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4 de março de 2007

Loteamento partidário 

Por Vital Moreira

Há poucos dias, o PÚBLICO noticiava que a empresa municipal Gebalis, que gere o parque de bairros municipais de Lisboa, tem perto de 30 trabalhadores do PSD, cuja secção partidária é coordenada pelo próprio vereador do pelouro competente para essa área, trabalhadores esses recrutados pelo mesmo vereador quando foi director da referida empresa.
Esta notícia, perdida na secção local do jornal, não suscitou aparentemente nenhum escândalo nem por parte da opinião pública nem por parte das oposições no município lisboeta. No entanto, ela levanta quatro problemas que não devem passar despercebidos, a saber: (i) a instrumentalização partidária dos serviços e empresas públicas; (ii) a promiscuidade entre o desempenho de cargos públicos e o exercício de funções partidárias; (iii) os efeitos perversos da partilha pluripartidária do poder executivo municipal; (iv) a situação especialmente grave do caso de Lisboa. Vejamos separadamente cada um deles.
Em primeiro lugar, um dos princípios básicos num Estado de direito democrático é o direito de acesso ao emprego no sector público em condições de igualdade, sem favoritismos, nomeadamente de natureza partidária. Daí a distinção entre cargos de confiança política, de livre escolha e exoneração, e as funções que devem reger-se por relações de emprego imunes à preferência partidária. Por isso é que tradicionalmente os lugares na função pública são providos por concurso e que na lei do contrato de trabalho na Administração Pública existe um procedimento de recrutamento público, aberto e imparcial.
No entanto, a lei exclui as empresas públicas, porventura pressupondo que a gestão empresarial conduzirá automaticamente a um recrutamento imparcial, tendo em conta somente o melhor interesse e a eficiência da empresa. Infelizmente, sabemos bem que assim não é, sobretudo em empresas não sujeitas à concorrência (como é o caso). Por isso, é altura de encarar a extensão dos referidos procedimentos ao sector público empresarial, sob pena de manter situações, como a da notícia, de clara violação dos princípios constitucionais no acesso ao emprego no sector público.
Em segundo lugar, embora os cargos públicos de natureza electiva sejam normalmente exercidos por pessoas pertencentes a partidos políticos, impõe-se uma separação entre o desempenho daqueles e o exercício de funções partidárias. Não é preciso sequer que seja a lei a estabelecer as necessárias incompatibilidades, bastando um mínimo de ética política democrática e de virtude republicana para as aconselhar. É intolerável, sob qualquer ponto de vista, a situação de um vereador a desempenhar funções de "controleiro" político dos trabalhadores pertencentes ao seu partido nos próprios serviços ou empresas sob sua tutela. Já se imaginou um ministro a controlar os trabalhadores do partido do Governo nas empresas do seu ministério?
"Est modus in rebus", diziam os romanos, querendo dizer que há limites para tudo. O mínimo que se pode exigir é que os partidos políticos adoptem e façam cumprir códigos de ética política que evitem situações tão escandalosas como a relatada na notícia referida. Não podemos consentir situações destas e depois lamentar a crescente desafeição e desconfiança popular em relação aos partidos políticos e à vida partidária.
Em terceiro lugar, é evidente que situações como a referida, incluindo o edificante silêncio dos partidos de oposição ("quem tem telhados de vidro"...), testemunham os malefícios da partilha partidária do poder local, imposta pelo actual sistema de governo municipal. Inicialmente, pensava-se que a eleição proporcional da câmara municipal e a coabitação forçada da maioria e da oposição facilitariam o controlo do executivo municipal no próprio interior da câmara. Mas a realidade prova que, na maior parte das vezes, não é isso que sucede. A partilha do poder, mesmo na oposição, gera cumplicidades, facilita a distribuição de posições e de vantagens, proporciona a "compra" da oposição pela maioria, mediante a distribuição de benesses (atribuição de pelouros e de responsabilidades em estabelecimentos ou empresas municipais, recrutamento de assessores e outro pessoal, etc.).
Por isso, impõe-se a revisão do sistema de governo municipal, de forma a separar os papéis da maioria (que deve governar sob sua inteira responsabilidade) e da oposição (que deve escrutinar e controlar a câmara municipal), bem como a reduzir a dimensão dos executivos municipais (há alguma razão para Lisboa ter quase 20 vereadores?!), a restaurar a função fiscalizadora da assembleia municipal (que o actual sistema praticamente esvazia), tudo isto, porém, sem substituir a situação actual por uma espécie de superpresidencialismo municipal (venha o diabo e escolha...), com a "atrelagem" da eleição da assembleia à eleição do presidente da câmara, como propõem tanto o PS como o PSD.
Por último, há que observar que Lisboa constitui um caso paradigmático de loteamento partidário do poder autárquico. Por várias razões: por ser o município da capital, com vastos recursos, que os diversos partidos políticos aproveitaram para "encabidar" centenas de quadros partidários (desde incontáveis assessores aos empolados quadros dos serviços e empresas municipais); por ter tido vários governos de coligação, onde todos os partidos do arco parlamentar têm participado e tirado proveito, em maior ou menor medida; por ter sido o primeiro município a fazer proliferar as empresas municipais, com a criação de numerosos lugares bem remunerados e o favorecimento partidário que isso proporciona, etc.
Decididamente, o saneamento político do poder local deve começar por Lisboa.

(Vital Moreira, Público, 27.02.2007)

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