30 de agosto de 2007
Para a democratização do ensino superior
Por Vital Moreira
Concomitantemente com a promulgação do Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior (RJIES) pelo Presidente da República ("matando" as expectativas dos que contestavam a lei), o Governo aprovou o diploma de implementação do novo regime legal da avaliação e acreditação do ensino superior, bem como um inovador regime de crédito para os estudantes do ensino superior. Decididamente, o ano de 2007 ficará registado como o ano da reforma do ensino superior nesta longa legislatura. Só falta a revisão do regime da carreira docente, aliás já anunciada.
Apesar de constituir um compromisso político do Governo, a surpresa veio com o novo regime de empréstimos bancários para a frequência do ensino superior. Era uma lacuna importante na promoção do acesso ao ensino superior, para além do apoio social escolar. Com ele, novas pessoas poderão sustentar o investimento na sua educação superior. Trata-se de um regime geral e universal, aberto a todos os interessados, estudantes e investigadores, e para todos os graus do ensino terciário, incluindo os planos de mobilidade internacional (programa Erasmus). A novidade está nos juros controlados - que aliás dependem em parte do nível do aproveitamento académico do beneficiário, estimulando o mérito - e principalmente na dispensa de garantias pessoais, cuja exigência limitava o acesso ao crédito a quem pudesse oferecer garantias pessoais ou patrimoniais julgadas suficientes pelos bancos. Agora esse requisito é assegurado por um fundo de garantia financeiramente alimentado pelo Estado, o que garante o acesso ao crédito a toda a gente, assegurando a igualdade de oportunidades. Desse modo, passa a haver condições para generalizar esse importante instrumento de apoio à frequência do ensino superior por parte de pessoas economicamente carenciadas, bem como de autonomia pessoal dos estudantes.
Nem todos os aspectos são isentos de reserva, como sucede com o prazo de carência reduzido a um ano para o início do reembolso, depois da conclusão do curso, o que pode constituir um factor de constrangimento nos casos em que o início de actividade profissional remunerada demora mais do que isso, como acontece nas profissões sujeitas a estágio profissional longo, muitas vezes sem pagamento digno desse nome. É evidente que nesse caso, não havendo rendimentos do devedor, a dívida não pode começar a ser saldada (nem cobrada a terceiro). Embora essas situações devam ser objecto de consideração, elas não anulam a importante mais-valia do mecanismo agora introduzido.
A criação do regime de crédito para a frequência do ensino superior, seguindo as melhores práticas dos países que adoptaram há muito a mesma solução, vem contribuir para melhorar as taxas de ingresso no ensino superior e de graduação superior entre nós, das mais baixas na Europa. Outras medidas em curso são o aumento da oferta de vagas no sistema público (e o previsível fim do "numerus clausus" na maior parte dos cursos), bem como a melhoria do sistema de acção social escolar. O processo de democratização do ensino superior passa tanto pelo alargamento da sua frequência, como pela eliminação da discriminação social no acesso, por motivo de carência de meios económicos à partida. A montante do sistema de ensino superior, as condições de acesso só podem ser ampliadas com o fim do estrangulamento do ensino secundário, um dos maiores handicaps do nosso sistema de ensino.
O anúncio do novo regime de crédito assistido no ensino superior suscitou a habitual condenação dos partidos da oposição à esquerda do PS, em nome de uma alegada "desresponsabilização do Estado". Ora, este argumento não procede. Mantendo tudo o resto igual, o regime de empréstimos constitui um importante ganho em si mesmo. E, depois, não existe nenhuma desoneração da responsabilidade financeira do Estado. Primeiro, o sistema vai custar dinheiro ao Estado, na dotação financeira do fundo de garantia dos empréstimos, o que constitui um financiamento orçamental adicional do sistema de ensino superior. Segundo, o Governo não anunciou nenhuma diminuição dos gastos na acção social, que inclui as bolsas de estudo; pelo contrário, o novo RJIES aponta claramente para um esforço acrescido. Terceiro, não consta que se prepare nenhuma redução do montante de financiamento orçamental das instituições de ensino superior. Quarto, a medida não surge associada a nenhum aumento dos encargos dos beneficiários do ensino superior, designadamente ao nível das propinas.
É certo que, embora não exista nenhuma relação directa entre as duas coisas, com este novo instrumento afastam-se alguns argumentos contra o aumento do montante das propinas no ensino superior, a qual deve ser encarada a prazo (tal como preconizado pela OCDE), de modo a reforçar o nível de recursos e de auto-suficiência financeira das universidades e politécnicos. Sucede, porém, que o Governo já afirmou reiteradamente que essa hipótese está fora de questão na actual legislatura, pelo que ela não pode entrar nem na crítica de um eventual "agenda escondida" do Governo, nem no cálculo dos recursos financeiros das instituições de ensino superior nos próximos anos. De resto, tal não seria possível sem uma alteração constitucional, que não está obviamente no horizonte.
De certo modo, isso acaba por ser positivo, retirando da agenda um tema polémico que poderia inquinar de raiz a discussão serena das profundas reformas em curso do ensino superior entre nós.
(Público, terça-feira, 28 de Agosto de 2007)
Concomitantemente com a promulgação do Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior (RJIES) pelo Presidente da República ("matando" as expectativas dos que contestavam a lei), o Governo aprovou o diploma de implementação do novo regime legal da avaliação e acreditação do ensino superior, bem como um inovador regime de crédito para os estudantes do ensino superior. Decididamente, o ano de 2007 ficará registado como o ano da reforma do ensino superior nesta longa legislatura. Só falta a revisão do regime da carreira docente, aliás já anunciada.
Apesar de constituir um compromisso político do Governo, a surpresa veio com o novo regime de empréstimos bancários para a frequência do ensino superior. Era uma lacuna importante na promoção do acesso ao ensino superior, para além do apoio social escolar. Com ele, novas pessoas poderão sustentar o investimento na sua educação superior. Trata-se de um regime geral e universal, aberto a todos os interessados, estudantes e investigadores, e para todos os graus do ensino terciário, incluindo os planos de mobilidade internacional (programa Erasmus). A novidade está nos juros controlados - que aliás dependem em parte do nível do aproveitamento académico do beneficiário, estimulando o mérito - e principalmente na dispensa de garantias pessoais, cuja exigência limitava o acesso ao crédito a quem pudesse oferecer garantias pessoais ou patrimoniais julgadas suficientes pelos bancos. Agora esse requisito é assegurado por um fundo de garantia financeiramente alimentado pelo Estado, o que garante o acesso ao crédito a toda a gente, assegurando a igualdade de oportunidades. Desse modo, passa a haver condições para generalizar esse importante instrumento de apoio à frequência do ensino superior por parte de pessoas economicamente carenciadas, bem como de autonomia pessoal dos estudantes.
Nem todos os aspectos são isentos de reserva, como sucede com o prazo de carência reduzido a um ano para o início do reembolso, depois da conclusão do curso, o que pode constituir um factor de constrangimento nos casos em que o início de actividade profissional remunerada demora mais do que isso, como acontece nas profissões sujeitas a estágio profissional longo, muitas vezes sem pagamento digno desse nome. É evidente que nesse caso, não havendo rendimentos do devedor, a dívida não pode começar a ser saldada (nem cobrada a terceiro). Embora essas situações devam ser objecto de consideração, elas não anulam a importante mais-valia do mecanismo agora introduzido.
A criação do regime de crédito para a frequência do ensino superior, seguindo as melhores práticas dos países que adoptaram há muito a mesma solução, vem contribuir para melhorar as taxas de ingresso no ensino superior e de graduação superior entre nós, das mais baixas na Europa. Outras medidas em curso são o aumento da oferta de vagas no sistema público (e o previsível fim do "numerus clausus" na maior parte dos cursos), bem como a melhoria do sistema de acção social escolar. O processo de democratização do ensino superior passa tanto pelo alargamento da sua frequência, como pela eliminação da discriminação social no acesso, por motivo de carência de meios económicos à partida. A montante do sistema de ensino superior, as condições de acesso só podem ser ampliadas com o fim do estrangulamento do ensino secundário, um dos maiores handicaps do nosso sistema de ensino.
O anúncio do novo regime de crédito assistido no ensino superior suscitou a habitual condenação dos partidos da oposição à esquerda do PS, em nome de uma alegada "desresponsabilização do Estado". Ora, este argumento não procede. Mantendo tudo o resto igual, o regime de empréstimos constitui um importante ganho em si mesmo. E, depois, não existe nenhuma desoneração da responsabilidade financeira do Estado. Primeiro, o sistema vai custar dinheiro ao Estado, na dotação financeira do fundo de garantia dos empréstimos, o que constitui um financiamento orçamental adicional do sistema de ensino superior. Segundo, o Governo não anunciou nenhuma diminuição dos gastos na acção social, que inclui as bolsas de estudo; pelo contrário, o novo RJIES aponta claramente para um esforço acrescido. Terceiro, não consta que se prepare nenhuma redução do montante de financiamento orçamental das instituições de ensino superior. Quarto, a medida não surge associada a nenhum aumento dos encargos dos beneficiários do ensino superior, designadamente ao nível das propinas.
É certo que, embora não exista nenhuma relação directa entre as duas coisas, com este novo instrumento afastam-se alguns argumentos contra o aumento do montante das propinas no ensino superior, a qual deve ser encarada a prazo (tal como preconizado pela OCDE), de modo a reforçar o nível de recursos e de auto-suficiência financeira das universidades e politécnicos. Sucede, porém, que o Governo já afirmou reiteradamente que essa hipótese está fora de questão na actual legislatura, pelo que ela não pode entrar nem na crítica de um eventual "agenda escondida" do Governo, nem no cálculo dos recursos financeiros das instituições de ensino superior nos próximos anos. De resto, tal não seria possível sem uma alteração constitucional, que não está obviamente no horizonte.
De certo modo, isso acaba por ser positivo, retirando da agenda um tema polémico que poderia inquinar de raiz a discussão serena das profundas reformas em curso do ensino superior entre nós.
(Público, terça-feira, 28 de Agosto de 2007)