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5 de julho de 2007

Portugal e os direitos das crianças 

por Ana Gomes

A carinha de Madeleine McCann corre o mundo, desde que ela foi levada, há um mês, da Praia da Luz. Os casos de Madeleine e do Rui Pedro, que desapareceu na Lousada há nove anos, chegaram às primeiras páginas dos jornais - no caso de Rui Pedro claramente tarde. Mas há muitos outros casos, de igual gravidade, que continuam abandonados a um silêncio repugnante. Segundo dados recentemente divulgados, em 2006 desapareceram em Portugal 800 menores, dobrando as estatísticas do ano anterior. Só entre Janeiro e início de Maio deste ano, a Polícia Judiciária registou o desaparecimento de 63 crianças com menos de 12 anos. Quantas não voltaram entretanto a ser encontradas?

Recentes notícias sobre uma auxiliar de enfermagem detida num aeroporto no Brasil ao tentar embarcar para Portugal com um bebé de um ano, por suspeitas de pertencer a uma quadrilha especializada no tráfico internacional de crianças, levam a recordar números verdadeiramente alarmantes: no mundo, mais de 1,2 milhões de crianças por ano são vítimas de tráfico, segundo dados da UNICEF. O nosso país está, tudo indica, entre as rotas também destes traficantes: a frouxidão dos controlos aeroportuários (como verifiquei numa superficial investigação a propósito dos chamados "voos da CIA") e portuários facilita-lhes as operações - basta terem um aviãozinho privado ou um iate a postos ...

Casos de maus tratos infligidos a crianças, incluindo abuso sexual, são desgraçadamente comuns no seio de muitas famílias portuguesas e instituições do Estado e da Igreja - se o caso Casa Pia acordou o país e suscitou uma onda de indignação popular, a verdade é que uma tão horrível exploração e abuso sistemático de crianças nunca teria podido perpetuar-se durante décadas se a sociedade no seu conjunto - e responsáveis pela Casa Pia a todos os níveis - não estivessem acomodados a uma execrável passividade e desrespeito pelos direitos das crianças. No ano passado, cerca de cem menores por dia foram vítimas de maus-tratos em Portugal, onde existe a taxa anual mais elevada de mortes de crianças, segundo um estudo que abrangeu os 27 países mais ricos do mundo. São recorrentes os escândalos de bebés e crianças que dão entrada nos hospitais depois de "caírem nas escadas" (ou seja, de serem espancados, em muitos casos, até à morte)...

Mas mais grave ainda - e sobretudo depois da sensibilidade que a Casa Pia despertou a nível nacional, que leva a que um numero muito maior de casos seja hoje reportado às autoridades - são as histórias de desrespeito pelos direitos das crianças que ocorrem às mãos da própria Justiça. Dois casos envergonharam Portugal nas últimas semanas.

A poucos dias do Dia Mundial da Criança, o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) reduziu de sete anos e meio para cinco anos a pena de prisão aplicada a um homem condenado por três crimes de abuso sexual de crianças, incluindo o crime de abuso sexual continuado de um menor de 13 anos. No acórdão em questão, o STJ realça que não é “certamente a mesma coisa praticar alguns dos actos com uma criança de cinco, seis ou sete anos ou com um jovem de 13 anos, que despertou já para a puberdade (...)”. Em posteriores declarações à imprensa, o juiz que escreveu o acórdão reiterou que "não mudava uma vírgula" e que esta seria uma peça "inatacável" do ponto de vista jurídico. A Justiça faz-se, assim, cega ao superior interesse da criança vitimada, cega à obrigação de avaliar em concreto esse interesse, imposta aos tribunais portugueses por um Tratado internacional ratificado por Portugal e directamente aplicável da ordem jurídica interna, nos termos da nossa Constituição: nem uma só vez este acórdão menciona a Convenção da ONU sobre os Direitos da Criança.

Também no final de Maio, o Conselho da Europa condenou, por unanimidade, o Estado português por violação dos direitos das crianças, na sequência de um outro acórdão do mesmo STJ, que considerou "lícitos" e "aceitáveis" castigos corporais aplicados a crianças deficientes de um lar em Setúbal, em clara violação do artigo 17 da Carta Social Europeia, que proíbe explicita e efectivamente castigos corporais a crianças.

Se é inadmissível que professores, assistentes sociais, educadores, vizinhos, etc., enquanto cidadãos, não tomem medidas eficazes para prevenir ou denunciar situações de risco de agressão, abuso sexual e outras de violação dos direitos das crianças em Portugal, ainda é mais intolerável que o Estado e os seus agentes, em particular os que administram a Justiça, com muito mais obrigações e responsabilidades, continuem a demonstrar criminosa insensibilidade e incompetência.

(publicado no JORNAL DE LEIRIA de 14.6.2007)

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