2 de julho de 2007
“Jornalismo de sarjeta” e auto-regulação deontológica
Vital Moreira
Na opinião pública, e entre os próprios jornalistas, vai crescendo a ideia de que a actual situação de desregulação e impunidade deontológica da actividade jornalística não pode continuar. Não são apenas os casos do “Dantas” e dos “Donos da Bola” e em geral do “jornalismo de sarjeta” — como lhe chamou um eminente jornalista — que suscitam essa preocupação. A inquietante frequência da violação dos deveres elementares de um jornalismo responsável vai minando a credibilidade pública e a própria honorabilidade da profissão.
Desde que o Tribunal Constitucional se pronunciou sobre o assunto em 1993, a antiga competência sindical na matéria deixou de abranger os não associados. Aliás, o código deontológico do Sindicato, além de demasiado genérico, não tinha força vinculativa, desde logo por falta de medidas sancionatórias. A presidente do Sindicato veio recentemente defender que se dê força legislativa a esse código. Mas isso de pouco valeria sem a definição da entidade competente para apreciar e sancionar as infracções ao código. De resto, para tornar vinculativos os deveres deontológicos não se torna necessário pô-los em letra de lei formal.
São poucas as soluções disponíveis. À partida, nestes assuntos, deve pôr-se de parte a hetero-regulação deontológica, seja a cargo de um serviço ou instituto do Estado, seja através de uma autoridade pública independente (do tipo da Alta Autoridade para a Comunicação Social). Em matéria de deontologia, quando se trata de profissões desta natureza, são de preferir, sempre que possível, as soluções auto-regulatórias. Neste plano só há duas alternativas: ou uma ordem dos jornalistas ou um órgão representativo com funções exclusivamente reguladoras e disciplinares.
A ordem dos jornalistas é a solução italiana e de vários países latino-americanos. Tem os seus adeptos em Portugal, existindo desde há anos uma associação de jornalistas que a defende. Tendo sido rejeitada por um referendo realizado por iniciativa do sindicato, essa solução perdeu autoridade. Recentemente, porém, o bastonário da Ordem dos Advogados veio reeditá-la.
Penso que não é a melhor solução. Por um lado, as corporações profissionais públicas têm em geral o defeito congénito de misturarem as funções oficiais de regulação e disciplina com as funções de representação e defesa de interesses profissionais, havendo o risco — que está à vista entre nós — de elas darem prioridade às segundas sobre as primeiras, terminando por não serem mais do que um “sindicato oficial” e um instrumento de defesa de privilégios profissionais. Acresce que, no caso de profissões quase exclusivamente baseadas no trabalho por conta de outrem, como é o caso do jornalismo, a criação da ordem teria inevitavelmente por resultado o estiolamento do sindicato e das suas funções de representação e defesa de interesses profissionais.
Mas as ordens profissionais não constituem — longe disso — a única solução de auto-regulação e autodisciplina profissional. A alternativa é a de confiar essas funções a um organismo representativo, mas sem natureza associativa, desprovido de funções de representação ou defesa profissional, e logo sem o dualismo e a ambivalência das ordens profissionais.
Ora, sucede que no caso dos jornalistas foi essa a solução adoptada pelo legislador, em 1994, para a regulação do acesso e exercício da profissão, depois da citada decisão do Tribunal Constitucional. Refiro-me à Comissão da Carteira Profissional dos Jornalistas, constituída paritariamente por jornalistas e representantes dos órgãos de comunicação social, e presidida por um magistrado judicial, sendo os representantes dos primeiros directamente eleitos pelos seus pares. O que eu proponho é a criação oficial de uma Comissão de Deontologia Profissional, que com a existente poderia formar um Conselho Nacional do Jornalismo polivalente.
A composição dessa nova comissão não teria de ser idêntica à existente, podendo ser formada maioritariamente por jornalistas, eventualmente acompanhados por personalidades “leigas” de inquestionável autoridade e presidida pelo mesmo magistrado. A Comissão teria por atribuições legais não somente a definição do código deontológico — necessariamente mais “denso” do que o actual código sindical —, mas também o julgamento e eventual punição das infracções, de acordo com as sanções a definir por lei, que poderiam ir desde a simples advertência até à suspensão ou cassação da carteira profissional, tal como sucede em outras profissões.
Assim se daria a pretendida força vinculativa ao código deontológico, sem ingerência directa do Estado e dentro de um estrito princípio de auto-.regulação e autodisciplina profissional, porém sem os equívocos corporativos inerentes à ordem profissional e com perfeita separação entre as funções de regulação profissional e as funções sindicais.
(Público, Maio de 1997)
Na opinião pública, e entre os próprios jornalistas, vai crescendo a ideia de que a actual situação de desregulação e impunidade deontológica da actividade jornalística não pode continuar. Não são apenas os casos do “Dantas” e dos “Donos da Bola” e em geral do “jornalismo de sarjeta” — como lhe chamou um eminente jornalista — que suscitam essa preocupação. A inquietante frequência da violação dos deveres elementares de um jornalismo responsável vai minando a credibilidade pública e a própria honorabilidade da profissão.
Desde que o Tribunal Constitucional se pronunciou sobre o assunto em 1993, a antiga competência sindical na matéria deixou de abranger os não associados. Aliás, o código deontológico do Sindicato, além de demasiado genérico, não tinha força vinculativa, desde logo por falta de medidas sancionatórias. A presidente do Sindicato veio recentemente defender que se dê força legislativa a esse código. Mas isso de pouco valeria sem a definição da entidade competente para apreciar e sancionar as infracções ao código. De resto, para tornar vinculativos os deveres deontológicos não se torna necessário pô-los em letra de lei formal.
São poucas as soluções disponíveis. À partida, nestes assuntos, deve pôr-se de parte a hetero-regulação deontológica, seja a cargo de um serviço ou instituto do Estado, seja através de uma autoridade pública independente (do tipo da Alta Autoridade para a Comunicação Social). Em matéria de deontologia, quando se trata de profissões desta natureza, são de preferir, sempre que possível, as soluções auto-regulatórias. Neste plano só há duas alternativas: ou uma ordem dos jornalistas ou um órgão representativo com funções exclusivamente reguladoras e disciplinares.
A ordem dos jornalistas é a solução italiana e de vários países latino-americanos. Tem os seus adeptos em Portugal, existindo desde há anos uma associação de jornalistas que a defende. Tendo sido rejeitada por um referendo realizado por iniciativa do sindicato, essa solução perdeu autoridade. Recentemente, porém, o bastonário da Ordem dos Advogados veio reeditá-la.
Penso que não é a melhor solução. Por um lado, as corporações profissionais públicas têm em geral o defeito congénito de misturarem as funções oficiais de regulação e disciplina com as funções de representação e defesa de interesses profissionais, havendo o risco — que está à vista entre nós — de elas darem prioridade às segundas sobre as primeiras, terminando por não serem mais do que um “sindicato oficial” e um instrumento de defesa de privilégios profissionais. Acresce que, no caso de profissões quase exclusivamente baseadas no trabalho por conta de outrem, como é o caso do jornalismo, a criação da ordem teria inevitavelmente por resultado o estiolamento do sindicato e das suas funções de representação e defesa de interesses profissionais.
Mas as ordens profissionais não constituem — longe disso — a única solução de auto-regulação e autodisciplina profissional. A alternativa é a de confiar essas funções a um organismo representativo, mas sem natureza associativa, desprovido de funções de representação ou defesa profissional, e logo sem o dualismo e a ambivalência das ordens profissionais.
Ora, sucede que no caso dos jornalistas foi essa a solução adoptada pelo legislador, em 1994, para a regulação do acesso e exercício da profissão, depois da citada decisão do Tribunal Constitucional. Refiro-me à Comissão da Carteira Profissional dos Jornalistas, constituída paritariamente por jornalistas e representantes dos órgãos de comunicação social, e presidida por um magistrado judicial, sendo os representantes dos primeiros directamente eleitos pelos seus pares. O que eu proponho é a criação oficial de uma Comissão de Deontologia Profissional, que com a existente poderia formar um Conselho Nacional do Jornalismo polivalente.
A composição dessa nova comissão não teria de ser idêntica à existente, podendo ser formada maioritariamente por jornalistas, eventualmente acompanhados por personalidades “leigas” de inquestionável autoridade e presidida pelo mesmo magistrado. A Comissão teria por atribuições legais não somente a definição do código deontológico — necessariamente mais “denso” do que o actual código sindical —, mas também o julgamento e eventual punição das infracções, de acordo com as sanções a definir por lei, que poderiam ir desde a simples advertência até à suspensão ou cassação da carteira profissional, tal como sucede em outras profissões.
Assim se daria a pretendida força vinculativa ao código deontológico, sem ingerência directa do Estado e dentro de um estrito princípio de auto-.regulação e autodisciplina profissional, porém sem os equívocos corporativos inerentes à ordem profissional e com perfeita separação entre as funções de regulação profissional e as funções sindicais.
(Público, Maio de 1997)