30 de novembro de 2006
O império dos automóveis
Por Vital Moreira
A política de "modernização do país", que é a grande linha condutora do discurso de José Sócrates, está focada principalmente no investimento em infra-estruturas, na educação, ciência e inovação tecnológica e na reforma da administração e das instituições do Estado. Tudo isso é essencial, e o êxito político desse programa - para mais, num contexto de apertada disciplina das finanças públicas - só prova que a opinião pública compreende e responde bem a esse desafio. No entanto, a modernização do país não pode passar só por aí, mas também por outros planos, como a correcção do desordenamento territorial, da indisciplina urbanística, da degradação urbana, da falta de educação e de responsabilidade cívica.
Tomemos o caso da desordem automobilística em quase todas as cidades, especialmente em Lisboa. Duvido que, com a possível excepção da Grécia, haja na UE cidades tão dominadas pelos automóveis como as nossas. E isso não tem a ver somente com a grande dimensão do nosso parque automobilístico, o que não deixa de ser um fenómeno surpreendente, tendo em conta o nosso nível de vida. A razão do caos automobilístico das nossas cidades deve-se essencialmente a erradas políticas de ordenamento urbanístico, de transportes públicos, etc. e à prevalência do automóvel sobre as pessoas na organização das cidades.
A verdade é que fica relativamente barato ter e utilizar um automóvel nas nossas cidades, bem como utilizar o automóvel na deslocação para as cidades. O estacionamento continua a ser livre em muitos sítios, os parques de estacionamento são relativamente baratos e, quando não existem lugares de estacionamento, ocupam-se os passeios, as placas centrais das praças, os terrenos desocupados, ou simplesmente estaciona-se em segunda fila, prejudicando irremediavelmente a fluidez do tráfego, incluindo o dos transportes públicos. À noite, por falta de garagens privadas (que as normas urbanísticas continuam a desconsiderar) e de aparcamentos públicos suficientes (que os municípios tardam em proporcionar), as zonas residenciais regurgitam de automóveis em tudo quanto é sítio, obrigando os retardatários a desesperados exercícios de busca de vagas. Não será ousado supor que a qualquer hora do dia ou da noite uma grande parte dos automóveis estão ilegalmente estacionados.
A mesma facilidade e o mesmo laxismo se verificam no acesso por automóvel às cidades. Os troços finais das auto-estradas são isentos de pagamento de portagens. Mesmo onde há portagens, elas são comparativamente baratas, como sucede na A5 de Cascais e na travessia do Tejo. Três das auto-estradas da Área Metropolitana do Porto têm estado até agora em regime de Scut. Em vez de investirem em interfaces com os transportes públicos nas periferias das cidades, os municípios apostam na construção de radiais e de novos canais de penetração nas cidades (como o caso do túnel do Marquês, em Lisboa). Uma boa parte dos estabelecimentos públicos facultam estacionamento gratuito (ou quase gratuito) ao seu pessoal. Basta ver os enormes parques de estacionamento do Hospital de Santa Maria em Lisboa ou dos Hospitais da Universidade de Coimbra, para se verificar o incentivo que isso traz à utilização do automóvel.
A revolução que lá fora se iniciou para descongestionar as cidades do automóvel continua fora da agenda política entre nós. Depois de Londres ter estabelecido portagens nos acessos rodoviários à cidade, com o notável êxito que se conhece, chegou a vez de Milão, que acaba de optar pela mesma solução, com o adicional de uma forte componente ambiental nas isenções e no montante das portagens cobradas aos vários tipos de veículos. Essa solução não é eficaz somente na diminuição da pressão automobilística sobre as cidades, na melhoria da fluidez do tráfego, na diminuição da poluição urbana e no aumento da procura dos transportes públicos. É também uma considerável fonte de receita, para investimento em transportes públicos, em parques de estacionamento, etc. Não deixa de ser sintomático que uma sugestão feita há poucos anos no sentido de estudar a aplicação do mesmo sistema a Lisboa rapidamente tenha caído em (conspiração de) silêncio.
É evidente que não se podem tomar medidas drásticas contra a penetração de vagas de automóveis nas cidades, vindos da periferia, e simultaneamente manter o actual desregramento do estacionamento e da mobilidade dos automóveis dentro das cidades. Enquanto for tão barato, como é hoje, ter e andar de automóvel dentro das cidades, o problema não está resolvido. Tudo tem a ver com a ocupação do espaço público. Não existe nenhum direito de estacionar gratuitamente um automóvel. Se se reduzir o estacionamento gratuito, mesmo nas zonas residenciais, tornando-o inexistente nas zonas centrais, se se tornarem realmente onerosos os parques de estacionamento centrais, se acabarem os parques gratuitos nos estabelecimentos públicos, se se for efectivamente eficaz na remoção imediata dos automóveis irregularmente estacionados e na punição dos prevaricadores, então podemos alimentar alguma esperança de diminuir sensivelmente o tráfego e o congestionamento automóvel intra-urbano.
Não falta quem entenda que tudo seria diferente, se os transportes públicos fossem melhores, mais baratos, mais cómodos, mais frequentes. O argumento não é de todo irrelevante, mas não passa o teste da experiência. É indubitável que, em geral, os transportes públicos são hoje melhores do que no passado, e as tarifas mal têm acompanhado a taxa de inflação; no entanto, não cessam de perder utentes em favor do automóvel. No caso de Lisboa, até tem sido corrigido o grosseiro disparate inicial, que tinha desenhado a rede de metropolitano sem qualquer articulação com os terminais ferroviários. Mas as recuperações que, de vez em quando, se verificam na utilização do transporte urbano - como a que ontem era noticiada aqui no PÚBLICO, em relação ao uso do transporte ferroviário no acesso às cidades -, não passam de fogachos efémeros causados pela subida do preço dos combustíveis.
Não basta, portanto, melhorar os transportes públicos; torna-se necessário dissuadir o uso do transporte privado, pela única maneira eficaz que existe, ou seja, pelos custos. Enquanto a deslocação em automóvel nas cidades não for consideravelmente mais cara do que a utilização do transporte público, só podemos continuar a assistir à crescente invasão do espaço público pelos automóveis, à medida que o nível de vida aumenta e que mais pessoas podem comprar automóvel. Enquanto isso não suceder, só podemos esperar mais do mesmo, por mais que se invista na melhoria do transporte público.
O discurso da modernização não tem alternativa, tal é o nosso atraso em tantos domínios. Mas um país moderno também passa pela modernização das condições de vida, em especial da condição urbana, incluindo a limitação do império do automóvel dentro das nossas cidades. É preciso devolver as cidades às pessoas. Haverá determinação e força política para essa revolução?
(Público, Terça-feira, 28 de Novembro de 2006)
A política de "modernização do país", que é a grande linha condutora do discurso de José Sócrates, está focada principalmente no investimento em infra-estruturas, na educação, ciência e inovação tecnológica e na reforma da administração e das instituições do Estado. Tudo isso é essencial, e o êxito político desse programa - para mais, num contexto de apertada disciplina das finanças públicas - só prova que a opinião pública compreende e responde bem a esse desafio. No entanto, a modernização do país não pode passar só por aí, mas também por outros planos, como a correcção do desordenamento territorial, da indisciplina urbanística, da degradação urbana, da falta de educação e de responsabilidade cívica.
Tomemos o caso da desordem automobilística em quase todas as cidades, especialmente em Lisboa. Duvido que, com a possível excepção da Grécia, haja na UE cidades tão dominadas pelos automóveis como as nossas. E isso não tem a ver somente com a grande dimensão do nosso parque automobilístico, o que não deixa de ser um fenómeno surpreendente, tendo em conta o nosso nível de vida. A razão do caos automobilístico das nossas cidades deve-se essencialmente a erradas políticas de ordenamento urbanístico, de transportes públicos, etc. e à prevalência do automóvel sobre as pessoas na organização das cidades.
A verdade é que fica relativamente barato ter e utilizar um automóvel nas nossas cidades, bem como utilizar o automóvel na deslocação para as cidades. O estacionamento continua a ser livre em muitos sítios, os parques de estacionamento são relativamente baratos e, quando não existem lugares de estacionamento, ocupam-se os passeios, as placas centrais das praças, os terrenos desocupados, ou simplesmente estaciona-se em segunda fila, prejudicando irremediavelmente a fluidez do tráfego, incluindo o dos transportes públicos. À noite, por falta de garagens privadas (que as normas urbanísticas continuam a desconsiderar) e de aparcamentos públicos suficientes (que os municípios tardam em proporcionar), as zonas residenciais regurgitam de automóveis em tudo quanto é sítio, obrigando os retardatários a desesperados exercícios de busca de vagas. Não será ousado supor que a qualquer hora do dia ou da noite uma grande parte dos automóveis estão ilegalmente estacionados.
A mesma facilidade e o mesmo laxismo se verificam no acesso por automóvel às cidades. Os troços finais das auto-estradas são isentos de pagamento de portagens. Mesmo onde há portagens, elas são comparativamente baratas, como sucede na A5 de Cascais e na travessia do Tejo. Três das auto-estradas da Área Metropolitana do Porto têm estado até agora em regime de Scut. Em vez de investirem em interfaces com os transportes públicos nas periferias das cidades, os municípios apostam na construção de radiais e de novos canais de penetração nas cidades (como o caso do túnel do Marquês, em Lisboa). Uma boa parte dos estabelecimentos públicos facultam estacionamento gratuito (ou quase gratuito) ao seu pessoal. Basta ver os enormes parques de estacionamento do Hospital de Santa Maria em Lisboa ou dos Hospitais da Universidade de Coimbra, para se verificar o incentivo que isso traz à utilização do automóvel.
A revolução que lá fora se iniciou para descongestionar as cidades do automóvel continua fora da agenda política entre nós. Depois de Londres ter estabelecido portagens nos acessos rodoviários à cidade, com o notável êxito que se conhece, chegou a vez de Milão, que acaba de optar pela mesma solução, com o adicional de uma forte componente ambiental nas isenções e no montante das portagens cobradas aos vários tipos de veículos. Essa solução não é eficaz somente na diminuição da pressão automobilística sobre as cidades, na melhoria da fluidez do tráfego, na diminuição da poluição urbana e no aumento da procura dos transportes públicos. É também uma considerável fonte de receita, para investimento em transportes públicos, em parques de estacionamento, etc. Não deixa de ser sintomático que uma sugestão feita há poucos anos no sentido de estudar a aplicação do mesmo sistema a Lisboa rapidamente tenha caído em (conspiração de) silêncio.
É evidente que não se podem tomar medidas drásticas contra a penetração de vagas de automóveis nas cidades, vindos da periferia, e simultaneamente manter o actual desregramento do estacionamento e da mobilidade dos automóveis dentro das cidades. Enquanto for tão barato, como é hoje, ter e andar de automóvel dentro das cidades, o problema não está resolvido. Tudo tem a ver com a ocupação do espaço público. Não existe nenhum direito de estacionar gratuitamente um automóvel. Se se reduzir o estacionamento gratuito, mesmo nas zonas residenciais, tornando-o inexistente nas zonas centrais, se se tornarem realmente onerosos os parques de estacionamento centrais, se acabarem os parques gratuitos nos estabelecimentos públicos, se se for efectivamente eficaz na remoção imediata dos automóveis irregularmente estacionados e na punição dos prevaricadores, então podemos alimentar alguma esperança de diminuir sensivelmente o tráfego e o congestionamento automóvel intra-urbano.
Não falta quem entenda que tudo seria diferente, se os transportes públicos fossem melhores, mais baratos, mais cómodos, mais frequentes. O argumento não é de todo irrelevante, mas não passa o teste da experiência. É indubitável que, em geral, os transportes públicos são hoje melhores do que no passado, e as tarifas mal têm acompanhado a taxa de inflação; no entanto, não cessam de perder utentes em favor do automóvel. No caso de Lisboa, até tem sido corrigido o grosseiro disparate inicial, que tinha desenhado a rede de metropolitano sem qualquer articulação com os terminais ferroviários. Mas as recuperações que, de vez em quando, se verificam na utilização do transporte urbano - como a que ontem era noticiada aqui no PÚBLICO, em relação ao uso do transporte ferroviário no acesso às cidades -, não passam de fogachos efémeros causados pela subida do preço dos combustíveis.
Não basta, portanto, melhorar os transportes públicos; torna-se necessário dissuadir o uso do transporte privado, pela única maneira eficaz que existe, ou seja, pelos custos. Enquanto a deslocação em automóvel nas cidades não for consideravelmente mais cara do que a utilização do transporte público, só podemos continuar a assistir à crescente invasão do espaço público pelos automóveis, à medida que o nível de vida aumenta e que mais pessoas podem comprar automóvel. Enquanto isso não suceder, só podemos esperar mais do mesmo, por mais que se invista na melhoria do transporte público.
O discurso da modernização não tem alternativa, tal é o nosso atraso em tantos domínios. Mas um país moderno também passa pela modernização das condições de vida, em especial da condição urbana, incluindo a limitação do império do automóvel dentro das nossas cidades. É preciso devolver as cidades às pessoas. Haverá determinação e força política para essa revolução?
(Público, Terça-feira, 28 de Novembro de 2006)