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20 de agosto de 2007

Ocupação selvagem 

Por Vital Moreira

Todos os anos, por esta altura de férias estivais, repito a mesma sensação de incompreensão e de revolta perante a contínua degradação da ria Formosa, no Algarve, em especial do vulnerável cordão de ilhas de areia que separam a laguna do oceano. Um Estado que deixa deteriorar daquela maneira um inestimável património natural como esse não cumpre as suas tarefas mais elementares.
Não se trata somente do natural aumento da procura turística daquele paraíso lagunar, da maior pressão sobre as ilhas, do acréscimo exponencial de barcos de recreio, que acedem a todos os recantos outrora quase desconhecidos. O que está em causa é a continuação da ocupação selvagem das ilhas e das margens dos canais por inúmeras construções ilegais da mais variada ordem. Ano após ano, surgem mais casas e mais acrescentos às construções anteriores. Vista do ar, quase não existe um local emerso que não tenha edificações, incluindo à beira de água ou implantadas na primeira duna.
As aglomerações existentes não cessam de crescer, a coberto da expectativa de complacência que a experiência passada de inércia oficial autoriza. A disponibilização de serviços municipais de recolha de lixo, de energia eléctrica, etc., constitui uma espécie de legitimação da ocupação selvagem do espaço público, aliás "legalizado" em muitos casos por licenças de ocupação do solo.
Ora, não se trata de um espaço público qualquer. Estamos perante áreas de domínio público marítimo, ainda por cima integrado numa reserva natural. Por uma e outra razão deveria ser rigorosamente interdita a edificação privada nessas áreas. O que se tem verificado, porém, não é somente a incapacidade para demolir as edificações clandestinas, inclusive nas zonas mais sensíveis para a sustentabilidade ambiental, mas também a incapacidade para conter a expansão do espaço edificado. Não existe expropriação mais intolerável do que a feita por alguns daquilo que é (e deve continuar a ser) de todos.
De vez em quando surgem estudos e projectos propondo a requalificação dos aglomerados clandestinos, incluindo a "renaturalização" das zonas edificadas em lugares mais vulneráveis. Mas tais programas, mesmo quando aprovados, acabam por não ser executados, devido a uma mistura de inércia e de conivência com a ilegalidade em que somos especialistas.
Um Estado que não consegue impedir, nem sequer conter, a ocupação do domínio público marítimo e de áreas naturais protegidas não merece verdadeiramente o nome de Estado. O que se tem passado é mais próprio do "terceiro-mundo" do que de um Estado-membro da União Europeia. O que acontece desde há décadas só pode ser possível por efeito de uma imperdoável demissão e complacência das autoridades responsáveis, ou seja, da marinha, dos portos e especialmente do ambiente, em particular desde a criação do parque natural.
Outro tanto se deve dizer das organizações ambientalistas e dos órgãos de comunicação, que se preocupam (aliás justamente) com a sobreocupação urbanística da costa algarvia, mas que têm praticamente silenciado a ocupação e a degradação furtiva do último espaço litoral virgem do país. É perfeitamente ridículo investir rios de dinheiro numa imagem de qualidade do Algarve como destino turístico e depois deixar desenvolver livremente essas marcas de subdesenvolvimento que são as caóticas e, em geral, deprimentes aglomerações e edificações clandestinas das ilhas e canais da ria Formosa.
Entretanto, os males da laguna não estão somente na crescente ocupação ilegal do território, mas também na falta ou deficiência dos transportes colectivos para as ilhas e dos equipamentos públicos das mesmas, dificultando a sua fruição por parte de quem não dispõe de embarcação própria ou não possui uma habitação in loco (ou não pode recorrer ao mercado informal de arrendamento). O cúmulo do desleixo e da degradação é atingido no abandono e na ruína de equipamentos e edifícios públicos, como sucede no cais de Faro ou nos belos edifícios da administração portuária na ilha do Farol (Culatra) junto à entrada da barra - um dos quais foi, ironicamente, sede dos serviços de "Fiscalização" -, que ao menos bem poderiam ter sido cedidos para utilização turística ou para fruição colectiva. Pobre do Estado que deixa arruinar ingloriamente o seu próprio património edificado!
Temos por hábito, aliás virtuoso, denunciar o mais leve assomo do autoritarismo do Estado. No entanto, não menos grave do que o autoritarismo (real ou suposto) pode ser o défice de autoridade pública, lá onde ela se mostra indispensável. Tal é o caso da área ambiental, onde aliás os governos (e o actual não constitui excepção, como deveria ser) tendem a revelar uma perigosa tentação para sacrificar os valores ambientais aos interesses económicos em geral, e aos empreendimentos turísticos em especial. Infelizmente, no caso da ria Formosa nem sequer disso de trata, mas antes da rendição do Estado perante o facto consumado da apropriação privada do espaço público, liquidando qualquer valorização turística desse precioso património ambiental.
Pior que o excesso de Estado, em geral corrigível, é o défice de Estado, lá onde a sua ausência pode criar situações de degradação irreversível do património público. Infelizmente, existe uma região do país de onde o Estado desertou. Chama-se ria Formosa. A continuarem as coisas assim, um dia ela deixará provavelmente de fazer jus ao seu próprio nome.

(Público, terça-feira, 14 de Agosto de 2007)

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