12 de março de 2007
Ligeireza nas armas ligeiras
Por Ana Gomes
Desde 1990, mais de 2 milhões de crianças foram mortas e mais de 6 milhões ficaram feridas em guerras diversas. A esmagadora maioria vitimadas por armas ligeiras e de pequeno calibre. Em África e noutras regiões, longe das câmaras e da nossa atenção, são no dia-a-dia estas as armas que alimentam os conflitos e espalham a morte, cimentando a reputação de verdadeiras ADM (armas de destruição maciça) nos países mais pobres do planeta.
A facilidade em transportar e produzir estas armas torna-as particularmente apreciadas no comércio, lícito e ilícito. A sua leveza incentiva o recrutamento de crianças-soldados, um das implicações mais repugnantes do comércio destas armas, particularmente comum na região dos Grandes Lagos em África.
Sabemos como a paz e a segurança são inseparáveis do desenvolvimento sustentável. Os países do G8, os mais ricos do mundo, gastam em "ajuda oficial ao desenvolvimento" 63 mil milhões de Euros por ano, suportando a Europa mais de metade. Mas ao mesmo tempo, entre 2002 e 2005, por exemplo, os países europeus foram responsáveis por mais de metade do valor dos acordos de exportação de armamento para o continente africano: € 2 mil milhões. Muitos destes negócios de exportação de armamento são feitos com países ditos estáveis, como o Egipto e a África do Sul. Mas a verdade é que a exportação legal e ilegal de armas ligeiras por países europeus e outros (especialmente a China e a Rússia) contribui em muito para desfazer rapidamente aquilo que foi construído em décadas de cooperação para o desenvolvimento.
Muito depende de se regulamentar a exportação legal de armamento de forma a evitar que este caia nas mãos erradas. A União Europeia tem assumido a liderança internacional nesta matéria, no quadro do Programa das Nações Unidas contra o comércio ilegal destas armas. Em 1998 foi criado um Código de Conduta de Exportação de Armamento da UE, cuja sofisticação e eficácia aumenta de ano para ano e cujos relatórios anuais descrevem minuciosamente as exportações de armamento que cada Estado Membro declara. Mas há exportações não declaradas. Na verdade, o Código é um compromisso político de boas intenções: não é ainda juridicamente vinculativo, como tem insistentemente recomendado o PE. E alguns Estados Membros (Portugal incluído) consideram até que "já se cumpre bem".
O sistema nacional de controlo de exportação de armamento é complexo, já que assenta numa distinção importante, mas difícil de operacionalizar, entre armamento militar (da responsabilidade do Ministério da Defesa Nacional) e o resto (da responsabilidade da PSP/Ministério da Administração Interna). Existe o sério risco das exportações de armas ligeiras e de pequeno calibre que não são consideradas de 'utilização militar' escaparem a critérios políticos, estratégicos e acima de tudo, humanitários, quando são apreciadas para efeitos de autorização. Um exemplo: entre 1998 e 2003 foram exportadas armas de fogo para fins não militares para o Líbano, no valor de USD $460.000. Pode tratar-se de uma exportação "inocente". Ou talvez não.
Suscita também interrogações o elevado números de armeiros (potenciais exportadores) acreditados no MDN e na PSP. Como se explica o facto de estarem registados mais de 400 no MDN e outros tantos na PSP, quando há apenas uma fábrica em Viana do Castelo que produz armas ligeiras e é suposta exportar para a casa-mãe, na Bélgica, boa parte do que fabrica? Quem são estes numerosos armeiros registados? O que exportam e para onde? Quem controla realmente o que exportam, quando e para onde? Estas questões precisam de ser esclarecidas, tanto mais que Portugal é um dos poucos países da União Europeia que ainda não estão a aplicar uma Posição Comum do Conselho Europeu (de 2003 ! ) sobre a intermediação de armamento, sendo a nossa legislação nesta área completamente insuficiente para lidar com um sector cada vez mais transnacional e cada vez menos escrupuloso.
Quem não pode eximir-se de exercer controlo político nesta área é o MNE, que deve transmitir aos outros departamentos do Estado (MDN, MAI) as linhas mestras da política de exportação de armamento portuguesa (se é que existe), muito além do mero cumprimento de embargos de armas e que tem de assegurar o respeito do Código de Conduta da UE.
Como portugueses e europeus temos que ser inatacáveis neste domínio. Só assim podemos pretender que a UE lidere os esforços globais na área do desarmamento convencional. E só assim podemos pretender sermos coerentes na aplicação das estratégias europeias para África e em favor do desenvolvimento.
(Publicado no COURRIER INTERNACIONAL, em 16.2.2007)
Desde 1990, mais de 2 milhões de crianças foram mortas e mais de 6 milhões ficaram feridas em guerras diversas. A esmagadora maioria vitimadas por armas ligeiras e de pequeno calibre. Em África e noutras regiões, longe das câmaras e da nossa atenção, são no dia-a-dia estas as armas que alimentam os conflitos e espalham a morte, cimentando a reputação de verdadeiras ADM (armas de destruição maciça) nos países mais pobres do planeta.
A facilidade em transportar e produzir estas armas torna-as particularmente apreciadas no comércio, lícito e ilícito. A sua leveza incentiva o recrutamento de crianças-soldados, um das implicações mais repugnantes do comércio destas armas, particularmente comum na região dos Grandes Lagos em África.
Sabemos como a paz e a segurança são inseparáveis do desenvolvimento sustentável. Os países do G8, os mais ricos do mundo, gastam em "ajuda oficial ao desenvolvimento" 63 mil milhões de Euros por ano, suportando a Europa mais de metade. Mas ao mesmo tempo, entre 2002 e 2005, por exemplo, os países europeus foram responsáveis por mais de metade do valor dos acordos de exportação de armamento para o continente africano: € 2 mil milhões. Muitos destes negócios de exportação de armamento são feitos com países ditos estáveis, como o Egipto e a África do Sul. Mas a verdade é que a exportação legal e ilegal de armas ligeiras por países europeus e outros (especialmente a China e a Rússia) contribui em muito para desfazer rapidamente aquilo que foi construído em décadas de cooperação para o desenvolvimento.
Muito depende de se regulamentar a exportação legal de armamento de forma a evitar que este caia nas mãos erradas. A União Europeia tem assumido a liderança internacional nesta matéria, no quadro do Programa das Nações Unidas contra o comércio ilegal destas armas. Em 1998 foi criado um Código de Conduta de Exportação de Armamento da UE, cuja sofisticação e eficácia aumenta de ano para ano e cujos relatórios anuais descrevem minuciosamente as exportações de armamento que cada Estado Membro declara. Mas há exportações não declaradas. Na verdade, o Código é um compromisso político de boas intenções: não é ainda juridicamente vinculativo, como tem insistentemente recomendado o PE. E alguns Estados Membros (Portugal incluído) consideram até que "já se cumpre bem".
O sistema nacional de controlo de exportação de armamento é complexo, já que assenta numa distinção importante, mas difícil de operacionalizar, entre armamento militar (da responsabilidade do Ministério da Defesa Nacional) e o resto (da responsabilidade da PSP/Ministério da Administração Interna). Existe o sério risco das exportações de armas ligeiras e de pequeno calibre que não são consideradas de 'utilização militar' escaparem a critérios políticos, estratégicos e acima de tudo, humanitários, quando são apreciadas para efeitos de autorização. Um exemplo: entre 1998 e 2003 foram exportadas armas de fogo para fins não militares para o Líbano, no valor de USD $460.000. Pode tratar-se de uma exportação "inocente". Ou talvez não.
Suscita também interrogações o elevado números de armeiros (potenciais exportadores) acreditados no MDN e na PSP. Como se explica o facto de estarem registados mais de 400 no MDN e outros tantos na PSP, quando há apenas uma fábrica em Viana do Castelo que produz armas ligeiras e é suposta exportar para a casa-mãe, na Bélgica, boa parte do que fabrica? Quem são estes numerosos armeiros registados? O que exportam e para onde? Quem controla realmente o que exportam, quando e para onde? Estas questões precisam de ser esclarecidas, tanto mais que Portugal é um dos poucos países da União Europeia que ainda não estão a aplicar uma Posição Comum do Conselho Europeu (de 2003 ! ) sobre a intermediação de armamento, sendo a nossa legislação nesta área completamente insuficiente para lidar com um sector cada vez mais transnacional e cada vez menos escrupuloso.
Quem não pode eximir-se de exercer controlo político nesta área é o MNE, que deve transmitir aos outros departamentos do Estado (MDN, MAI) as linhas mestras da política de exportação de armamento portuguesa (se é que existe), muito além do mero cumprimento de embargos de armas e que tem de assegurar o respeito do Código de Conduta da UE.
Como portugueses e europeus temos que ser inatacáveis neste domínio. Só assim podemos pretender que a UE lidere os esforços globais na área do desarmamento convencional. E só assim podemos pretender sermos coerentes na aplicação das estratégias europeias para África e em favor do desenvolvimento.
(Publicado no COURRIER INTERNACIONAL, em 16.2.2007)