
A 61ª Assembleia Geral da ONU averba já vários episódios grotescos: Chavez a chamar "diabo" a Bush; este "vendendo" a versão surreal de um Médio Oriente 'no bom caminho'; Ahmadinejad denunciando a injustiça no Iraque, mas ignorando Darfur, onde muçulmanos massacram muçulmanos, etc.... Mas também há intervenções esperançosas como a de Mahmoud Abbas, defendendo um governo de unidade nacional palestiniano que reconheça Israel e renuncie à violência. Ou de Tzipi Livni, a MNE israelita admitindo que os palestinianos "têm direito à liberdade e a existirem como nação soberana num Estado próprio". A cacofonia, o desencontro de mensagens, de prioridades e de perspectivas, constituem a razão de ser da ONU.
Desde a fundação, a ONU esteve sempre sob fogo. Mas, ao contrário das profecias desvalorizadoras de muitos cépticos - designadamente Bush e Blair, nas vésperas da invasão do Iraque - a ONU continua relevante e constitui até, cada vez mais, principal eixo de acção e fonte de legitimidade para qualquer iniciativa em questões de paz e segurança. De facto, nunca a ONU foi tão requisitada: em Julho de 2006 havia quase 73.000 capacetes azuis activos em diferentes regiões do planeta.
Recentemente, missões da ONU têm sido indispensáveis para assegurar a transição para a paz em países tão diversos como o (sul do) Sudão, o Líbano, a RD Congo, o Haiti, o Burundi, a Libéria e Timor-Leste. Só em Agosto passado, o Conselho de Segurança aprovou três resoluções (Líbano, Timor Leste e Darfur) que prevêm a colocação no terreno de mais 37.000 capacetes azuis - um aumento de 50%. Nada mau para uma instituição que há quem apresente como "inútil e ultrapassada".
O que isto demonstra não é a imperfeição do sistema da ONU (imperfeição óbvia e agravada pela ausência de reforma do Conselho de Segurança), mas sim a falta de alternativas à ONU como instrumento principal para procurar (sublinho o procurar) garantir a paz e a segurança globais. A não ser que se prefira a lei da selva ao direito internacional, a ausência de sistema (ou um sistema baseado na arbitragem do mais forte) a um sistema multilateral que, mesmo defeituoso, permita aos diferentes actores comunicarem para resolver conflitos e problemas.
Mesmo sem a noção abrangente de "segurança humana" (que implica combate à pobreza, subdesenvolvimento, pandemias, etc. em que a ONU é insubstituível), pode lamentar-se que as Nações Unidas não tenham conseguido pôr fim ao conflito israelo-palestiniano, impedido a invasão criminosa do Iraque, ou obrigado o Irão a interromper a corrida para a bomba nuclear. No entanto, é a ONU que, através do ACNUR, dá esperança a milhões de refugiados pelo mundo inteiro. É a UNRWA que minora trágicas consequências do conflito israelo-árabe, acorrendo a milhões de palestinianos; é a ONU que é chamada pelos EUA a coordenar o esforço internacional para tentar salvar o que resta do Iraque; é uma agência da ONU, a AIEA, a única fonte de avaliação credível para todos os actores da crise nuclear iraniana. Em todos estes focos de insegurança, a ONU faz o que pode em circunstâncias de tremenda adversidade. Não faz milagres. Porque, acima de tudo, depende da vontade, dos fundos e da influência dos seus Estados Membros. Principalmente dos que se sentam no Conselho de Segurança - e, entre estes, essencialmente, dos cinco Membros Permanentes. Que são também quem, há anos, realmente bloqueia a reforma do Conselho e, portanto, de todo o sistema.
Guerra e conflitos estão para ficar. Urge reformar a ONU, dar ao Conselho de Segurança mais representatividade, legitimidade e autoridade: disso depende a sua eficácia. Urge dotar as Operações de Manutenção de Paz de fundos e meios humanos para responder a tempo à procura crescente de capacetes azuis.
Tal como atacar a democracia a pretexto de que ela está 'podre' ignora a responsabilidade de todos em contribuir para a sua vitalidade, os ataques à 'utilidade' da ONU não passam de manobras de diversão de quem, realmente, está contra o multilateralismo eficaz.
(publicado no COURRIER INTERNACIONAL em 29/9/06)
A 61ª Assembleia Geral da ONU averba já vários episódios grotescos: Chavez a chamar "diabo" a Bush; este "vendendo" a versão surreal de um Médio Oriente 'no bom caminho'; Ahmadinejad denunciando a injustiça no Iraque, mas ignorando Darfur, onde muçulmanos massacram muçulmanos, etc.... Mas também há intervenções esperançosas como a de Mahmoud Abbas, defendendo um governo de unidade nacional palestiniano que reconheça Israel e renuncie à violência. Ou de Tzipi Livni, a MNE israelita admitindo que os palestinianos "têm direito à liberdade e a existirem como nação soberana num Estado próprio". A cacofonia, o desencontro de mensagens, de prioridades e de perspectivas, constituem a razão de ser da ONU.
Desde a fundação, a ONU esteve sempre sob fogo. Mas, ao contrário das profecias desvalorizadoras de muitos cépticos - designadamente Bush e Blair, nas vésperas da invasão do Iraque - a ONU continua relevante e constitui até, cada vez mais, principal eixo de acção e fonte de legitimidade para qualquer iniciativa em questões de paz e segurança. De facto, nunca a ONU foi tão requisitada: em Julho de 2006 havia quase 73.000 capacetes azuis activos em diferentes regiões do planeta.
Recentemente, missões da ONU têm sido indispensáveis para assegurar a transição para a paz em países tão diversos como o (sul do) Sudão, o Líbano, a RD Congo, o Haiti, o Burundi, a Libéria e Timor-Leste. Só em Agosto passado, o Conselho de Segurança aprovou três resoluções (Líbano, Timor Leste e Darfur) que prevêm a colocação no terreno de mais 37.000 capacetes azuis - um aumento de 50%. Nada mau para uma instituição que há quem apresente como "inútil e ultrapassada".
O que isto demonstra não é a imperfeição do sistema da ONU (imperfeição óbvia e agravada pela ausência de reforma do Conselho de Segurança), mas sim a falta de alternativas à ONU como instrumento principal para procurar (sublinho o procurar) garantir a paz e a segurança globais. A não ser que se prefira a lei da selva ao direito internacional, a ausência de sistema (ou um sistema baseado na arbitragem do mais forte) a um sistema multilateral que, mesmo defeituoso, permita aos diferentes actores comunicarem para resolver conflitos e problemas.
Mesmo sem a noção abrangente de "segurança humana" (que implica combate à pobreza, subdesenvolvimento, pandemias, etc. em que a ONU é insubstituível), pode lamentar-se que as Nações Unidas não tenham conseguido pôr fim ao conflito israelo-palestiniano, impedido a invasão criminosa do Iraque, ou obrigado o Irão a interromper a corrida para a bomba nuclear. No entanto, é a ONU que, através do ACNUR, dá esperança a milhões de refugiados pelo mundo inteiro. É a UNRWA que minora trágicas consequências do conflito israelo-árabe, acorrendo a milhões de palestinianos; é a ONU que é chamada pelos EUA a coordenar o esforço internacional para tentar salvar o que resta do Iraque; é uma agência da ONU, a AIEA, a única fonte de avaliação credível para todos os actores da crise nuclear iraniana. Em todos estes focos de insegurança, a ONU faz o que pode em circunstâncias de tremenda adversidade. Não faz milagres. Porque, acima de tudo, depende da vontade, dos fundos e da influência dos seus Estados Membros. Principalmente dos que se sentam no Conselho de Segurança - e, entre estes, essencialmente, dos cinco Membros Permanentes. Que são também quem, há anos, realmente bloqueia a reforma do Conselho e, portanto, de todo o sistema.
Guerra e conflitos estão para ficar. Urge reformar a ONU, dar ao Conselho de Segurança mais representatividade, legitimidade e autoridade: disso depende a sua eficácia. Urge dotar as Operações de Manutenção de Paz de fundos e meios humanos para responder a tempo à procura crescente de capacetes azuis.
Tal como atacar a democracia a pretexto de que ela está 'podre' ignora a responsabilidade de todos em contribuir para a sua vitalidade, os ataques à 'utilidade' da ONU não passam de manobras de diversão de quem, realmente, está contra o multilateralismo eficaz.
(publicado no COURRIER INTERNACIONAL em 29/9/06)
A direita que não diz o seu nome
Por Vital Moreira
O conclave do "Compromisso Portugal" traduziu-se na convergência da elite dos interesses (empresários, gestores, advogados de negócios) com a direita liberal de extracção doutrinária, que pontificou na preparação dos documentos de base e na comissão promotora. Com ideias mais à direita do que as do PSD e menos conservadoras do que as do CDS-PP, a plataforma do Convento do Beato deu expressão a uma direita (neo)liberal intersticial que anda à procura da sua expressão orgânica como grupo de pressão sobre o Estado e sobre os partidos. A prometida ?institucionalização? do "movimento" pode bem vir a ter impacto na configuração política tradicional da direita em Portugal.
Descartem-se à partida as pretensões "apolíticas" dos protagonistas da referida iniciativa. Seria difícil imaginar uma iniciativa mais retintamente política e ideológica do que esta. Basta ver as listas dos promotores e dos intervenientes, para verificar a considerável presença tanto de pessoas com notório passado de intervenção político-partidária (sobretudo ligadas ao PSD), como de conspícuos doutrinadores da direita liberal e ultraliberal em Portugal, expoentes das suas publicações mais aguerridas. A tentativa de negação da inocultável dimensão político-ideológica do evento é em si mesma uma forma ideológica de "vender" o movimento como uma iniciativa da "sociedade civil", necessariamente apolítica e tendencialmente "técnica" e desinteressada. Mas a verdade é que o dito movimento não passa de uma representação , aliás assaz elitista, da direita política de inspiração neoliberal.
Tal como antigamente os partidos da esquerda revolucionária fomentavam movimentos frentistas para alargar a sua mensagem e preservar a sua própria "genuinidade de classe", também agora os partidos da direita tiram proveito de alegados movimentos da "sociedade civil" para veicular as suas posições e pontos de vista perante auditórios mais alargados. Com uma diferença, porém. Enquanto os movimentos frentistas dos partidos da esquerda revolucionária eram mais moderados, menos doutrinários e socialmente mais heterogéneos do que estes, agora os movimentos da direita são mais radicais, mais doutrinários e mais elitistas do que os partidos da mesma área.
O radicalismo liberal das propostas do "Compromisso Portugal" é evidente em várias áreas onde a vulgata neoliberal surge em todo o seu esplendor. Tal é o caso da redução do Estado a tarefas mínimas e da reconfiguração da educação, da saúde e da segurança social (noção propositadamente substituída por "protecção social") segundo a nova cartilha. A orientação geral é a desmontagem das traves-mestras do Estado Social, tanto no que respeita ao tendencial afastamento do Estado da esfera social como na privatização dos mecanismos de garantia dos principais direitos sociais (direito à educação, direito à segurança social, direito à saúde).
No caso do emagrecimento do Estado, o excesso de zelo vai ao ponto de defender a lunática ideia de reduzir 200 000 funcionários públicos em cinco anos. No caso dos serviços públicos fundamentais do Estado social, a linha de orientação consiste em reduzi-los à garantia de esquemas mínimos para os mais necessitados, deixando à responsabilidade individual dos que podem a promoção dos seus próprios interesses individuais nessas áreas. Daí a generalização dogmática do princípio do utente-pagador, bem como da liberdade de escolha entre o público e o privado (escolas, hospitais, etc.), mesmo no caso de serviços suportados pelo Estado, e ainda a privatização da gestão dos referidos estabelecimentos públicos.
A proposta mais radical é obviamente a respeitante ao sistema de segurança social, o qual seria fragmentado num sistema público de assistência social para os carenciados, num sistema de seguros individuais para as eventualidades de doença, desemprego, etc. e num sistema autónomo de pensões de reforma, que passaria a assentar em deduções para contas individuais de capitalização. Para financiar o enorme défice em que o actual sistema de segurança social incorreria pelo facto de deixar de receber as actuais contribuições dos beneficiários, os defensores daquela "revolução" não têm outro meio do que propor a sua cobertura pela emissão de uma gigantesca dívida pública nas próximas quatro décadas, a pagar durante quase um século. Como é fácil ver, trata-se de uma ideia ainda mais radical do que a do PSD -- pois este propõe um sistema misto, embora predominantemente assente sobre as contas individuais de capitalização -- sendo de questionar se ela não é propositadamente ultra-radical só para fazer da proposta do PSD uma ideia "moderada".
Esta proposta relativa à protecção social, em geral, e ao sistema de pensões, em especial, é a que mais notoriamente revela a "visão" doutrinária do CP, na medida em que visa substituir uma modelo de solidariedade intrageracional e intergeracional por um sistema dualista, composto por uma componente pública de mínimos para os mais pobres e por uma componente de capitalização puramente individualista para os demais. De resto, é esse mesmo esquema dualista que perpassa por todas as propostas neoliberais no domínio social, substituindo os sistemas públicos de vocação universal (sistema nacional de saúde, sistema geral de segurança social) por sistemas públicos destinados somente aos carenciados, enquanto os demais ficam livres para procurar no mercado os serviços de que necessitam.
É evidente que nem tudo nas ideias do CP compartilha deste radicalismo liberal. Há muitos diagnósticos e muitas ideias certeiras em áreas menos vulneráveis aos dogmas e à ideologia privatistas, por exemplo na justiça e no ordenamento do território. Por outro lado, no domínio da economia e da empresa, as propostas não se afastam muito das ideias já tradicionais da direita (privatizações, facilitação dos despedimentos, redução dos impostos e da sua progressividade, etc.). Porém o que marca as propostas do CP sãos as que dizem respeito à função do Estado e aos direitos sociais. Aí, sim, há uma verdadeira declaração de guerra ideológica, em nome da "teologia" da iniciativa privada e da restrição das prestações públicas a uma função de garantia de mínimos para os mais necessitados, estabelecendo uma espécie "apartheid" social entre os "have" e os "have nots". Nesse aspecto, a reunião do Beato traduziu-se numa ostensiva ofensiva ideológica contra o modelo social saído da revolução de 25 de Abril e da Constit
Um dos fundamentos para as teses da convergência da esquerda e da direita foi, por um lado, a conversão da direita aos direitos sociais e, por outro lado, a conversão da esquerda à economia de mercado e ao liberalismo económico. Mas essa tese só tinha sentido se se mantivesse o compromisso histórico entre a direita e a esquerda no que respeita ao Estado social, que na Europa resultou de uma "parceria" entre a democracia cristã e a social-democracia. Mas esse pressuposto não se verifica hoje em dia. É que enquanto a esquerda, convertida à economia de mercado e à eficiência económica, se mantém fiel ao modelo social europeu e ao papel do Estado na garantia do mesmo, já a direita liberal abandonou esse compromisso e partiu em guerra contra ele. Por isso, se é certo que a economia deixou de separar fundamentalmente a direita e a esquerda social-democrata, já assim não sucede, longe disso, no que respeita ao
A assembleia do Beato teve o mérito de nos recordar e tornar incontornável essa evidência. Quando se sustenta, por exemplo, que a desigualdade de rendimentos se combate com a concorrência económica, então é evidente que há um mundo a separar duas visões distintas da sociedade e do papel do Estado.
(Público, 3ª feira, 26 de Setembrode 2006)
O conclave do "Compromisso Portugal" traduziu-se na convergência da elite dos interesses (empresários, gestores, advogados de negócios) com a direita liberal de extracção doutrinária, que pontificou na preparação dos documentos de base e na comissão promotora. Com ideias mais à direita do que as do PSD e menos conservadoras do que as do CDS-PP, a plataforma do Convento do Beato deu expressão a uma direita (neo)liberal intersticial que anda à procura da sua expressão orgânica como grupo de pressão sobre o Estado e sobre os partidos. A prometida ?institucionalização? do "movimento" pode bem vir a ter impacto na configuração política tradicional da direita em Portugal.
Descartem-se à partida as pretensões "apolíticas" dos protagonistas da referida iniciativa. Seria difícil imaginar uma iniciativa mais retintamente política e ideológica do que esta. Basta ver as listas dos promotores e dos intervenientes, para verificar a considerável presença tanto de pessoas com notório passado de intervenção político-partidária (sobretudo ligadas ao PSD), como de conspícuos doutrinadores da direita liberal e ultraliberal em Portugal, expoentes das suas publicações mais aguerridas. A tentativa de negação da inocultável dimensão político-ideológica do evento é em si mesma uma forma ideológica de "vender" o movimento como uma iniciativa da "sociedade civil", necessariamente apolítica e tendencialmente "técnica" e desinteressada. Mas a verdade é que o dito movimento não passa de uma representação , aliás assaz elitista, da direita política de inspiração neoliberal.
Tal como antigamente os partidos da esquerda revolucionária fomentavam movimentos frentistas para alargar a sua mensagem e preservar a sua própria "genuinidade de classe", também agora os partidos da direita tiram proveito de alegados movimentos da "sociedade civil" para veicular as suas posições e pontos de vista perante auditórios mais alargados. Com uma diferença, porém. Enquanto os movimentos frentistas dos partidos da esquerda revolucionária eram mais moderados, menos doutrinários e socialmente mais heterogéneos do que estes, agora os movimentos da direita são mais radicais, mais doutrinários e mais elitistas do que os partidos da mesma área.
O radicalismo liberal das propostas do "Compromisso Portugal" é evidente em várias áreas onde a vulgata neoliberal surge em todo o seu esplendor. Tal é o caso da redução do Estado a tarefas mínimas e da reconfiguração da educação, da saúde e da segurança social (noção propositadamente substituída por "protecção social") segundo a nova cartilha. A orientação geral é a desmontagem das traves-mestras do Estado Social, tanto no que respeita ao tendencial afastamento do Estado da esfera social como na privatização dos mecanismos de garantia dos principais direitos sociais (direito à educação, direito à segurança social, direito à saúde).
No caso do emagrecimento do Estado, o excesso de zelo vai ao ponto de defender a lunática ideia de reduzir 200 000 funcionários públicos em cinco anos. No caso dos serviços públicos fundamentais do Estado social, a linha de orientação consiste em reduzi-los à garantia de esquemas mínimos para os mais necessitados, deixando à responsabilidade individual dos que podem a promoção dos seus próprios interesses individuais nessas áreas. Daí a generalização dogmática do princípio do utente-pagador, bem como da liberdade de escolha entre o público e o privado (escolas, hospitais, etc.), mesmo no caso de serviços suportados pelo Estado, e ainda a privatização da gestão dos referidos estabelecimentos públicos.
A proposta mais radical é obviamente a respeitante ao sistema de segurança social, o qual seria fragmentado num sistema público de assistência social para os carenciados, num sistema de seguros individuais para as eventualidades de doença, desemprego, etc. e num sistema autónomo de pensões de reforma, que passaria a assentar em deduções para contas individuais de capitalização. Para financiar o enorme défice em que o actual sistema de segurança social incorreria pelo facto de deixar de receber as actuais contribuições dos beneficiários, os defensores daquela "revolução" não têm outro meio do que propor a sua cobertura pela emissão de uma gigantesca dívida pública nas próximas quatro décadas, a pagar durante quase um século. Como é fácil ver, trata-se de uma ideia ainda mais radical do que a do PSD -- pois este propõe um sistema misto, embora predominantemente assente sobre as contas individuais de capitalização -- sendo de questionar se ela não é propositadamente ultra-radical só para fazer da proposta do PSD uma ideia "moderada".
Esta proposta relativa à protecção social, em geral, e ao sistema de pensões, em especial, é a que mais notoriamente revela a "visão" doutrinária do CP, na medida em que visa substituir uma modelo de solidariedade intrageracional e intergeracional por um sistema dualista, composto por uma componente pública de mínimos para os mais pobres e por uma componente de capitalização puramente individualista para os demais. De resto, é esse mesmo esquema dualista que perpassa por todas as propostas neoliberais no domínio social, substituindo os sistemas públicos de vocação universal (sistema nacional de saúde, sistema geral de segurança social) por sistemas públicos destinados somente aos carenciados, enquanto os demais ficam livres para procurar no mercado os serviços de que necessitam.
É evidente que nem tudo nas ideias do CP compartilha deste radicalismo liberal. Há muitos diagnósticos e muitas ideias certeiras em áreas menos vulneráveis aos dogmas e à ideologia privatistas, por exemplo na justiça e no ordenamento do território. Por outro lado, no domínio da economia e da empresa, as propostas não se afastam muito das ideias já tradicionais da direita (privatizações, facilitação dos despedimentos, redução dos impostos e da sua progressividade, etc.). Porém o que marca as propostas do CP sãos as que dizem respeito à função do Estado e aos direitos sociais. Aí, sim, há uma verdadeira declaração de guerra ideológica, em nome da "teologia" da iniciativa privada e da restrição das prestações públicas a uma função de garantia de mínimos para os mais necessitados, estabelecendo uma espécie "apartheid" social entre os "have" e os "have nots". Nesse aspecto, a reunião do Beato traduziu-se numa ostensiva ofensiva ideológica contra o modelo social saído da revolução de 25 de Abril e da Constit
Um dos fundamentos para as teses da convergência da esquerda e da direita foi, por um lado, a conversão da direita aos direitos sociais e, por outro lado, a conversão da esquerda à economia de mercado e ao liberalismo económico. Mas essa tese só tinha sentido se se mantivesse o compromisso histórico entre a direita e a esquerda no que respeita ao Estado social, que na Europa resultou de uma "parceria" entre a democracia cristã e a social-democracia. Mas esse pressuposto não se verifica hoje em dia. É que enquanto a esquerda, convertida à economia de mercado e à eficiência económica, se mantém fiel ao modelo social europeu e ao papel do Estado na garantia do mesmo, já a direita liberal abandonou esse compromisso e partiu em guerra contra ele. Por isso, se é certo que a economia deixou de separar fundamentalmente a direita e a esquerda social-democrata, já assim não sucede, longe disso, no que respeita ao
A assembleia do Beato teve o mérito de nos recordar e tornar incontornável essa evidência. Quando se sustenta, por exemplo, que a desigualdade de rendimentos se combate com a concorrência económica, então é evidente que há um mundo a separar duas visões distintas da sociedade e do papel do Estado.
(Público, 3ª feira, 26 de Setembrode 2006)