24 de julho de 2007
Liberalização incompleta
Por Vital Moreira
No âmbito do seu programa de liberalização e modernização do sector da farmácia e dos medicamentos entre nós o Governo anunciou finalmente a aprovação do diploma que elimina o exclusivo farmacêutico quanto à propriedade das farmácias.
Com esta mudança, doravante os filhos dos farmacêuticos já não têm de se licenciar em Farmácia nem de casar com farmacêutico/a para poderem herdar a farmácia familiar, nem têm de se manter as situações de propriedade de "testas de ferro" que "davam o nome" para farmácias realmente pertencentes a outrem.
Trata-se de uma medida que só pode merecer aplauso, não havendo nenhuma razão para que só farmacêuticos possam instalar e ser proprietários de farmácias. Uma coisa é a direcção técnica das farmácias e a função de aconselhamento e de dispensa de medicamentos, que obviamente deve pertencer em exclusivo aos farmacêuticos profissionais, e outra coisa é a instalação e a exploração económica de uma farmácia. Não existe nenhuma outra situação de reserva de propriedade de estabelecimentos económicos, mesmo na área da saúde (clínicas médicas, laboratórios de análises clínicas, laboratórios de fabrico de medicamentos, etc.).
No entanto, a liberalização ficou a meio caminho, permanecendo as restrições à instalação de farmácias, com o propósito de limitar o número de estabelecimentos, nomeadamente o requisito de uma capitação populacional mínima por cada farmácia ao nível de cada concelho e o requisito da distância mínima entre estabelecimentos. Tais condições foram atenuadas, mas não suprimidas, como se impunha. De facto, como mostrou um estudo encomendado pela Autoridade da Concorrência, não existe nenhuma razão de interesse público capaz de justificar essas restrições à liberdade de estabelecimento e à concorrência. A única justificação é o “malthusianismo” económico, limitando artificialmente a oferta de novos estabelecimentos, a fim de garantir uma clientela e um volume de negócios confortável às farmácias instaladas. É isso que justifica o elevadíssimo valor especulativo das farmácias no mercado de compra e venda, visto que o alvará é um bem raro, que garante remuneração atraente, certa e quase sem riscos de concorrência.
Para agravar as coisas, a decisão de manter essas restrições à criação de novas farmácias foi acompanhada da admissão da concentração do número de farmácias por cada proprietário, autorizando-se doravante quatro estabelecimentos, quando até agora era proibido ter mais do que uma farmácia, segundo o princípio tradicional "um farmacêutico – uma farmácia". Ora, se as restrições à criação de novas farmácias vão continuar a existir, então é fácil perceber que a possibilidade de cada proprietário acumular vários estabelecimentos só vai agravar a competição pela aquisição das farmácias existentes, em resultado do aumento da procura sem liberalização da sua oferta. Ou seja, a solução encontrada não só defende os actuais proprietários contra a proliferação de novos estabelecimentos como lhes permite acumularem várias farmácias, com os inerentes benefícios comerciais.
Além disso, as farmácias conseguiram obter mais duas vantagens não despiciendas. Primeiro, ganharam o direito de vender medicamentos que até agora estavam fora do mercado, disponíveis somente nas farmácias hospitalares. Segundo, podem agora estender o seu raio de acção à prestação de cuidados alheios à actividade propriamente farmacêutica, o que abre novas perspectivas de negócio, como estabelecimentos de saúde integrados. Nada haveria a objectar a estas medidas, pelo contrário, não fora justamente a manutenção do regime restritivo quanto à criação de novos estabelecimentos. Porém, ampliar a esfera de acção de uma actividade que continua essencialmente contingentada só contribui para favorecer as situações instaladas à margem da concorrência.
O que surpreende nesta história é o descaso com que os sectores doutrinais que se reclamam do liberalismo económico trataram durante muito tempo estas situações de monopólio profissional e de contingentação territorial dos estabelecimentos de farmácia, bem como o apoio que os beneficiários do ‘status quo’ encontraram nos partidos e nos governos, mesmo os alegadamente defensores da liberdade de empresa e da concorrência. Que tenha sido necessário um Governo do PS para iniciar, se bem que de forma assaz incompleta e contraditória, a necessária liberalização do sector das farmácias revela bem tanto o poder efectivo dos interessados em manter o regime tradicional como o atavismo político conservador entre nós.
(Diário Económico, 18 de Julho de 2007)
No âmbito do seu programa de liberalização e modernização do sector da farmácia e dos medicamentos entre nós o Governo anunciou finalmente a aprovação do diploma que elimina o exclusivo farmacêutico quanto à propriedade das farmácias.
Com esta mudança, doravante os filhos dos farmacêuticos já não têm de se licenciar em Farmácia nem de casar com farmacêutico/a para poderem herdar a farmácia familiar, nem têm de se manter as situações de propriedade de "testas de ferro" que "davam o nome" para farmácias realmente pertencentes a outrem.
Trata-se de uma medida que só pode merecer aplauso, não havendo nenhuma razão para que só farmacêuticos possam instalar e ser proprietários de farmácias. Uma coisa é a direcção técnica das farmácias e a função de aconselhamento e de dispensa de medicamentos, que obviamente deve pertencer em exclusivo aos farmacêuticos profissionais, e outra coisa é a instalação e a exploração económica de uma farmácia. Não existe nenhuma outra situação de reserva de propriedade de estabelecimentos económicos, mesmo na área da saúde (clínicas médicas, laboratórios de análises clínicas, laboratórios de fabrico de medicamentos, etc.).
No entanto, a liberalização ficou a meio caminho, permanecendo as restrições à instalação de farmácias, com o propósito de limitar o número de estabelecimentos, nomeadamente o requisito de uma capitação populacional mínima por cada farmácia ao nível de cada concelho e o requisito da distância mínima entre estabelecimentos. Tais condições foram atenuadas, mas não suprimidas, como se impunha. De facto, como mostrou um estudo encomendado pela Autoridade da Concorrência, não existe nenhuma razão de interesse público capaz de justificar essas restrições à liberdade de estabelecimento e à concorrência. A única justificação é o “malthusianismo” económico, limitando artificialmente a oferta de novos estabelecimentos, a fim de garantir uma clientela e um volume de negócios confortável às farmácias instaladas. É isso que justifica o elevadíssimo valor especulativo das farmácias no mercado de compra e venda, visto que o alvará é um bem raro, que garante remuneração atraente, certa e quase sem riscos de concorrência.
Para agravar as coisas, a decisão de manter essas restrições à criação de novas farmácias foi acompanhada da admissão da concentração do número de farmácias por cada proprietário, autorizando-se doravante quatro estabelecimentos, quando até agora era proibido ter mais do que uma farmácia, segundo o princípio tradicional "um farmacêutico – uma farmácia". Ora, se as restrições à criação de novas farmácias vão continuar a existir, então é fácil perceber que a possibilidade de cada proprietário acumular vários estabelecimentos só vai agravar a competição pela aquisição das farmácias existentes, em resultado do aumento da procura sem liberalização da sua oferta. Ou seja, a solução encontrada não só defende os actuais proprietários contra a proliferação de novos estabelecimentos como lhes permite acumularem várias farmácias, com os inerentes benefícios comerciais.
Além disso, as farmácias conseguiram obter mais duas vantagens não despiciendas. Primeiro, ganharam o direito de vender medicamentos que até agora estavam fora do mercado, disponíveis somente nas farmácias hospitalares. Segundo, podem agora estender o seu raio de acção à prestação de cuidados alheios à actividade propriamente farmacêutica, o que abre novas perspectivas de negócio, como estabelecimentos de saúde integrados. Nada haveria a objectar a estas medidas, pelo contrário, não fora justamente a manutenção do regime restritivo quanto à criação de novos estabelecimentos. Porém, ampliar a esfera de acção de uma actividade que continua essencialmente contingentada só contribui para favorecer as situações instaladas à margem da concorrência.
O que surpreende nesta história é o descaso com que os sectores doutrinais que se reclamam do liberalismo económico trataram durante muito tempo estas situações de monopólio profissional e de contingentação territorial dos estabelecimentos de farmácia, bem como o apoio que os beneficiários do ‘status quo’ encontraram nos partidos e nos governos, mesmo os alegadamente defensores da liberdade de empresa e da concorrência. Que tenha sido necessário um Governo do PS para iniciar, se bem que de forma assaz incompleta e contraditória, a necessária liberalização do sector das farmácias revela bem tanto o poder efectivo dos interessados em manter o regime tradicional como o atavismo político conservador entre nós.
(Diário Económico, 18 de Julho de 2007)