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11 de dezembro de 2006

O território, de novo 

Por Vital Moreira

Não há democracia sem acentuada descentralização territorial. Isso não implica somente a criação de diferentes níveis de entidades territoriais descentralizadas, mas também que a divisão territorial seja consistente e que as autarquias territoriais tenham a escala apropriada para o desempenho das tarefas que lhes devem ser confiadas.
Ora, a nossa organização territorial pública apresenta diversas falhas que dificultam uma eficiente descentralização administrativa. São quatro as falhas principais. Primeiro, há freguesias e municípios tão diminutos que tornam impossível qualquer desempenho eficaz de tarefas públicas, por falta de meios humanos e materiais. Segundo, as entidades intermunicipais existentes desde 2003 ("áreas metropolitanas", "comunidades intermunicipais", etc.) são demasiado heterogéneas para permitir uma repartição consistente de funções. Terceiro, continuam a faltar as regiões administrativas, previstas na Constituição desde a origem, o que cria um gap demasiado amplo entre o nível municipal e a nível central (estadual). Quarto, os distritos administrativos, por manterem uma divisão territorial "exótica", não coincidente com a moderna divisão administrativa, continuam a perturbar uma leitura racional do território.
Exceptuado o caso dos distritos, são conhecidas as soluções propostas pelo Governo para todos os demais problemas. A saber: (i) proceder à consolidação territorial das autarquias locais, designadamente no caso das freguesias, mediante a agregação das mais pequenas (parece ter sido abandonada a mesma ideia em relação aos municípios...); (ii) criar uma base homogénea para as entidades intermunicipais, com base nas NUT III, desde há muito existentes; (iii) preparar as condições para uma futura regionalização administrativa, com base nas NUT II, ou seja, as cinco "regiões- plano". Vejamos cada um desses problemas de per si.
São conhecidas as resistências à extinção de autarquias locais. Só em períodos revolucionários ou em ditaduras é que é possível proceder a uma drástica redução do número de autarquias. Sem a reforma de Passos Manuel há 170 anos, ainda hoje teríamos cerca de uma milhar de municípios. Além disso, desde 1974 a tendência não tem sido no sentido da consolidação, mas sim da fragmentação autárquica. Criaram-se dezenas de freguesias e só não sucedeu o mesmo com os municípios, porque a certa altura prevaleceu um módico de resistência à deriva populista nesse sentido. Por isso, nesta matéria é de esperar muita oposição, com modestos resultados no final, perante a provável falta de determinação política para forçar soluções mais ousadas. Resta saber até que ponto vai ser uma oportunidade falhada.
As entidades intermunicipais assumem uma importância crescente, por várias razões. Primeiro, com a progressiva urbanização do país, muitas tarefas tradicionalmente municipais ultrapassam agora as fronteiras dos municípios isolados (transportes urbanos, recolha e tratamento de lixos, etc.), reclamando parcerias entre vários municípios contíguos. Segundo, desde 1997 a Constituição admite a atribuição de tarefas públicas directamente a associações de municípios e não aos municípios isoladamente, sendo de prever que as futuras acções de descentralização de tarefas estaduais tenham por destinatários as entidades intermunicipais (considere-se, por exemplo, a cobrança dos impostos locais, entre outras). Terceiro, faltando as regiões administrativas, as entidades intermunicipais são a única solução para descentralizar tarefas públicas que excedam a escala dos municípios.
Neste aspecto, a "reforma Relvas" (do nome do secretário de Estado da Administração Local que a concebeu), de 2003, foi uma tentativa bem-intencionada, mas menos bem conseguida, de dar cumprimento a essa dimensão de administração intermunicipal. Por um lado, tendo deixado quase completa liberdade de auto-organização aos municípios no que respeita à dimensão e às circunscrições territoriais - sem respeitar sequer as fronteiras das cinco NUT II -, o resultado foi assaz assimétrico e, em alguns casos, puramente irracional, em termos territoriais. Por outro lado, prevendo nada menos do que três diferentes tipos de entidades, essa reforma não facilitava exercícios de descentralização minimamente homogéneos. A orientação do actual Governo vai claramente no sentido de escolher como base das entidades intermunicipais as actuais NUT III (ou agregações destas), o que tem a dupla vantagem de assentar numa base territorial preexistente e de ser congruente com a futura regionalização administrativa, visto que as NUT III são divisões das NUTS II.
A preparação da futura criação das regiões administrativas teve já dois passos essenciais. Por um lado, decidiu-se, e bem, escolher as cinco NUT II com mapa regional, abandonando definitivamente a desastrada solução de 1998, que previa oito regiões, num mapa sem nenhuma história nem lógica territorial; por outro lado, os serviços regionais do Estado (que passarão, em parte, para as futuras regiões administrativas, quando estas venham a ser instituídas) passaram a obedecer todos a esse modelo de divisão territorial. Falta somente incrementar a desconcentração regional da administração do Estado e implementar as soluções de coordenação transversal dos serviços da administração regional do Estado, através das comissões de coordenação e desenvolvimento regional (CCDR). Se a regionalização não vier a ser uma realidade, que não seja por ausência das necessárias mudanças na administração regional do Estado.
A questão dos distritos é o grande ponto de interrogação nas intenções do Governo quanto à organização territorial do Estado. Ora, não se trata de uma questão despicienda, sobretudo sob o ponto de vista da regionalização. De facto, enquanto existirem os distritos, pelo menos com a sua actual configuração territorial, o exercício da regionalização estará condenado ao fracasso. Não é possível criar regiões administrativas com o mapa das cinco "regiões-plano", como se pretende, e manter simultaneamente a divisão distrital, com um mapa territorial que não é congruente com aquele. Há uma infeliz disposição constitucional que garante a persistência dos distritos até à criação das regiões. Ora, a relação é a inversa, não sendo possível criar as segundas sem prévia extinção ou remodelação dos primeiros.
Estando, por ora, fora de causa a extinção dos distritos - por causa da referida norma constitucional e por falta de determinação política nesse sentido -, só restam três soluções, de preferência conjuntas: primeiro, harmonizar a divisão distrital com as cinco NUT II, o que afectaria significativamente alguns distritos (Aveiro, Viseu, Leiria, Setúbal); segundo, esvaziar a relevância administrativa dos distritos, regionalizando as (já poucas) tarefas estaduais que ainda têm base distrital (direcções de estradas, sub-regiões de saúde, administração fiscal, etc.); terceiro, aproveitar a prevista reforma da lei eleitoral para retirar aos distritos a natureza de círculos eleitorais para a Assembleia da República.
Seja como for, os distritos administrativos constituem porventura a mais árdua das questões da reforma territorial do Estado. Talvez por isso, eles continuam a ser uma questão quase tabu. É tempo, e é a ocasião, de deixarem de o ser. Sem a resolução da "questão distrital", a reforma da administração territorial só pode ficar "coxa".

(Público, Terça-feira, 5 de Dezembro de 2006)

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