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26 de março de 2007

Universidades dependentes 

Por Vital Moreira

A gravidade das recentes perturbações na Universidade Independente vieram chamar novamente a atenção para a degradação institucional e académica de vários estabelecimentos de ensino superior privados. Seria lamentável (para não dizer inaceitável) que, mais uma vez, o Estado fizesse de conta que nada se passa, contribuindo, por omissão, para o agravamento da preocupante situação do sector.
Com excepção da Universidade Católica, o ensino superior particular desenvolveu-se em Portugal desde os anos 80 do século passado de forma desregulada e sem controlo público, aproveitando o súbito alargamento da procura e a incapacidade do sistema público para lhe corresponder. Quando a lei veio proceder ao enquadramento desse subsector, já se tinham criado e consolidado situações que limitaram os requisitos e as exigências legais dessas instituições, quer em termos de predicados institucionais e financeiros das entidades instituidoras, quer em termos de organização e de autonomia dos estabelecimentos em relação àquelas. Como se não bastasse esse défice de regulamentação normativa, sucedeu-se uma generalizada falta de supervisão, que permitiu a criação de numerosas situações à margem da lei e de incumprimento impune dos requisitos estabelecidos.
Foi assim que proliferaram estabelecimentos e extensões por esse país fora sem as mínimas condições materiais e pedagógicas; que se multiplicaram formações de lápis e papel em detrimento de formações tecnológicas e científicas; que entraram em funcionamento cursos sem autorização prévia; que se ultrapassaram frequentemente os números de vagas autorizados; que se criarem formações pós-graduadas – incluindo mestrados e doutoramentos – sem as condições exigíveis em qualquer país europeu. Tudo isto era evidente desde cedo e tudo isso ficou comprovado num inquérito e num relatório produzido por uma comissão de especialistas no final dos anos 90, que mostrou de forma concludente as deficiências de instalações, a obnubilação da distinção entre escolas politécnicas e universitárias, as ilegalidades em matéria de cursos não autorizados e de excesso de vagas, a falta de bibliotecas e de laboratórios, o incumprimento das exigências legais no que respeita ao número de professores doutorados e de docentes em dedicação exclusiva, a passividade e laxismo da tutela governamental. Infelizmente, o relatório nem sequer foi publicado, não tendo sido tiradas nenhumas consequências das suas conclusões.
Ficou por fazer o saneamento do ensino superior privado, permitindo a separação do trigo e do joio. A imagem do sector foi-se degradando inapelavelmente, atingindo mesmo as diversas instituições que fugiam ao panorama geral e se esforçavam por dignificar o sector.
A verdade é que o Estado sempre esteve mal colocado para exercer as funções de regulação, supervisão e de sancionamento que se impunham. Primeiro, a expansão desregrada do ensino superior particular era consequência da imprevidência e desresponsabilização estadual na ampliação do sistema público; segundo, o Estado não tinha muita legitimidade para supervisionar as instituições privadas quando mostrava quase a mesma incapacidade regulatória em relação às instituições públicas (por exemplo, proliferação de extensões e de cursos); terceiro, desde cedo se mostrou a capacidade de "lobby" de várias instituições privadas, por conivências políticas, partidárias e ideológicas, que capturaram e neutralizaram qualquer vontade política de regulação do sector.
Não por acaso, uma breve observação do elenco dos responsáveis e docentes de várias universidades privadas revela uma estranha concentração de pessoal político (deputados, ex-governantes, dirigentes partidários, etc.), para além da curiosa presença de directores e de jornalistas de nomeada, mesmo em cursos sem nenhuma ligação à profissão. Além disso, a partir de certo momento, muitas câmaras municipais apareceram a patrocinar a criação e a proporcionar apoio material e financeiro a instituições de ensino superior privadas – sem qualquer oposição da tutela ou do Tribunal de Contas, mesmo se nenhuma lei confere aos municípios atribuições na área do ensino superior –, desenvolvimento que culminou com a "municipalização" da Universidade Atlântida, em Oeiras.
Os lamentáveis episódios da Universidade Independente constituem uma nova ocasião para revisitar o estatuto legal e o sistema de regulação do ensino superior privado, designadamente quanto à idoneidade institucional e financeira das entidades instituidoras, quanto à transparência e "accountability" da sua gestão, quanto à sua sustentabilidade no quadro da contínua diminuição da procura, quanto à garantia de independência científica e pedagógica das escolas, quando aos requisitos relativos à qualificação dos professores e à existência de um corpo docente próprio, quanto às exigências de investigação, quando à seriedade da avaliação e da atribuição de graus académicos.
O que não pode permanecer mais tempo é a tendência de deterioração do sector, que desqualifica indiferenciadamente as instituições, mesmo as que foram capazes de criar e manter padrões de exigência e de qualidade aceitáveis ou mesmo louváveis, e que ameaça os direitos e os interesses e expectativas legítimas do pessoal docente e, sobretudo, dos estudantes, que suportam essas instituições com elevadas propinas e que têm todo o direito de exigir do Estado – que reconheceu as instituições, os cursos e os graus – o accionamento dos poderes de regulação e de supervisão que lhe incumbem.
(Público, terça-feira 13 de Março de 2007)

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