11 de fevereiro de 2007
Um teste civilizacional em Portugal
Por Vital Moreira
1. Pela segunda vez em 10 anos os portugueses são chamados a decidir em referendo se querem ou não a despenalização do aborto voluntário até às 10 semanas, modificando para isso o Código Penal, que considera em geral o aborto como crime, punindo-o com uma pena de prisão até três anos. Em 1998, embora por escassa maioria e com baixíssima participação no referendo, os portugueses rejeitaram a despenalização.
Desde 1984, a proibição criminal do aborto conhece três excepções, relacionadas com o grave perigo para a vida ou saúde da mulher grávida, com a doença ou malformação do feto e com a violação. Contudo, diferentemente do que sucedeu em Espanha (talvez por a formulação da lei portuguesa ser mais restrita do que a espanhola), as excepções legais à ilicitude penal do aborto foram interpretadas e aplicadas de forma muito estrita. Por isso, essas excepções, embora tenham resolvido as situações mais dramáticas (realizam-se umas centenas de abortos legais por ano), não permitiram nenhuma mudança significativa no panorama da legalização da interrupção voluntária da gravidez e da luta contra o aborto clandestino.
As consequências da punição penal do aborto são incontestáveis. Por um lado, segundo os dados disponíveis, o aborto clandestino atinge cerca 20000 casos por ano, em condições muitas vezes inseguras (salvo para a mulheres que rumam a Mérida e a Badajoz para realizarem o aborto em clínicas espanholas); são vários milhares por ano os casos de abortos clandestinos mal feitos que acabam no SNS; há registo de várias mulheres mortas em consequência de abortos mal sucedidos. Por outro lado, apesar de em geral não haver perseguição criminal do aborto, há sempre o risco de isso suceder. Desde 1998 houve vários julgamentos e condenações, submetendo as mulheres e os participantes de abortos ao estigma e à humilhação pública.
2. As razões contra a proibição penal do aborto são concludentes em Portugal. Ela não goza do mínimo de consenso social que deve fundamentar a lei penal num Estado de direito democrático, sendo evidente que a generalidade das pessoas não denuncia nem deseja ver julgado o aborto. Não consegue os seus fins de prevenção social do aborto, dados os impressionantes números de abortamentos clandestinos. Não protege a vidas e a saúde das mulheres que não desejem conservar uma gravidez indesejada, vistos os números de casos clínicos e de mortes pós-abortivas. Não garante o direito das mulheres a uma maternidade consciente, constrangendo-as a manterem uma gestação não querida quando não conseguem superar o receio da perseguição e da punição criminal.
Em Portugal, tal como nos demais países que ainda criminalizam o aborto, as mulheres que sejam vítimas de gravidez indesejada (por acidente, ignorância, erro, imprevidência, etc.), só podem optar entre o aborto clandestino e a maternidade forçada. Ao fim e ao cabo, a proibição penal do aborto limita-se a tutelar por via penal o paradigma moral ou religioso de uma parte da sociedade, forçando todo as demais pessoas a conformarem-se com ela ou a sofrerem as consequências penais.
3. O que é que mudou desde o referendo à despenalização do aborto de 1998, para admitir que o resultado pode ser diferente desta vez?
Em primeiro lugar, hoje é muito mais evidente do que há nove anos que a repressão penal do aborto não só não serve para impedir ou dissuadir os abortos, como tem efeitos muito perversos no plano da dignidade, da liberdade, da saúde e mesmo da vida das mulheres, bem como na credibilidade e autoridade da lei penal.
Em segundo lugar, é agora mais favorável ao alinhamento de forças políticas. Em 1998, devido à posição do seu secretário-geral de então (António Guterres, um católico que tomou posição contra a despenalização), o PS manteve-se quase à margem do referendo; desta vez, a começar pelo seu secretário-geral, José Sócrates, o PS resolveu assumir toda a sua responsabilidade moral e política na despenalização. Em 1998, o PSD, o partido de centro-direita, alinhou oficialmente com o "não", em consonância com a direita e a extrema-direita; desta vez, porém, o PSD não tem posição oficial, o que permitiu que vários dos seus deputados, dirigentes e militantes se manifestem a favor da despenalização e participem activamente na respectiva campanha.
Por último, também aumentou a contestação social à punição penal do aborto, mesmos nos sectores tradicionalmente hostis à despenalização. Diferentemente do que se passou em 1998, agora é possível encontrar na luta pela despenalização significativos grupos de liberais de direita, de católicos e de médicos, contrariando as respectivas obediências políticas e institucionais, respectivamente os partidos de direita, a Igreja Católica e a Ordem dos Médicos.
Será que essas mudanças bastam para garantir desta vez o triunfo da despenalização? É provável mas não é seguro. Em contrapartida, as forças mais conservadoras, lideradas e organizadas pela Igreja católica, incluindo o cardeal de Lisboa e muitos bispos, bem como as suas organizações leigas, redobraram e aprofundaram a sua militância contra a despenalização, não revelando aliás excessivos escrúpulos nos meios e métodos utilizados, incluindo o terrorismo verbal (comparação do aborto ao terrorismo e à pena de morte) e a utilização dos espaços de culto e das instituições sociais e educativas a seu cargo.
4. O referendo deste domingo em Portugal não se restringe à despenalização do aborto. É também um teste de civilização, entre a pré-modernidade ou a modernidade, entre a confusão ou a separação entre a ordem moral e a ordem penal, entre a submissão ao dogma moral ou a liberdade e autonomia pessoal, entre o império religioso ou o Estado laico.
A rejeição da despenalização do aborto, nos termos equilibrados e moderados propostos no referendo, não significa somente adiar a solução do aborto clandestino por mais um geração; significará também o cancelamento de qualquer avanço noutros campos da emancipação pessoal face ao atavismo moral e religioso (educação sexual, direitos das mulheres, não discriminação por razões de orientação sexual, etc.). A vitória da despenalização significará o triunfo definitivo da modernidade de Portugal, da liberdade individual e autonomia moral sobre os dogmas religiosos, da laicidade do Estado na definição dos valores tutelados pela lei penal, do alinhamento do país com o paradigma europeu da autonomia feminina, da liberdade pessoal e dos limites da repressão penal.
[Versão original em Português do artigo publicado no El País, sábado, 9 de Fevereiro de 2007, com o título "Una prueba de civilización"]
1. Pela segunda vez em 10 anos os portugueses são chamados a decidir em referendo se querem ou não a despenalização do aborto voluntário até às 10 semanas, modificando para isso o Código Penal, que considera em geral o aborto como crime, punindo-o com uma pena de prisão até três anos. Em 1998, embora por escassa maioria e com baixíssima participação no referendo, os portugueses rejeitaram a despenalização.
Desde 1984, a proibição criminal do aborto conhece três excepções, relacionadas com o grave perigo para a vida ou saúde da mulher grávida, com a doença ou malformação do feto e com a violação. Contudo, diferentemente do que sucedeu em Espanha (talvez por a formulação da lei portuguesa ser mais restrita do que a espanhola), as excepções legais à ilicitude penal do aborto foram interpretadas e aplicadas de forma muito estrita. Por isso, essas excepções, embora tenham resolvido as situações mais dramáticas (realizam-se umas centenas de abortos legais por ano), não permitiram nenhuma mudança significativa no panorama da legalização da interrupção voluntária da gravidez e da luta contra o aborto clandestino.
As consequências da punição penal do aborto são incontestáveis. Por um lado, segundo os dados disponíveis, o aborto clandestino atinge cerca 20000 casos por ano, em condições muitas vezes inseguras (salvo para a mulheres que rumam a Mérida e a Badajoz para realizarem o aborto em clínicas espanholas); são vários milhares por ano os casos de abortos clandestinos mal feitos que acabam no SNS; há registo de várias mulheres mortas em consequência de abortos mal sucedidos. Por outro lado, apesar de em geral não haver perseguição criminal do aborto, há sempre o risco de isso suceder. Desde 1998 houve vários julgamentos e condenações, submetendo as mulheres e os participantes de abortos ao estigma e à humilhação pública.
2. As razões contra a proibição penal do aborto são concludentes em Portugal. Ela não goza do mínimo de consenso social que deve fundamentar a lei penal num Estado de direito democrático, sendo evidente que a generalidade das pessoas não denuncia nem deseja ver julgado o aborto. Não consegue os seus fins de prevenção social do aborto, dados os impressionantes números de abortamentos clandestinos. Não protege a vidas e a saúde das mulheres que não desejem conservar uma gravidez indesejada, vistos os números de casos clínicos e de mortes pós-abortivas. Não garante o direito das mulheres a uma maternidade consciente, constrangendo-as a manterem uma gestação não querida quando não conseguem superar o receio da perseguição e da punição criminal.
Em Portugal, tal como nos demais países que ainda criminalizam o aborto, as mulheres que sejam vítimas de gravidez indesejada (por acidente, ignorância, erro, imprevidência, etc.), só podem optar entre o aborto clandestino e a maternidade forçada. Ao fim e ao cabo, a proibição penal do aborto limita-se a tutelar por via penal o paradigma moral ou religioso de uma parte da sociedade, forçando todo as demais pessoas a conformarem-se com ela ou a sofrerem as consequências penais.
3. O que é que mudou desde o referendo à despenalização do aborto de 1998, para admitir que o resultado pode ser diferente desta vez?
Em primeiro lugar, hoje é muito mais evidente do que há nove anos que a repressão penal do aborto não só não serve para impedir ou dissuadir os abortos, como tem efeitos muito perversos no plano da dignidade, da liberdade, da saúde e mesmo da vida das mulheres, bem como na credibilidade e autoridade da lei penal.
Em segundo lugar, é agora mais favorável ao alinhamento de forças políticas. Em 1998, devido à posição do seu secretário-geral de então (António Guterres, um católico que tomou posição contra a despenalização), o PS manteve-se quase à margem do referendo; desta vez, a começar pelo seu secretário-geral, José Sócrates, o PS resolveu assumir toda a sua responsabilidade moral e política na despenalização. Em 1998, o PSD, o partido de centro-direita, alinhou oficialmente com o "não", em consonância com a direita e a extrema-direita; desta vez, porém, o PSD não tem posição oficial, o que permitiu que vários dos seus deputados, dirigentes e militantes se manifestem a favor da despenalização e participem activamente na respectiva campanha.
Por último, também aumentou a contestação social à punição penal do aborto, mesmos nos sectores tradicionalmente hostis à despenalização. Diferentemente do que se passou em 1998, agora é possível encontrar na luta pela despenalização significativos grupos de liberais de direita, de católicos e de médicos, contrariando as respectivas obediências políticas e institucionais, respectivamente os partidos de direita, a Igreja Católica e a Ordem dos Médicos.
Será que essas mudanças bastam para garantir desta vez o triunfo da despenalização? É provável mas não é seguro. Em contrapartida, as forças mais conservadoras, lideradas e organizadas pela Igreja católica, incluindo o cardeal de Lisboa e muitos bispos, bem como as suas organizações leigas, redobraram e aprofundaram a sua militância contra a despenalização, não revelando aliás excessivos escrúpulos nos meios e métodos utilizados, incluindo o terrorismo verbal (comparação do aborto ao terrorismo e à pena de morte) e a utilização dos espaços de culto e das instituições sociais e educativas a seu cargo.
4. O referendo deste domingo em Portugal não se restringe à despenalização do aborto. É também um teste de civilização, entre a pré-modernidade ou a modernidade, entre a confusão ou a separação entre a ordem moral e a ordem penal, entre a submissão ao dogma moral ou a liberdade e autonomia pessoal, entre o império religioso ou o Estado laico.
A rejeição da despenalização do aborto, nos termos equilibrados e moderados propostos no referendo, não significa somente adiar a solução do aborto clandestino por mais um geração; significará também o cancelamento de qualquer avanço noutros campos da emancipação pessoal face ao atavismo moral e religioso (educação sexual, direitos das mulheres, não discriminação por razões de orientação sexual, etc.). A vitória da despenalização significará o triunfo definitivo da modernidade de Portugal, da liberdade individual e autonomia moral sobre os dogmas religiosos, da laicidade do Estado na definição dos valores tutelados pela lei penal, do alinhamento do país com o paradigma europeu da autonomia feminina, da liberdade pessoal e dos limites da repressão penal.
[Versão original em Português do artigo publicado no El País, sábado, 9 de Fevereiro de 2007, com o título "Una prueba de civilización"]