26 de fevereiro de 2007
Revolução na função pública
Por Vital Moreira
Anda por aí uma discussão sobre as "funções nucleares do Estado", a propósito da definição dos serviços públicos onde deve manter-se o tradicional regime de emprego da função pública (FP) e não o do contrato individual de trabalho (CIT), que agora se pretende tornar o regime-regra na Administração Pública.
Importa, porém, ver a questão em termos mais amplos. Faz sentido estender ao sector público, em geral, o regime do contrato individual de trabalho e das relações colectivas de trabalho previsto no Código do Trabalho? E, nesse caso, justifica-se excluir determinadas funções estaduais desse regime, mantendo nelas o regime da função pública?
Tradicionalmente, nos sistemas administrativos de tipo francês, os servidores do Estado e demais entidades públicas não tinham o mesmo regime dos trabalhadores do sector privado. Assim sucedia entre nós. Os funcionários públicos tinham um regime definido por lei, e não por contrato. Eram nomeados, e não contratados. Gozavam de regalias específicas face aos trabalhadores do sector privado em numerosos aspectos, como, por exemplo, segurança absoluta no emprego, aposentação, horário de trabalho, férias, faltas, assistência na doença (ADSE). Antigamente, essas regalias tinham como contrapartida a restrição ou privação de certos direitos, como direitos sindicais, direito à greve, liberdade de expressão, obrigação de residência, etc. Porém, quando essas limitações desapareceram, com algumas excepções (em Portugal, em consequência do 25 de Abril e da Constituição de 1976), só ficaram as regalias.
No entanto, desde há muito que o regime da função pública deixou de se aplicar a todos os trabalhadores do sector público. Primeiro, foram os trabalhadores das empresas públicas, quando estas surgiram, aplicando-se-lhes o regime laboral comum. A distinção passou então a ser entre o sector público administrativo (SPA), onde vigorava o regime da função pública, e o sector público empresarial (SPE), onde valia o regime do contrato individual de trabalho. Porém, a partir dos anos 80 do século passado, o regime do CIT começou a ser aplicado também em alguns institutos públicos (administração indirecta do Estado), tendo-se multiplicado esses casos desde então, sempre numa base ad hoc, sem nenhuma lei geral que definisse as fronteiras entre os dois regimes.
Até que se chegou a 2004, quando a lei nº 23/2004, de 22 de Junho, veio permitir (mas não impor) a generalização da aplicação do CIT no sector público administrativo (embora com algumas especificidades), ressalvando somente as funções que impliquem "poderes de autoridade", que a lei se absteve, porém, de identificar. Do que se trata agora, portanto, é de clarificar as fronteiras da aplicação própria dos dois regimes e de proceder à revisão da referida lei.
Entretanto, há que ter em conta dois pontos que hoje são relativamente pacíficos. Por um lado, a manutenção do regime "estatutário" da função pública (nomeação vitalícia, etc.) não justifica a conservação das regalias injustificadas a ele associadas. Nos últimos tempos, têm sido tomadas medidas de aproximação dos dois regimes (por exemplo, segurança social), as quais devem prosseguir até onde seja justificado (por exemplo, não se vê por que é que os funcionários públicos hão-de ter um horário de trabalho menor, férias mais prolongadas ou um regime de faltas mais favorável). Por outro lado, a aplicação do regime do contrato individual de trabalho na Administração Pública não pode deixar de implicar certas adaptações (em matéria de recrutamento, de incompatibilidades e acumulações, de contratação colectiva, etc.), de modo a respeitar os princípios constitucionais da igualdade de acesso, da imparcialidade e da prossecução do interesse público.
A generalização do regime do CIT na Administração Pública tem que ver sobretudo com a aplicação da lógica da gestão privada no sector público, ao abrigo da doutrina da "nova gestão pública". Do que se trata é de estender ao sector público as regras de autonomia de gestão, responsabilidade dos gestores, flexibilidade, contratualização, diferenciação de remunerações de acordo com o desempenho e o mérito, etc. No entanto, essa importação do Código do Trabalho para a Administração Pública tem de compatibilizar-se, por um lado, com a "garantia institucional" da função pública (que só poderá ser eliminada mediante revisão constitucional) e, por outro lado, com as referidas adaptações, tornadas necessárias para assegurar o respeito de certos princípios constitucionais, que são válidos para a Administração Pública em geral.
Está por fazer um estudo do impacto da aplicação do CIT na Administração Pública. De facto, apesar das suas vantagens, ela não é isenta de riscos. Primeiro, ela pode levar a uma excessiva fragmentação dos regimes de trabalho na Administração Pública, conforme a força sindical de cada sector e a capacidade negocial dos gestores públicos, o que pode tornar necessário um apertado controlo central do Ministério das Finanças. Segundo, há indícios de que ela pode provocar uma sensível elevação das remunerações (e regalias complementares) dos quadros médios e superiores, aumentando por isso a factura orçamental com o pessoal. Terceiro, uma vez que a ampliação do CIT não pode ser imposta aos actuais funcionários públicos, a adopção daquele vai implicar, durante muitos anos, uma coabitação de dois regimes diferentes para os mesmos perfis funcionais em todos os serviços administrativos, o que não favorece propriamente uma gestão do pessoal isenta de atritos.
(Público, terça-feira, 20.02.2007)
Anda por aí uma discussão sobre as "funções nucleares do Estado", a propósito da definição dos serviços públicos onde deve manter-se o tradicional regime de emprego da função pública (FP) e não o do contrato individual de trabalho (CIT), que agora se pretende tornar o regime-regra na Administração Pública.
Importa, porém, ver a questão em termos mais amplos. Faz sentido estender ao sector público, em geral, o regime do contrato individual de trabalho e das relações colectivas de trabalho previsto no Código do Trabalho? E, nesse caso, justifica-se excluir determinadas funções estaduais desse regime, mantendo nelas o regime da função pública?
Tradicionalmente, nos sistemas administrativos de tipo francês, os servidores do Estado e demais entidades públicas não tinham o mesmo regime dos trabalhadores do sector privado. Assim sucedia entre nós. Os funcionários públicos tinham um regime definido por lei, e não por contrato. Eram nomeados, e não contratados. Gozavam de regalias específicas face aos trabalhadores do sector privado em numerosos aspectos, como, por exemplo, segurança absoluta no emprego, aposentação, horário de trabalho, férias, faltas, assistência na doença (ADSE). Antigamente, essas regalias tinham como contrapartida a restrição ou privação de certos direitos, como direitos sindicais, direito à greve, liberdade de expressão, obrigação de residência, etc. Porém, quando essas limitações desapareceram, com algumas excepções (em Portugal, em consequência do 25 de Abril e da Constituição de 1976), só ficaram as regalias.
No entanto, desde há muito que o regime da função pública deixou de se aplicar a todos os trabalhadores do sector público. Primeiro, foram os trabalhadores das empresas públicas, quando estas surgiram, aplicando-se-lhes o regime laboral comum. A distinção passou então a ser entre o sector público administrativo (SPA), onde vigorava o regime da função pública, e o sector público empresarial (SPE), onde valia o regime do contrato individual de trabalho. Porém, a partir dos anos 80 do século passado, o regime do CIT começou a ser aplicado também em alguns institutos públicos (administração indirecta do Estado), tendo-se multiplicado esses casos desde então, sempre numa base ad hoc, sem nenhuma lei geral que definisse as fronteiras entre os dois regimes.
Até que se chegou a 2004, quando a lei nº 23/2004, de 22 de Junho, veio permitir (mas não impor) a generalização da aplicação do CIT no sector público administrativo (embora com algumas especificidades), ressalvando somente as funções que impliquem "poderes de autoridade", que a lei se absteve, porém, de identificar. Do que se trata agora, portanto, é de clarificar as fronteiras da aplicação própria dos dois regimes e de proceder à revisão da referida lei.
Entretanto, há que ter em conta dois pontos que hoje são relativamente pacíficos. Por um lado, a manutenção do regime "estatutário" da função pública (nomeação vitalícia, etc.) não justifica a conservação das regalias injustificadas a ele associadas. Nos últimos tempos, têm sido tomadas medidas de aproximação dos dois regimes (por exemplo, segurança social), as quais devem prosseguir até onde seja justificado (por exemplo, não se vê por que é que os funcionários públicos hão-de ter um horário de trabalho menor, férias mais prolongadas ou um regime de faltas mais favorável). Por outro lado, a aplicação do regime do contrato individual de trabalho na Administração Pública não pode deixar de implicar certas adaptações (em matéria de recrutamento, de incompatibilidades e acumulações, de contratação colectiva, etc.), de modo a respeitar os princípios constitucionais da igualdade de acesso, da imparcialidade e da prossecução do interesse público.
A generalização do regime do CIT na Administração Pública tem que ver sobretudo com a aplicação da lógica da gestão privada no sector público, ao abrigo da doutrina da "nova gestão pública". Do que se trata é de estender ao sector público as regras de autonomia de gestão, responsabilidade dos gestores, flexibilidade, contratualização, diferenciação de remunerações de acordo com o desempenho e o mérito, etc. No entanto, essa importação do Código do Trabalho para a Administração Pública tem de compatibilizar-se, por um lado, com a "garantia institucional" da função pública (que só poderá ser eliminada mediante revisão constitucional) e, por outro lado, com as referidas adaptações, tornadas necessárias para assegurar o respeito de certos princípios constitucionais, que são válidos para a Administração Pública em geral.
Está por fazer um estudo do impacto da aplicação do CIT na Administração Pública. De facto, apesar das suas vantagens, ela não é isenta de riscos. Primeiro, ela pode levar a uma excessiva fragmentação dos regimes de trabalho na Administração Pública, conforme a força sindical de cada sector e a capacidade negocial dos gestores públicos, o que pode tornar necessário um apertado controlo central do Ministério das Finanças. Segundo, há indícios de que ela pode provocar uma sensível elevação das remunerações (e regalias complementares) dos quadros médios e superiores, aumentando por isso a factura orçamental com o pessoal. Terceiro, uma vez que a ampliação do CIT não pode ser imposta aos actuais funcionários públicos, a adopção daquele vai implicar, durante muitos anos, uma coabitação de dois regimes diferentes para os mesmos perfis funcionais em todos os serviços administrativos, o que não favorece propriamente uma gestão do pessoal isenta de atritos.
(Público, terça-feira, 20.02.2007)