22 de janeiro de 2007
O princípio do fim
por Ana Gomes
A dois anos das eleições presidenciais de 2008, espalha-se nos EUA a urgência de mudança. E com ela já tudo está, realmente, a mudar. Foi este o sentimento que trouxe de contactos com Congressistas e membros da Administração que tive em Washington, no início deste mês, integrada na delegação do PE para as relações com os EUA. De Michael Chertoff, o Secretary of Homeland Security, passando por John Bellinger, o conselheiro jurídico do Departamento de Estado, a Tom Lantos, o novo (mas veterano) Presidente da Comissão de Relações Internacionais da Câmara dos Representantes e muitos outros Congressistas (sobretudo Democratas, mas também Republicanos), com quem reunimos no Capitólio, a mensagem e a atitude foi idêntica à que se ouviu no Porto, no Congresso do PS, da boca de Howard Dean: "É tempo dos EUA tratarem os aliados com respeito".
A morte precoce (a meio deste mandato do Presidente) da 'doutrina Bush' nas relações internacionais já vem de antes das eleições de Novembro para o Congresso, que tiveram por pano de fundo o crescente descontentamento com o atoleiro iraquiano e acabaram por passar o controlo do braço legislativo para os Democratas. Mas quem desferiu a estocada final na política externa de Bush foi o Iraq Study Group, nomeado pelo Congresso, que deitou abaixo os axiomas fundamentais da acção (e inacção) desta Casa Branca no Médio Oriente.
No vendaval mediático que as recomendações deste Grupo estão a produzir nos EUA, todos, da direita à esquerda, questionam não só a competência da Administração, mas acima de tudo a irresponsabilidade, o estilo autoritário, a linguagem fanfarrona e a abordagem simplista que mergulharam os EUA - e com eles, todos nós - naquilo que Timothy Garton Ash recentemente definiu como "catástrofe completa em todo o Médio Oriente".
E é aqui que entra a Europa. Neste momento crucial de redefinição de prioridades do outro lado do Atlântico, os EUA precisam de aliados leais, críticos construtivos, e não de lacaios que confundem lealdade com seguidismo. A UE deve aproveitar esta fase de introspecção em Washington para demonstrar o valor acrescentado da visão europeia do mundo, ancorada nos princípios do multilateralismo eficaz.
Ninguém esperará milagres, nem de um Congresso dominado pelos Democratas, nem mesmo de uma presidência democrata a partir de 2009. Os problemas estão para ficar, muitos profundamente enraizados e com uma dinâmica própria, independente das acções de Washington ou de seja quem for. Mas, face ao fracasso iraquiano, ao desafio iraniano e ao retrocesso no Afeganistão, não é utópico esperar de uns EUA mais ponderados (até pela impopularidade em todo o mundo) uma mudança de tom e de estratégia, especialmente em relação ao conflito israelo-palestiniano.
Cabe à Europa, envolvida no Afeganistão, no terreno no Líbano e actor decisivo na Palestina, contribuir para essa nova estratégia, mais que nunca investindo no diálogo transatlântico a todos os níveis. Pois não há ameaça comum, da proliferação das Armas de Destruição Maciça ao crime organizado, passando pelo terrorismo internacional, que possa ser derrotada pelos EUA, ou pela Europa, isoladamente. Os EUA precisam da Europa e vice-versa. E, do lado de lá, já o perceberam.
A arrogância ideológica e a falta de realismo e de escrúpulos legais e morais que tanto inquinaram as relações internacionais, não desaparecerão de um dia para o outro. Mas os últimos meses de 2006 representam o princípio do fim do Bushismo. Por muito que custe aos mais subservientes adeptos lusitanos de tão nefasta e desacreditada doutrina, a quem piedosamente convém lembrar o ditado latino: Vae victis!(Ai dos vencidos!).
(artigo publicado no COURRIER INTERNACIONAL, em 22.12.06)
A dois anos das eleições presidenciais de 2008, espalha-se nos EUA a urgência de mudança. E com ela já tudo está, realmente, a mudar. Foi este o sentimento que trouxe de contactos com Congressistas e membros da Administração que tive em Washington, no início deste mês, integrada na delegação do PE para as relações com os EUA. De Michael Chertoff, o Secretary of Homeland Security, passando por John Bellinger, o conselheiro jurídico do Departamento de Estado, a Tom Lantos, o novo (mas veterano) Presidente da Comissão de Relações Internacionais da Câmara dos Representantes e muitos outros Congressistas (sobretudo Democratas, mas também Republicanos), com quem reunimos no Capitólio, a mensagem e a atitude foi idêntica à que se ouviu no Porto, no Congresso do PS, da boca de Howard Dean: "É tempo dos EUA tratarem os aliados com respeito".
A morte precoce (a meio deste mandato do Presidente) da 'doutrina Bush' nas relações internacionais já vem de antes das eleições de Novembro para o Congresso, que tiveram por pano de fundo o crescente descontentamento com o atoleiro iraquiano e acabaram por passar o controlo do braço legislativo para os Democratas. Mas quem desferiu a estocada final na política externa de Bush foi o Iraq Study Group, nomeado pelo Congresso, que deitou abaixo os axiomas fundamentais da acção (e inacção) desta Casa Branca no Médio Oriente.
No vendaval mediático que as recomendações deste Grupo estão a produzir nos EUA, todos, da direita à esquerda, questionam não só a competência da Administração, mas acima de tudo a irresponsabilidade, o estilo autoritário, a linguagem fanfarrona e a abordagem simplista que mergulharam os EUA - e com eles, todos nós - naquilo que Timothy Garton Ash recentemente definiu como "catástrofe completa em todo o Médio Oriente".
E é aqui que entra a Europa. Neste momento crucial de redefinição de prioridades do outro lado do Atlântico, os EUA precisam de aliados leais, críticos construtivos, e não de lacaios que confundem lealdade com seguidismo. A UE deve aproveitar esta fase de introspecção em Washington para demonstrar o valor acrescentado da visão europeia do mundo, ancorada nos princípios do multilateralismo eficaz.
Ninguém esperará milagres, nem de um Congresso dominado pelos Democratas, nem mesmo de uma presidência democrata a partir de 2009. Os problemas estão para ficar, muitos profundamente enraizados e com uma dinâmica própria, independente das acções de Washington ou de seja quem for. Mas, face ao fracasso iraquiano, ao desafio iraniano e ao retrocesso no Afeganistão, não é utópico esperar de uns EUA mais ponderados (até pela impopularidade em todo o mundo) uma mudança de tom e de estratégia, especialmente em relação ao conflito israelo-palestiniano.
Cabe à Europa, envolvida no Afeganistão, no terreno no Líbano e actor decisivo na Palestina, contribuir para essa nova estratégia, mais que nunca investindo no diálogo transatlântico a todos os níveis. Pois não há ameaça comum, da proliferação das Armas de Destruição Maciça ao crime organizado, passando pelo terrorismo internacional, que possa ser derrotada pelos EUA, ou pela Europa, isoladamente. Os EUA precisam da Europa e vice-versa. E, do lado de lá, já o perceberam.
A arrogância ideológica e a falta de realismo e de escrúpulos legais e morais que tanto inquinaram as relações internacionais, não desaparecerão de um dia para o outro. Mas os últimos meses de 2006 representam o princípio do fim do Bushismo. Por muito que custe aos mais subservientes adeptos lusitanos de tão nefasta e desacreditada doutrina, a quem piedosamente convém lembrar o ditado latino: Vae victis!(Ai dos vencidos!).
(artigo publicado no COURRIER INTERNACIONAL, em 22.12.06)