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22 de janeiro de 2007

Quando o erro conforta o erro 

Por Vital Moreira

Segundo informava há dias o PÚBLICO, o provedor de Justiça emitiu um parecer em que defende que o Código Deontológico da Ordem dos Médicos não suscita nenhum problema, ao considerar como "falta deontológica grave" a prática de aborto pelos médicos, mesmo nos casos em que tal não é legalmente ilícito. Segundo o relato deste jornal, o parecer considera que a referida norma deontológica é uma simples "orientação ética", sem assumir relevância disciplinar. Embora sem conhecer os argumentos do referido parecer (que não foi disponibilizado nem no site do provedor nem no da Ordem), discordo inteiramente de tal conclusão.
Vejamos os termos da questão. Como se sabe, independentemente do próximo referendo, a lei penal em vigor já considera três casos em que o aborto não é ilícito, se praticado por médico. A saber: no caso de malformação do feto (podendo ser realizado nas primeiras 24 semanas de gestação); no caso de perigo de morte ou de grave e irreversível lesão física ou psíquica para a mulher grávida (podendo ser efectuado nas primeiras 12 semanas de gravidez); e no caso de gravidez resultante de violação da mulher (devendo ser feita nas primeiras 16 semanas de gestação). Em discrepância com a lei penal, porém, o Código Deontológico da Ordem dos Médicos considera sempre a prática de aborto por um médico como uma "infracção deontológica grave", ressalvando somente os casos-limite em que o aborto seja uma consequência inevitável de um tratamento imprescindível para poupar a vida da mulher grávida. É o seguinte o texto: "Não é considerado aborto (...) uma terapêutica imposta pela situação clínica da doente como único meio capaz de salvaguardar a sua vida e que possa ter como consequência a interrupção da gravidez, (...)." Ou seja, das três indicações previstas no Código Penal, o Código Deontológico só considera justificada uma delas; e, mesmo nesse caso, a sua formulação é muito mais restritiva do que a lei penal. Por isso, na maior parte dos casos de aborto penalmente lícitos, os médicos incorrem em "infracção deontológica grave", como se viu.
Poderia supor-se que não existe contradição, visto que uma coisa é a proibição penal, que releva de um juízo de censura social assumida pelo Estado, e outra coisa é a condenação deontológica, que se fundamenta em factores de ética profissional. Ou seja, o aborto pode não ser punido penalmente e ainda assim pode ser condenável segundo outras pautas valorativas, nomeadamente religiosas ou morais, incluindo a ética profissional. Conforme o parecer do provedor, há que fazer uma "distinção entre normas deontológicas e normas jurídicas, [dado] o papel indubitavelmente diverso que têm a lei penal e o acervo deontológico elaborado por determinada classe profissional". Mas este argumento, abstractamente defensável, não procede de modo algum na situação concreta. Por um lado, a referida condenação deontológica, como infracção grave, não se fica pelo foro ético ou moral, antes se traduz numa infracção disciplinar, como tal punida com as penas disciplinares que a gravidade da infracção justifica. Como reza explicitamente o art. 2.º do Estatuto Disciplinar dos Médicos, "comete infracção disciplinar o médico que, por acção ou omissão, violar dolosa ou negligentemente algum ou alguns dos deveres decorrentes do (...) do Código Deontológico (...)".
Não podem portanto restar quaisquer dúvidas de que, segundo as normas em causa, os médicos que praticarem abortos candidatam-se a pesadas penas disciplinares, mesmo na generalidade dos casos de abortos lícitos. Não se vê, portanto, como é que se pode concluir que actos médicos deontologicamente considerados como infracções graves poderiam deixar de ser objecto de punição disciplinar. De resto, numa corporação profissional pública, com poderes de regulação e disciplina profissional, uma infracção deontológica não pode deixar de ser uma infracção disciplinar.
Por outro lado, no caso dos médicos, não pode haver nenhuma discrepância entre licitude penal e licitude deontológica. A partir do momento em que a interrupção voluntária da gravidez (IVG) deixa de ser penalmente punida, as mulheres interessadas passam a ter um direito ao respectivo acto médico, o qual não pode ser recusado senão a título de objecção de consciência, nos termos previstos na Constituição e na lei. Portanto, um médico que não tenha motivos para invocar objecção de consciência, por razões religiosas ou outras, tem o dever deontológico de praticar o correspondente acto médico, não podendo este ser considerado como infracção deontológica (e logo, disciplinar), ainda por cima "grave". Mas uma coisa é os médicos terem direito à objecção de consciência - o que só pode ser considerado a nível individual -, outra coisa é os médicos estarem impedidos pela Ordem de praticar certo acto médico legalmente lícito, mesmo que não tenham nenhuma objecção pessoal. Deve, aliás, sublinhar-se que a objecção de consciência só pode ser regulada por lei e não por um código de deontologia profissional, que não é uma lei.
Se a Ordem dos Médicos (OM) fosse uma associação médica privada, de inscrição voluntária e de inspiração religiosa ou filosófica, nada haveria a objectar quanto às suas posições em matéria deontológica. Sucede, porém, que a OM é uma entidade oficial, exercendo poderes públicos outorgados pelo Estado, incluindo o poder (e o dever) de definir e de fazer cumprir as normas deontológicas para todos os médicos (e não somente para os médicos que compartilhem de uma certa visão quanto à censurabilidade do aborto). Como entidades públicas que são, as ordens profissionais são necessariamente aconfessionais. Por esse motivo, elas nunca podem considerar como deontologicamente ilícito e disciplinarmente punível aquilo que o Estado, ele mesmo, não considera punível. Como parte do Estado (lato sensu) que é, a Ordem dos Médicos não pode punir aquilo que o Estado não quer que seja punido.
Por último, mas não menos importante, mesmo que, por hipótese, a referida condenação deontológica fosse disciplinarmente irrelevante - como quer a criativa, e infundada, interpretação do referido parecer -, nem assim ela se tornaria aceitável. De facto, ao condenar certa prática médica no foro deontológico, a Ordem está a constranger gravemente os médicos que queiram cumprir os seus deveres médicos, executando a interrupção de gravidez nos casos legalmente admitidos. Pois, de duas, uma: ou os médicos banalizam a objecção de consciência, com base na radical censura deontológica da Ordem, pondo em causa o direito das mulheres interessadas a obterem uma IVG nos casos previstos na lei, ou eles optam por realizar esses actos médicos, como devem, incorrendo então na automática condenação moral da Ordem.
Tal como quaisquer outros cidadãos, os médicos podem ter e tomar posição na questão da despenalização do aborto, a favor ou contra. A Ordem, não. Primeiro, porque é uma entidade pública, com poderes oficiais, obrigada a uma posição neutral; segundo, porque representa todos os médicos, não podendo assumir como sua a posição de uma parte deles. Ora, não existe modo mais rotundo de tomar posição nesta questão do que condenar deontológica (mesmo se não disciplinarmente, como se alega) todos os casos de aborto, incluindo os que são lícitos e que os médicos estão obrigados a praticar (salvo objecção de consciência individual).
Ao coonestar a posição da Ordem, o provedor de Justiça emprestou a sua autoridade a esse "partis pris" insustentável. Há ocasiões infelizes assim, em que o erro conforta erro.

(Público, terça-feira, 16 de Janeiro de 2007)

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