14 de outubro de 2006
A ameaça coreana
por Ana Gomes
Não foi por acaso que a provocação da Coreia do Norte ocorreu na véspera do Conselho de Segurança nomear o sul-coreano Ban Ki-moon para Secretário-Geral da ONU.
Já em 1993 Pyongyang ameaçara retirar-se do Tratado de Não Proliferação Nuclear (TNP); na altura, a diplomacia do Presidente Clinton conseguiu congelar o programa nuclear norte-coreano. Porém em 2001, o extremismo neo-conservador dominante na Administração Bush rejeitou a proposta do Secretário de Estado Colin Powell de prosseguir a negociação bilateral herdada de Clinton. Seguiu-se a expulsão dos inspectores da AIEA em 2002. Em Janeiro de 2003 Pyongyang retirou-se mesmo do TNP. E entretanto reprocessou plutónio suficiente para várias bombas.
Alguns actores externos, sem querer, ajudaram: na procura de 'estabilidade' a todo o custo na sua área de influência, a China tem sido o primeiro fornecedor de energia, ajuda económica e apoio político a Pyongyang; por isso, o teste nuclear é particularmente humilhante para Beijing, que vê assim expostos os limites da sua influência sobre o regime norte-coreano. A Coreia do Sul, na ânsia de apaziguar a ameaçadora vizinha, também prodigalizou apoio económico a pretexto humanitário, pouco contribuindo para a solução da disputa nuclear e para a própria reunificação da península.
Mas o teste nuclear norte-coreano demonstra sobretudo o falhanço da política de contra-proliferação de Bush, desbaratando o capital diplomático construído por Clinton. Incalculável é também o estrago causado pela invasão do Iraque: atacando-se Bagdad, que fazia "bluff" com as ADM que afinal não tinha, só se incentivou um regime como o norte-coreano (e o iraniano...) a apressar-se a obtê-las; acresce que a gradual aceitação do estatuto nuclear de três potências fora do TNP (Israel, Índia, Paquistão) só instila a sensação de que prevaricar afinal compensa, além de evidenciar que os EUA não têm real empenho na universalização do TNP (além de não o cumprirem).
Resta agora tentar controlar estragos! E como os EUA sozinhos não chegam e nem sequer têm credibilidade, é fundamental que todos os membros do Conselho de Segurança apoiem uma resolução, sob o Capítulo VII da Carta das Nações Unidas, impondo sanções inteligentes contra Pyongyang. É preciso interromper o fornecimento de material que possa ser utilizado para a produção de ADM e inspeccionar cargas de e para a RPDC. É preciso impedir transacções que permitam ao regime financiar o programa nuclear e exportar material bélico. É preciso proibir viagens e importações de artigos de luxo consumidos pelo ditador Kim Jong-Il e pela nomenclatura que o rodeia. Mas, ao mesmo tempo, é fundamental garantir que o povo norte-coreano, que já morre de fome e da execrável desgovernação, não atribua o sofrimento à comunidade internacional e sobretudo não se sinta mais isolado e desapoiado no exterior. Importa por isso manter o apoio humanitário à população civil e investir, incluindo através dos media, no seu contacto com o mundo exterior.
A China ameaçara com "consequências graves" se a RPDC levasse a cabo o teste e já afirmou que a ONU deve tomar "acções apropriadas" contra Pyongyang. Talvez o susto do teste nuclear, o abrandamento da tensão entre Pequim e Tóquio e o risco sério de proliferação em cascata no nordeste asiático levem os EUA a emendar a mão e a liderar, com a China, uma aliança regional para lidar com a RPDC. Mas a ameaça de proliferação nuclear é global. E por isso a UE não pode continuar a assobiar para o lado no que respeita à RPDC.
E lidar com a ameaça vai implicar regime change na RPDC. Não à maneira de Bush, invadindo militarmente, com os desastrosos efeitos do Iraque. Antes pacientemente e por dentro. Quebrando o isolamento do povo norte-coreano. Fomentando e fortalecendo uma oposição democrática contra a ditadura, ajudando à implosão do edifício repressivo. Face à ameaça nuclear e pelos direitos humanos, regime change na Coreia do Norte deve ser prioridade. Assuma-se ou não. Em qualquer caso, a UE não pode confiá-lo apenas às mãos de Washington ou Pequim.
(publicado no "COURRIER INTERNACIONAL" de 13.10.06)
Não foi por acaso que a provocação da Coreia do Norte ocorreu na véspera do Conselho de Segurança nomear o sul-coreano Ban Ki-moon para Secretário-Geral da ONU.
Já em 1993 Pyongyang ameaçara retirar-se do Tratado de Não Proliferação Nuclear (TNP); na altura, a diplomacia do Presidente Clinton conseguiu congelar o programa nuclear norte-coreano. Porém em 2001, o extremismo neo-conservador dominante na Administração Bush rejeitou a proposta do Secretário de Estado Colin Powell de prosseguir a negociação bilateral herdada de Clinton. Seguiu-se a expulsão dos inspectores da AIEA em 2002. Em Janeiro de 2003 Pyongyang retirou-se mesmo do TNP. E entretanto reprocessou plutónio suficiente para várias bombas.
Alguns actores externos, sem querer, ajudaram: na procura de 'estabilidade' a todo o custo na sua área de influência, a China tem sido o primeiro fornecedor de energia, ajuda económica e apoio político a Pyongyang; por isso, o teste nuclear é particularmente humilhante para Beijing, que vê assim expostos os limites da sua influência sobre o regime norte-coreano. A Coreia do Sul, na ânsia de apaziguar a ameaçadora vizinha, também prodigalizou apoio económico a pretexto humanitário, pouco contribuindo para a solução da disputa nuclear e para a própria reunificação da península.
Mas o teste nuclear norte-coreano demonstra sobretudo o falhanço da política de contra-proliferação de Bush, desbaratando o capital diplomático construído por Clinton. Incalculável é também o estrago causado pela invasão do Iraque: atacando-se Bagdad, que fazia "bluff" com as ADM que afinal não tinha, só se incentivou um regime como o norte-coreano (e o iraniano...) a apressar-se a obtê-las; acresce que a gradual aceitação do estatuto nuclear de três potências fora do TNP (Israel, Índia, Paquistão) só instila a sensação de que prevaricar afinal compensa, além de evidenciar que os EUA não têm real empenho na universalização do TNP (além de não o cumprirem).
Resta agora tentar controlar estragos! E como os EUA sozinhos não chegam e nem sequer têm credibilidade, é fundamental que todos os membros do Conselho de Segurança apoiem uma resolução, sob o Capítulo VII da Carta das Nações Unidas, impondo sanções inteligentes contra Pyongyang. É preciso interromper o fornecimento de material que possa ser utilizado para a produção de ADM e inspeccionar cargas de e para a RPDC. É preciso impedir transacções que permitam ao regime financiar o programa nuclear e exportar material bélico. É preciso proibir viagens e importações de artigos de luxo consumidos pelo ditador Kim Jong-Il e pela nomenclatura que o rodeia. Mas, ao mesmo tempo, é fundamental garantir que o povo norte-coreano, que já morre de fome e da execrável desgovernação, não atribua o sofrimento à comunidade internacional e sobretudo não se sinta mais isolado e desapoiado no exterior. Importa por isso manter o apoio humanitário à população civil e investir, incluindo através dos media, no seu contacto com o mundo exterior.
A China ameaçara com "consequências graves" se a RPDC levasse a cabo o teste e já afirmou que a ONU deve tomar "acções apropriadas" contra Pyongyang. Talvez o susto do teste nuclear, o abrandamento da tensão entre Pequim e Tóquio e o risco sério de proliferação em cascata no nordeste asiático levem os EUA a emendar a mão e a liderar, com a China, uma aliança regional para lidar com a RPDC. Mas a ameaça de proliferação nuclear é global. E por isso a UE não pode continuar a assobiar para o lado no que respeita à RPDC.
E lidar com a ameaça vai implicar regime change na RPDC. Não à maneira de Bush, invadindo militarmente, com os desastrosos efeitos do Iraque. Antes pacientemente e por dentro. Quebrando o isolamento do povo norte-coreano. Fomentando e fortalecendo uma oposição democrática contra a ditadura, ajudando à implosão do edifício repressivo. Face à ameaça nuclear e pelos direitos humanos, regime change na Coreia do Norte deve ser prioridade. Assuma-se ou não. Em qualquer caso, a UE não pode confiá-lo apenas às mãos de Washington ou Pequim.
(publicado no "COURRIER INTERNACIONAL" de 13.10.06)