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6 de janeiro de 2007

Aristocracia operária 

Por Vital Moreira

Na teoria marxista tradicional, o conceito de "aristocracia operária" procurava explicar o conformismo dos sectores da classe operária beneficiários de condições laborais e sociais mais favoráveis. Isso justificaria a sua tendência para não acompanhar os movimentos reivindicativos e as lutas do movimento operário em geral. A sua condição relativamente privilegiada em relação aos demais trabalhadores levaria ao seu afastamento em relação aos mesmos e, no limite, ao seu alinhamento com a "classe dominante" nos conflitos laborais, em especial, e na "luta de classes", em geral.
No entanto, o que se tem passado entre nós nos últimos tempos parece desmentir inteiramente essa velha teoria marxista. De facto, mesmo para um olhar desatento, é fácil verificar que a maior parte das greves ocorridas no ano passado foram desencadeadas pelos sectores que gozam de melhores condições laborais e sociais (não faltou mesmo uma greve de juízes!), em reacção contra a ameaça de perda das suas regalias. Nesse sentido, não passam de greves das elites assalariadas em risco de degradação do seu estatuto laboral. Pode dizer-se que, neste momento, as únicas lutas sociais dignas desse nome são as da "aristocracia operária". Como explicar esta aparente contradição?
Importa sublinhar que, salvo alguma excepção que confirma a regra, as referidas greves ocorreram todas no sector público, seja no sector público administrativo (professores, enfermeiros, funcionários público em geral), seja no sector público empresarial (Metropolitano de Lisboa, CTT, etc.). E a razão é simples: foi no sector público que se criaram as situações mais gritantes de regimes privativos francamente diferenciados, para melhor, em relação aos demais trabalhadores, em geral, e aos trabalhadores do sector privado, em especial.
Tome-se, por exemplo, o caso do Metropolitano de Lisboa, onde os respectivos trabalhadores levam a cabo uma série de greves tendentes a forçar a empresa a renovar o acordo colectivo de trabalho. Num entrevista ao semanário Expresso, há duas semanas, o presidente do conselho de administração desvendava algumas das razões por que a empresa não pode ceder às reivindicações sindicais. Entre outras coisas, ficámos a saber que o referido acordo concede 36 dias úteis de férias e que o subsídio por doença é superior à remuneração pelo trabalho efectivo, o que favorece o absentismo por alegada doença, cuja taxa é claramente mais elevada do que a média geral. Isto sem falar noutras regalias que uma leitura do acordo revela, desde o nível das remunerações até às promoções por antiguidade, passando pelo horário de trabalho. Não admira, por isso, que os beneficiários façam tudo para impedir a caducidade do generoso acordo e que a empresa resista a tal situação.
O caso do Metropolitano de Lisboa não é, porém, mais do que um exemplo de um panorama que se reproduz, com pequenas diferenças, noutras empresas públicas, quer no sector de transportes, quer noutros, revelando a irresponsabilidade de sucessivas equipas de gestão. O que torna mais flagrante o caso do ML é o facto de ser uma empresa altamente deficitária, em que a receita corrente (bilhetes e passes) não cobre mais do que 30 por cento da despesa corrente, sendo o resto (mais a despesa de investimento) coberto pelo Orçamento do Estado (apesar de se tratar de um serviço público de âmbito local). Infelizmente, mesmo nesse ponto, também não se trata de um caso singular.
Até agora, o esforço governamental tendente a conseguir o equilíbrio das contas públicas e a eliminação de regimes privativos especiais tem-se concentrado no sector público administrativo. É tempo de estender esse esforço ao sector público empresarial, tanto mais que as transferências orçamentais para as referidas empresas e o seu endividamento contribuem de forma considerável para a despesa pública e para o endividamento do sector público. Além de financeiramente onerosos, os regimes privativos especiais das empresas públicas criam diferenças de tratamento que só podem criar sentimentos de injustiça relativa, que deslegitimam os esforços governamentais para eliminar as situações de privilégio no sector público administrativo.
Acresce que vários desses regimes privativos especiais incluem valências específicas em matéria de saúde e de segurança social, à margem do SNS e do sistema geral de segurança social pública. Nada impede, obviamente, que as empresas públicas, tal como as privadas, tenham sistemas complementares de saúde e de segurança social para os seus trabalhadores, desde que os seus custos não sejam incomportáveis. Mas dificilmente se pode compreender que seja o próprio Estado, nas suas empresas, a estabelecer sistemas paralelos, que se configuram como verdadeiros esquemas de "opting out" em relação aos sistemas públicos universais de saúde e de segurança social.
O ano passado mostrou como é difícil suprimir regalias, mesmo quando elas se apresentam como privilégios de todo em todo injustificáveis. O caso do subsistema de saúde dos jornalistas mostrou como mesmo os espíritos mais lúcidos não abdicam da mais rudimentar argumentação para defender situações de privilégio indefensável. Poucos beneficiários de situações de excepção resistem a pensar que dispõem de um justíssimo direito adquirido. E, na verdade, é sempre mais penalizador perder posições adquiridas, ainda que de todo injustificáveis, do que não alcançar posições desejadas, ainda que justíssimas. Todavia, por mais compreensível que seja a revolta dos que se vêem expropriados de regalias privativas, isso não pode servir de argumento para contemporizar com elas. O Governo perderia autoridade e legitimidade na sua obra de saneamento do "Estado corporativo" que herdou, se renunciasse a levar a tarefa até ao fim.
No caso das empresas públicas, há um argumento adicional para pôr fim a situações de vantagem desproporcionada. Na verdade, o conceito de empresa pública não pode equivaler a laxismo nas relações laborais ou ao estabelecimento de prerrogativas de qualquer espécie, seja dos administradores, seja dos trabalhadores. Quer se trate de empresas que operem em mercados abertos (como a CGD), ou de empresas de serviço público (como as empresas de transporte), as empresas públicas não podem deixar de zelar pela sua eficiência e pela sua competitividade. Mesmo no caso das segundas, as transferências orçamentais feitas à conta de "compensações de serviço público" devem servir para indemnizar os custos adicionais do serviço público prestado fora de uma lógica de mercado, e não para financiar regimes laborais especiais pesadamente onerosos para o equilíbrio financeiro das respectivas empresas.
Como se tem visto, a luta contra os privilégios sectoriais, mesmo dos grupos mais poderosos, merece um geral aplauso da opinião pública, que não compreende a sua racionalidade. Por mais que a resistência dos grupos afectados colha o apoio oportunista dos partidos da oposição - sobretudo da oposição de esquerda, transformada em porta-voz de todos os descontentamentos sectoriais, por menos defensáveis que sejam -, do que se trata é de optar entre os grupos-de-interesse e o interesse geral. Como os cidadãos comuns, e os contribuintes, não têm sindicatos que os representem contra os grupos-de-interesse sectoriais, só o Governo pode fazer prevalecer o interesse geral contra os interesses de grupo.

(Publico, Terça-feira, 2 de Janeiro de 2007)

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