22 de dezembro de 2006
Uma revolução no ensino superior?
Por Vital Moreira
Que o nosso sistema de ensino superior (universidades e escolas politécnicas) precisa de uma profunda reforma - eis uma posição quase consensual, com excepção dos conservadores do costume. Como se sabe, porém, não basta uma opinião generalizada acerca do que está mal, sendo necessárias pelo menos mais duas coisas: uma ideia sobre as reformas a introduzir e a vontade e força política para as realizar. O recente relatório da OCDE encomendado pelo ministro da Ciência e do Ensino Superior dá boas indicações sobre as reformas a empreender. Cabe ao Governo tomar as imprescindíveis decisões políticas.
Não é boa a situação do ensino superior entre nós. Nos rankings internacionais as universidades portuguesas ficam numa posição pouco recomendável. A sua internacionalização é comparativamente reduzida. O sistema binário (ensino universitário - ensino politécnico) foi progressivamente subvertido, com a sobreposição das mesmas formações nos dois sistemas. Muitas instituições não dispõem dos recursos de pessoal docente suficiente, nem de uma cultura pedagógica adequada para uma implementação eficiente do processo de Bolonha (que não se limita a um novo esquema de graus académicos). O sistema de avaliação montado nos anos 90 tinha fragilidades congénitas e ninguém cuidou de tirar consequências das avaliações feitas. Continua a verificar-se uma acentuada endogenia das instituições, com escassa mobilidade do pessoal docente. A proliferação de universidades e de escolas politécnicas gerou uma oferta excessiva, que a diminuição da procura torna mais problemática. O sistema de governo não propicia adequada responsabilidade dos órgãos governativos e a gestão continua submetida a métodos arcaicos. As instituições privadas, com algumas honrosas excepções, ficam aquém dos níveis minimamente exigíveis. As restrições orçamentais e a diminuição de alunos criaram crescentes dificuldades financeiras.
Sem ignorar as boas escolas e as boas práticas também existentes, as deficiências apontadas caracterizam uma óbvia inadaptação do nosso ensino superior aos novos tempos, que só uma profunda mudança pode superar.
Obviamente, não era precisa a OCDE para dar conta das dificuldades e dos impasses do actual sistema de ensino superior entre nós. Nos últimos anos não têm faltado diagnósticos nem propostas de solução, embora longe de um consenso generalizado. O que se tem verificado é, por um lado, falta de capacidade de auto-reforma das instituições (que o sistema de governo instituído e os interesses estabelecidos inviabilizam) e, por outro lado, ausência de vontade política para uma intervenção de grande fôlego por parte dos sucessivos governos. Por isso, o referido relatório da OCDE pode trazer o que faltava para uma reforma abrangente do ensino superior, designadamente a autoridade de uma organização internacional com o prestígio daquela, bem como um conjunto de propostas prontas a adoptar, assim haja o necessário impulso político. Vejamos as principais propostas.
A ideia mais inovadora é seguramente a que diz respeito à natureza institucional das instituições públicas de ensino superior. Tradicionalmente concebidas entre nós como estabelecimentos públicos (como em muitos outros países), ou seja, como serviços públicos dotados de personalidade jurídica, de órgãos próprios e de autonomia administrativa e financeira, as universidades passariam a ser configuradas como fundações (mantendo-se bem entendido na esfera pública). A "universidade-fundação" é um modelo já adoptado em vários países (designadamente a Alemanha) e integra-se no movimento de diversificação e flexibilização dos modos de organização e gestão do sector público, ficando, no entanto, aquém dos modelos mais radicais de empresarialização das universidades ("universidade-empresa").
O modelo fundacional tem diversas virtualidades, entre as quais a separação entre o ente "proprietário" (a fundação) e a universidade propriamente dita, o recurso a formas típicas da gestão privada no que respeita à gestão patrimonial, financeira e de pessoal, bem como (last but not the least) a possibilidade de recurso ao financiamento de entidades privadas, desde logo pela sua entrada como "fundadores" na fundação, a par com o Estado. As escolas de ensino superior deixam de ser propriedade do Estado, passando a pertencer a entidades distintas (as fundações), que ficam responsáveis pelos estabelecimentos e pelo seu financiamento.
No que respeita ao sistema de governo, o relatório da OCDE vai inequivocamente no sentido da modificação substancial do regime vigente entre nós, baseado no autogoverno dos estabelecimentos, na base de um sistema quase paritário entre professores e estudantes (a que acresce a participação do pessoal não docente) e assente em órgãos eleitos a todos os níveis (universidades, faculdades, departamentos, etc.), incluindo numerosos órgãos colegiais (assembleias, senados conselhos, etc.), de composição muito vasta. Ora, a direcção hoje indiciada a nível internacional vai claramente no sentido da redução do autogoverno, da diminuição do princípio representativo, da limitação dos órgãos colegiais, do reforço da participação de elementos exteriores aos estabelecimentos.
Embora uma mudança nessa direcção não esteja constitucionalmente vedada - pois o autogoverno das universidades não está expressamente garantido na Constituição, que se limita a garantir um princípio da participação de professores e estudantes -, é fácil antecipar que esta é provavelmente a reforma que suscitará mais resistências, quer por parte dos professores, quer por parte dos estudantes, sempre em nome da "autonomia democrática" das universidades e demais escolas do ensino superior. No entanto, uma substancial redução dos actuais mecanismos de autogoverno pelos "corpos universitários" - à margem do mundo exterior e dos demais stakeholders das instituições de ensino superior - é condição essencial para criar um novo paradigma de responsabilidade das escolas do ensino superior perante a colectividade e de capacidade de resposta aos desafios da competitividade europeia ("espaço europeu do ensino superior") e da globalização do ensino superior.
Um dos aspectos mais sublinhados no relatório da OCDE é o apoio ao modelo binário de distinção entre o ensino universitário e o ensino politécnico, que tem vindo a ser "assassinado", com inteira cumplicidade governamental, pela deriva universitária das escolas politécnicas e pela "politecnicização" das universidades, de tal modo que já são poucos os cursos que não são ministrados em ambos os sub-sistemas, com a consequente redundância e perda de racionalidade. Embora a distinção da missão que incumbe a cada um deles não exija necessariamente uma separação institucional entre as respectivas escolas, seguramente que ela impede a crescente convergência e duplicação das formações por eles oferecidas. Há que arrepiar caminho, separando águas e estabelecendo as necessárias especializações.
Agora que existe um documento de referência (o relatório da OCDE), o que se espera é que o Governo anuncie rapidamente um documento-base com as suas opções, bem como um calendário dos passos seguintes, proporcionando uma discussão frutuosa na comunidade académica e fora dela. Quase dois anos passados da corrente legislatura, é tempo de passar à acção. Há reformas que levam o seu tempo e que perdem pela demora. Esta é uma delas.
(Público, Terça-feira, 19 de Dezembro de 2006)
Que o nosso sistema de ensino superior (universidades e escolas politécnicas) precisa de uma profunda reforma - eis uma posição quase consensual, com excepção dos conservadores do costume. Como se sabe, porém, não basta uma opinião generalizada acerca do que está mal, sendo necessárias pelo menos mais duas coisas: uma ideia sobre as reformas a introduzir e a vontade e força política para as realizar. O recente relatório da OCDE encomendado pelo ministro da Ciência e do Ensino Superior dá boas indicações sobre as reformas a empreender. Cabe ao Governo tomar as imprescindíveis decisões políticas.
Não é boa a situação do ensino superior entre nós. Nos rankings internacionais as universidades portuguesas ficam numa posição pouco recomendável. A sua internacionalização é comparativamente reduzida. O sistema binário (ensino universitário - ensino politécnico) foi progressivamente subvertido, com a sobreposição das mesmas formações nos dois sistemas. Muitas instituições não dispõem dos recursos de pessoal docente suficiente, nem de uma cultura pedagógica adequada para uma implementação eficiente do processo de Bolonha (que não se limita a um novo esquema de graus académicos). O sistema de avaliação montado nos anos 90 tinha fragilidades congénitas e ninguém cuidou de tirar consequências das avaliações feitas. Continua a verificar-se uma acentuada endogenia das instituições, com escassa mobilidade do pessoal docente. A proliferação de universidades e de escolas politécnicas gerou uma oferta excessiva, que a diminuição da procura torna mais problemática. O sistema de governo não propicia adequada responsabilidade dos órgãos governativos e a gestão continua submetida a métodos arcaicos. As instituições privadas, com algumas honrosas excepções, ficam aquém dos níveis minimamente exigíveis. As restrições orçamentais e a diminuição de alunos criaram crescentes dificuldades financeiras.
Sem ignorar as boas escolas e as boas práticas também existentes, as deficiências apontadas caracterizam uma óbvia inadaptação do nosso ensino superior aos novos tempos, que só uma profunda mudança pode superar.
Obviamente, não era precisa a OCDE para dar conta das dificuldades e dos impasses do actual sistema de ensino superior entre nós. Nos últimos anos não têm faltado diagnósticos nem propostas de solução, embora longe de um consenso generalizado. O que se tem verificado é, por um lado, falta de capacidade de auto-reforma das instituições (que o sistema de governo instituído e os interesses estabelecidos inviabilizam) e, por outro lado, ausência de vontade política para uma intervenção de grande fôlego por parte dos sucessivos governos. Por isso, o referido relatório da OCDE pode trazer o que faltava para uma reforma abrangente do ensino superior, designadamente a autoridade de uma organização internacional com o prestígio daquela, bem como um conjunto de propostas prontas a adoptar, assim haja o necessário impulso político. Vejamos as principais propostas.
A ideia mais inovadora é seguramente a que diz respeito à natureza institucional das instituições públicas de ensino superior. Tradicionalmente concebidas entre nós como estabelecimentos públicos (como em muitos outros países), ou seja, como serviços públicos dotados de personalidade jurídica, de órgãos próprios e de autonomia administrativa e financeira, as universidades passariam a ser configuradas como fundações (mantendo-se bem entendido na esfera pública). A "universidade-fundação" é um modelo já adoptado em vários países (designadamente a Alemanha) e integra-se no movimento de diversificação e flexibilização dos modos de organização e gestão do sector público, ficando, no entanto, aquém dos modelos mais radicais de empresarialização das universidades ("universidade-empresa").
O modelo fundacional tem diversas virtualidades, entre as quais a separação entre o ente "proprietário" (a fundação) e a universidade propriamente dita, o recurso a formas típicas da gestão privada no que respeita à gestão patrimonial, financeira e de pessoal, bem como (last but not the least) a possibilidade de recurso ao financiamento de entidades privadas, desde logo pela sua entrada como "fundadores" na fundação, a par com o Estado. As escolas de ensino superior deixam de ser propriedade do Estado, passando a pertencer a entidades distintas (as fundações), que ficam responsáveis pelos estabelecimentos e pelo seu financiamento.
No que respeita ao sistema de governo, o relatório da OCDE vai inequivocamente no sentido da modificação substancial do regime vigente entre nós, baseado no autogoverno dos estabelecimentos, na base de um sistema quase paritário entre professores e estudantes (a que acresce a participação do pessoal não docente) e assente em órgãos eleitos a todos os níveis (universidades, faculdades, departamentos, etc.), incluindo numerosos órgãos colegiais (assembleias, senados conselhos, etc.), de composição muito vasta. Ora, a direcção hoje indiciada a nível internacional vai claramente no sentido da redução do autogoverno, da diminuição do princípio representativo, da limitação dos órgãos colegiais, do reforço da participação de elementos exteriores aos estabelecimentos.
Embora uma mudança nessa direcção não esteja constitucionalmente vedada - pois o autogoverno das universidades não está expressamente garantido na Constituição, que se limita a garantir um princípio da participação de professores e estudantes -, é fácil antecipar que esta é provavelmente a reforma que suscitará mais resistências, quer por parte dos professores, quer por parte dos estudantes, sempre em nome da "autonomia democrática" das universidades e demais escolas do ensino superior. No entanto, uma substancial redução dos actuais mecanismos de autogoverno pelos "corpos universitários" - à margem do mundo exterior e dos demais stakeholders das instituições de ensino superior - é condição essencial para criar um novo paradigma de responsabilidade das escolas do ensino superior perante a colectividade e de capacidade de resposta aos desafios da competitividade europeia ("espaço europeu do ensino superior") e da globalização do ensino superior.
Um dos aspectos mais sublinhados no relatório da OCDE é o apoio ao modelo binário de distinção entre o ensino universitário e o ensino politécnico, que tem vindo a ser "assassinado", com inteira cumplicidade governamental, pela deriva universitária das escolas politécnicas e pela "politecnicização" das universidades, de tal modo que já são poucos os cursos que não são ministrados em ambos os sub-sistemas, com a consequente redundância e perda de racionalidade. Embora a distinção da missão que incumbe a cada um deles não exija necessariamente uma separação institucional entre as respectivas escolas, seguramente que ela impede a crescente convergência e duplicação das formações por eles oferecidas. Há que arrepiar caminho, separando águas e estabelecendo as necessárias especializações.
Agora que existe um documento de referência (o relatório da OCDE), o que se espera é que o Governo anuncie rapidamente um documento-base com as suas opções, bem como um calendário dos passos seguintes, proporcionando uma discussão frutuosa na comunidade académica e fora dela. Quase dois anos passados da corrente legislatura, é tempo de passar à acção. Há reformas que levam o seu tempo e que perdem pela demora. Esta é uma delas.
(Público, Terça-feira, 19 de Dezembro de 2006)