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5 de julho de 2007

Tratado europeu dá pano para mangas 

por Ana Gomes

Portugal ficou com pano para mangas para trabalhar. Porque a Chanceler alemã Angela Merkel conseguiu no Conselho Europeu de 21 e 22 de Junho o que a muitos parecia improvável: transformar a cacofonia de exigências e 'linhas vermelhas' nacionais num consenso a 27 sobre a reforma da União Europeia. A Conferência Intergovernamental (CIG) a conduzir pela presidência portuguesa vai, assim, poder confeccionar o modelo talhado, esmerando-se a liderar 27 agulhas a costurar remendos e bainhas técnicas.

Para já, sem dúvida, o acordo arrancado é positivo para a Europa – permite ultrapassar o imobilismo criado pelos Nãos franceses e holandeses à Constituição. O consenso alcançado implica um exercício de reorganização dos Tratados já existentes - incluindo a própria Constituição, por todos subscrita em 2004 e entretanto ratificada por 18 Estados Membros...

Mudam-se nomes (de Constituição para “Tratado reformador”, de MNE europeu para “Alto Representante para a Política Externa e de Segurança”, leis e leis-quadro europeias voltam a ser “directivas”, “regulamentos” e “decisões”) e prescinde-se de referências a símbolos e hinos (que já existiam e permanecem) e a políticas (Parte III) que continuarão, porque se fundam em anteriores Tratados.

Mas não muda o essencial do modelo constitucional, a preservar na costura do Tratado que a CIG de Lisboa vai abrir – e desejavelmente fechar:

- a Carta dos Direitos Fundamentais juridicamente vinculativa;

- as principais inovações institucionais: presidência da UE de dois anos e meio, composição da Comissão, Alto Representante com duplo chapéu Comissão/ Conselho e – muito importante - apoiado por um Serviço Diplomático europeu;

- a restrição do direito de veto, com a extensão das decisões por maioria qualificada à cooperação policial e judiciária em matéria penal;

- o reforço dos poderes do Parlamento Europeu; e dos Parlamentos Nacionais, incluindo através da delimitação das competências entre a União e os Estados membros;

- a personalidade jurídica da União.

Mas perdeu-se alguma coisa de fundamental relativamente à Constituição? Perdeu-se, sim. Clareza e simplificação, por incrível que pareça. Há quem pense ser melhor servir “gato por lebre” aos cidadãos: atente-se, por exemplo, numa questão que excitou a lusa ”intelligentsia” soberanista: o primado da legislação europeia em relação à legislação nacional. Salta a referência explícita, clarificadora, que constava da Constituição. Mas não muda o primado – que já vigorava nas interpretações judiciais e continuará, obviamente, a vigorar.

E simplificação e clareza são elementos imprescindíveis para se poder consultar os cidadãos, como foi prometido para a Constituição em Portugal. Nos últimos dias pouco tenho visto discutir a substância do consenso alcançado em Bruxelas e o que se poderá fazer com ele na CIG. O PSD bóia, à deriva, agarrado ao que pode e arrasta outros na voragem adjectiva do referendo.

Eu, que sempre defendi o referendo à Constituição, porque considerei que ela oferecia uma oportunidade para os responsáveis políticos debaterem a Europa com os portugueses e reforçarem assim a legitimidade da contribuição nacional para o processo de construção europeu, inclino-me agora a concluir que pode ser difícil referendar o fato remendado que a CIG tem por mandato costurar. Por muito que esteja modelado na Constituição, tudo depende da estruturação e conteúdo final.

Eu não penso, nunca pensei, que os cidadãos prefiram. ou lhes deva ser servido, “gato por lebre”. Antes procuro nortear-me por outro provérbio: “quem não caça com cão, caça com gato”. Se não se puder caçar com a Constituição, é preciso caçar com um Tratado tão reforçado quanto possível. Porque essencial, essencial, é que a UE não tarde mais a caçar.

(publicado no COURRIER INTERNACIONAL de 29.6.2007)

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