23 de setembro de 2007
A caminho de 2009
Por Vital Moreira
Passada a primeira metade do actual mandato governamental, não se pode contestar, em jeito de balanço, a determinação e, em geral, o sucesso com que foram definidas e desenvolvidas as principais apostas do Governo do PS, desde a disciplina das finanças públicas (incluindo as finanças locais e regionais) até às novas medidas de protecção social, passando pela reforma do Estado, da segurança social, da educação, da saúde e da justiça.
É justo dizer que, desde a institucionalização do regime democrático em 1976, nenhum governo procedeu a tantas reformas em tão pouco tempo, obedecendo a uma visão estratégica coerente e levando de vencida tantas resistências e interesses estabelecidos. O equilíbrio das finanças públicas, a modernização do Estado (reorganização dos serviços, simplificação administrativa, "governo electrónico"), a sustentação da segurança social, a requalificação do sistema de ensino, são marcas, entre outras, que têm de ser levadas a crédito do Governo de José Sócrates.
É certo que nem tudo correu pelo melhor e que há reformas por completar. Algumas reformas (como no caso do regime do emprego público e da justiça) têm visto deslizar o seu calendário, podendo atrasar a produção dos seus resultados. Outras (como, por exemplo, a reforma do arrendamento urbano e da recuperação urbanística) têm sido mais lentas a concretizar do que tinha sido antecipado. Algumas das reformas mais virtuosas - como as do ensino e da saúde - demoram tempo a produzir ganhos visíveis, embora os primeiros indicadores sejam indesmentíveis. No campo das reformas políticas, embora sem esquecer a grande importância das que foram adoptadas (limitação dos mandatos, lei da paridade eleitoral, reforma do Parlamento, etc.), estão em falta duas reformas essenciais para a qualidade da nossa democracia: a revisão do governo das autarquias locais (há notícia de um acordo entre o PS e o PSD sobre o assunto, embora não no melhor sentido) e a revisão do sistema eleitoral para a AR (sobre a qual nada se conhece, salvo um abstruso projecto do PSD). Mas, por relevantes que sejam estas e outras reservas, elas não afectam o importante saldo positivo global desta primeira metade da governação socialista.
A principal realização está porventura em ter conseguido um "triângulo político" normalmente impossível, conjugando, em primeiro lugar, uma política muito exigente de disciplina das finanças públicas - incluindo uma redução significativa do peso da despesa pública no PIB; em segundo lugar, uma profunda reforma da organização dos serviços públicos e da gestão pública; e, em terceiro lugar, a salvaguarda e a melhoria do desempenho do "Estado social", incluindo programas ambiciosos de equipamentos sociais e novos mecanismos de protecção social (subsídio para pensionistas pobres, subsídio pré-natal, etc.). Embora a retoma económica, ainda que moderada, tenha sido essencial neste resultado, a "receita" passou necessariamente pela determinação política no corte em despesas redundantes (e porventura noutras...) e no aumento da eficiência do Estado, quer na despesa dos serviços públicos, quer nos serviços fiscais e da segurança social.
Feito o balanço, quais são os principais desafios para a segunda parte do mandato governamental? A meu ver, são dois (naturalmente, para além de prosseguir e ultimar as reformas em curso): primeiro, apostar mais fortemente no crescimento e no emprego; segundo, focar mais intensamente a agenda e o discurso político sobre a igualdade e a justiça social.
Com o êxito da disciplina das finanças públicas, o Governo deve reforçar agora a sua contribuição para o crescimento económico, que continua abaixo da média europeia, e para o emprego, que ameaça ser o principal insucesso governamental. A questão da criação de emprego - e não apenas as políticas de formação e qualificação profissional - tem de merecer uma elevada prioridade política. Há que recuperar o investimento público e libertar e pôr no terreno projectos cuja demora compromete o investimento privado e a geração de emprego (plano rodoviário, projectos energéticos, parcerias público-privadas na saúde, TGV, novo aeroporto, etc.). A antecipação das metas em relação à correcção do défice orçamental - se confirmada para 2008 - poderia mesmo vir a possibilitar uma descida do IVA e do IRC para as PME (acompanhada de maior contenção na respectiva evasão), com os efeitos virtuosos sobre a procura e o investimento.
Não menos importante é a questão da agenda e do discurso social. Mesmo que não façam nenhum sentido as acusações de "destruição do Estado social", vindas da oposição à esquerda, a verdade é que um governo do PS deve honrar as suas credenciais doutrinárias em matéria social, bem como as suas responsabilidades políticas em relação aos "de baixo". Não basta ter "novas políticas sociais" e novas medidas de protecção social contra a pobreza e a exclusão social, o que até é verdade e merece ser devidamente valorizado. Além de uma agenda de política social coerente, uma política de esquerda (ou mesmo de "centro-esquerda") não pode deixar de dispor também de um discurso político credível em prol da justiça social e contra o aumento das desigualdades sociais.
Numa economia de mercado e numa democracia liberal, um governo de esquerda não tem de se inquietar com o aumento dos ricos (desde que não os dispense iniquamente das devidas contribuições fiscais). Mas não pode deixar de se inquietar com o aumento da pobreza, mesmo que relativa. O reforço das redes de protecção social e as políticas activas de promoção da igualdade de oportunidades são uma responsabilidade incontornável de uma política progressista.
(Público, terça-feira, 18 de Julho de 2007)
Passada a primeira metade do actual mandato governamental, não se pode contestar, em jeito de balanço, a determinação e, em geral, o sucesso com que foram definidas e desenvolvidas as principais apostas do Governo do PS, desde a disciplina das finanças públicas (incluindo as finanças locais e regionais) até às novas medidas de protecção social, passando pela reforma do Estado, da segurança social, da educação, da saúde e da justiça.
É justo dizer que, desde a institucionalização do regime democrático em 1976, nenhum governo procedeu a tantas reformas em tão pouco tempo, obedecendo a uma visão estratégica coerente e levando de vencida tantas resistências e interesses estabelecidos. O equilíbrio das finanças públicas, a modernização do Estado (reorganização dos serviços, simplificação administrativa, "governo electrónico"), a sustentação da segurança social, a requalificação do sistema de ensino, são marcas, entre outras, que têm de ser levadas a crédito do Governo de José Sócrates.
É certo que nem tudo correu pelo melhor e que há reformas por completar. Algumas reformas (como no caso do regime do emprego público e da justiça) têm visto deslizar o seu calendário, podendo atrasar a produção dos seus resultados. Outras (como, por exemplo, a reforma do arrendamento urbano e da recuperação urbanística) têm sido mais lentas a concretizar do que tinha sido antecipado. Algumas das reformas mais virtuosas - como as do ensino e da saúde - demoram tempo a produzir ganhos visíveis, embora os primeiros indicadores sejam indesmentíveis. No campo das reformas políticas, embora sem esquecer a grande importância das que foram adoptadas (limitação dos mandatos, lei da paridade eleitoral, reforma do Parlamento, etc.), estão em falta duas reformas essenciais para a qualidade da nossa democracia: a revisão do governo das autarquias locais (há notícia de um acordo entre o PS e o PSD sobre o assunto, embora não no melhor sentido) e a revisão do sistema eleitoral para a AR (sobre a qual nada se conhece, salvo um abstruso projecto do PSD). Mas, por relevantes que sejam estas e outras reservas, elas não afectam o importante saldo positivo global desta primeira metade da governação socialista.
A principal realização está porventura em ter conseguido um "triângulo político" normalmente impossível, conjugando, em primeiro lugar, uma política muito exigente de disciplina das finanças públicas - incluindo uma redução significativa do peso da despesa pública no PIB; em segundo lugar, uma profunda reforma da organização dos serviços públicos e da gestão pública; e, em terceiro lugar, a salvaguarda e a melhoria do desempenho do "Estado social", incluindo programas ambiciosos de equipamentos sociais e novos mecanismos de protecção social (subsídio para pensionistas pobres, subsídio pré-natal, etc.). Embora a retoma económica, ainda que moderada, tenha sido essencial neste resultado, a "receita" passou necessariamente pela determinação política no corte em despesas redundantes (e porventura noutras...) e no aumento da eficiência do Estado, quer na despesa dos serviços públicos, quer nos serviços fiscais e da segurança social.
Feito o balanço, quais são os principais desafios para a segunda parte do mandato governamental? A meu ver, são dois (naturalmente, para além de prosseguir e ultimar as reformas em curso): primeiro, apostar mais fortemente no crescimento e no emprego; segundo, focar mais intensamente a agenda e o discurso político sobre a igualdade e a justiça social.
Com o êxito da disciplina das finanças públicas, o Governo deve reforçar agora a sua contribuição para o crescimento económico, que continua abaixo da média europeia, e para o emprego, que ameaça ser o principal insucesso governamental. A questão da criação de emprego - e não apenas as políticas de formação e qualificação profissional - tem de merecer uma elevada prioridade política. Há que recuperar o investimento público e libertar e pôr no terreno projectos cuja demora compromete o investimento privado e a geração de emprego (plano rodoviário, projectos energéticos, parcerias público-privadas na saúde, TGV, novo aeroporto, etc.). A antecipação das metas em relação à correcção do défice orçamental - se confirmada para 2008 - poderia mesmo vir a possibilitar uma descida do IVA e do IRC para as PME (acompanhada de maior contenção na respectiva evasão), com os efeitos virtuosos sobre a procura e o investimento.
Não menos importante é a questão da agenda e do discurso social. Mesmo que não façam nenhum sentido as acusações de "destruição do Estado social", vindas da oposição à esquerda, a verdade é que um governo do PS deve honrar as suas credenciais doutrinárias em matéria social, bem como as suas responsabilidades políticas em relação aos "de baixo". Não basta ter "novas políticas sociais" e novas medidas de protecção social contra a pobreza e a exclusão social, o que até é verdade e merece ser devidamente valorizado. Além de uma agenda de política social coerente, uma política de esquerda (ou mesmo de "centro-esquerda") não pode deixar de dispor também de um discurso político credível em prol da justiça social e contra o aumento das desigualdades sociais.
Numa economia de mercado e numa democracia liberal, um governo de esquerda não tem de se inquietar com o aumento dos ricos (desde que não os dispense iniquamente das devidas contribuições fiscais). Mas não pode deixar de se inquietar com o aumento da pobreza, mesmo que relativa. O reforço das redes de protecção social e as políticas activas de promoção da igualdade de oportunidades são uma responsabilidade incontornável de uma política progressista.
(Público, terça-feira, 18 de Julho de 2007)