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26 de março de 2007

Reabilitação da escola pública 

Por Vital Moreira

Entre as reformas que o primeiro-ministro contabilizou a seu crédito na celebração do segundo ano do mandato do Governo conta-se a defesa da escola pública. Tem suficientes razões para isso, mas é preciso levar até ao fim a tarefa de saneamento dos vários factores que desde há muitos anos se foram desenvolvendo contra o ensino público, incluindo escolhas políticas deliberadas.
Nos termos da Constituição, e de acordo com a tradição republicana, o ensino é entre nós uma das tarefas essenciais do Estado, a quem incumbe garantir a toda a gente o direito ao ensino, a começar pelo ensino básico, que deve ser obrigatório e gratuito. A escola pública é um direito de todos os cidadãos. Por isso, constitui obrigação do Estado manter e desenvolver o sistema público de ensino, incluindo a criação e manutenção de escolas que satisfaçam as necessidades de toda a população. Mas não basta ter escolas e professores, sendo também necessário que a escola pública preencha elevados padrões de qualidade que a tornem recomendável para a generalidade dos portugueses.
Infelizmente, as responsabilidades do Estado em relação ao ensino público há muito que vinham a ser desrespeitadas, tendo-se assistido à sua contínua deterioração, acompanhada de um claro favorecimento do ensino privado. Em muitas zonas do país, o parque escolar público encontra-se degradado, nomeadamente ao nível das escolas do primeiro ciclo do ensino básico, que são da responsabilidade dos municípios. Basta ver o que se passa em Lisboa, onde a situação é pouco menos que escandalosa. Acrescente-se a manutenção em funcionamento de escolas com frequência muito abaixo do recomendável, os horários escolares reduzidos (muitas vezes em meio tempo), a instabilidade do pessoal docente e o laxismo quanto às faltas dos professores, a ausência de cantinas e recintos desportivos, o crescimento da indisciplina e da segurança escolares, etc.
Como se isso não bastasse, o Estado actuou propositadamente no sentido de favorecer as escolas privadas, através do abuso dos "contratos de associação" e outras formas de "externalização" do serviço público de ensino, mesmo fora das situações de carência de escolas públicas, como deveria ser exigível. Chega-se a situações em que na mesma localidade coabitam escolas públicas semiocupadas e subaproveitadas e escolas privadas "associadas", pagas pelo Estado. O abuso dos contratos de associação conduz a uma duplicação de gastos públicos, bem como, pior do que isso, a uma discriminação social do ensino, com as crianças de famílias mais abastadas a frequentar as escolas privadas, pagando as vantagens extra por elas proporcionadas, e as demais crianças a frequentar a escola pública, por falta de meios para suportar esses encargos adicionais.
Ora, essa divisão social quanto ao ensino contraria essencialmente a vocação de igualdade social, de inclusividade e de coesão social da escola pública. A justificação desta não consiste em proporcionar um ensino de último recurso para quem não tem meios de frequentar escolas privadas ("subsidiariedade da escola pública"). Pelo contrário, trata-se de impedir um "apartheid" social entre escolas para os ricos e escolas para os pobres.
É evidente que o direito à escola pública coexiste com a faculdade de escolha de escolas privadas, cuja criação é aliás livre (quando preenchidos os requisitos legais). Mas ninguém pode fazer "opting out" da escola pública para efeito de exigir que o Estado suporte os encargos da frequência de escolas privadas. Não está excluído que o Estado apoie as escolas privadas (como ocorre desde logo com a concessão geral do estatuto de utilidade pública, com as inerentes regalias fiscais), ou quem as queira frequentar (como sucede com as deduções fiscais das despesas de ensino). Porém, a primeira responsabilidade do Estado é com a escola pública, pelo que aquele não pode sacrificar as suas obrigações em relação ao ensino público, desviando meios para apoiar o ensino privado.
A primeira prioridade na reabilitação da escola pública consiste em melhorar as suas condições e o serviço que prestam. Não é possível defender eficazmente a escola pública, se ela fica aquém da prestação média das escolas privadas concorrentes. O Governo tem investido esforços nesse sentido, bastando mencionar o alargamento do horário escolar, permitindo aos pais que trabalham manter os filhos na escola; as aulas de substituição em caso de falta dos professores; a estabilização do corpo docente, com os concursos plurianuais; o encerramento de escolas com frequência reduzida, em favor da frequência de escolas mais bem equipadas e com melhor serviço; a prevista avaliação de professores e estabelecimentos; as medidas de reforço da segurança e da disciplina escolar; o programa de reabilitação do parque escolar, etc.
Recuperada e assegurada a qualidade e a universalidade da escola pública, importa também abrir espaço para alguma competição dentro do sistema público (com a necessária possibilidade de escolha entre escolas) e, finalmente, para pôr fim aos abusos da contratualização de escolas privadas, reconduzindo-a às condições que a justificam, nomeadamente as situações de carência de escolas públicas, se as houver, que por natureza devem ser sempre transitórias. É inadmissível que o Estado desvie para o pagamento de serviços redundantes a escolas privadas os meios financeiros que fazem falta para melhorar as escolas públicas, como é sua obrigação. Por isso, os contratos existentes deveriam ser objecto de uma revisão geral, para reexame da sua necessidade.
Se o actual Governo quer imprimir marcas progressistas duradouras nas suas políticas, para além da esfera social, a valorização da escola pública não pode deixar de ocupar um lugar proeminente entre elas. Poucas são tão valiosas nem tão identificadoras como esta.
(Publico, terça-feira, 20 de Março de 2003)

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