3 de setembro de 2007
Cimeira UE-África: qual África?
por Ana Gomes
A presidência portuguesa da UE abriu com chave-de-ouro, na Cimeira UE-Brasil. Mas arrisca sair pela porta baixa, de tal modo se empolou a Cimeira UE-África, dependente de factores que Lisboa não controlava. Como Gordon Brown explicou esta semana ao Primeiro Ministro....
O que está em causa requer mais do que "criatividade" diplomática: implica saber o que quer a UE de África e para África. E para que África! Pois, como diz o escritor moçambicano Mia Couto, "conheço tantas Áfricas..."
É errado reduzir o problema à disputa bilateral entre o Reino Unido e o Zimbabwe a pretexto da presença de Mugabe. Cabe lembrar as admoestações para "deixar fora o problema bilateral" que Portugal suscitava aos parceiros europeus nas Cimeiras UE-ASEAN, a propósito da presença de Suharto. Mas a verdade é que o ditador indonésio nunca esteve sujeito a sanções europeias. Ao contrário de Mugabe, que está sob sanções decididas por todos os governos europeus. Por violações de direitos humanos, opressão e desgoverno num país que foi celeiro de África e hoje só exporta refugiados. Se as sanções não são só "para inglês ver", como afastá-las, onde e quando mais se podem fazer sentir? Como não encorajar, assim, outros émulos de Mugabe, que desgraçadamente abundam em África? É a credibilidade europeia que está em jogo.
O argumento de que a Europa não pode ficar atrás da China, também usado para justificar Cimeira a todo o preço, é, nesta perspectiva, o mais perverso: é impensável pôr a UE a competir na voragem em que Pequim embarcou por recursos naturais e energéticos, em troca de cooperação sem princípios, nem escrúpulos. O papel da Europa é outro, em resultado das suas exigências políticas e das responsabilidades históricas e morais que tem em África e globalmente. E implica chamar Pequim à pedra, como membro permanente do Conselho de Segurança da ONU.
Se se realizar, a Cimeira não pode ser só uma "photo-opportunity". E por isso a presidência portuguesa negoceia com a União Africana, procurando dar conteúdo progressista ao que houver a aprovar. Uma "Estratégia Conjunta Europa-Africa" deverá incidir tanto na capacitação africana para a prevenção e gestão de conflitos, como num roteiro vinculativo para a realização dos Objectivos de Desenvolvimento do Milénio (ODM). África é o continente com menos progressos na redução da pobreza: por exemplo, 63% da população não tem acesso a cuidados sanitários básicos, em comparação com 68% em 1990. Um ritmo mortalmente lento!
E um roteiro vinculativo é, de facto, preciso. Tanto para africanos, como para europeus. Porque de proclamações solenes, mas por cumprir, está o mundo farto! Raros são os países europeus que cumprem as promessas de Ajuda Pública ao Desenvolvimento (APD): Portugal por exemplo, atingiu apenas 0,21% do PNB em 2006, aquém do objectivo colectivo intermédio de 0,33%.
Apostar nos ODM implica investir no acesso generalizado a cuidados básicos de saúde e educação; no combate à impunidade e à corrupção; na capacitação dos sistemas judiciais e de informação; no controle do tráfico de armas ligeiras e de pequeno calibre; nos direitos das mulheres; na inclusão das minorias; no reforço das sociedades civis. Implica também, para a UE, reformar a PAC para criar condições de comércio justo para produções africanas.
Sem investimento europeu e africano não haverá desenvolvimento sustentável em África, nem será possível combater eficazmente pandemias, degradação ambiental, conflitos e guerras, fluxos migratórios e terrorismo internacional.
João Gomes Cravinho afirmou há dias que a Cimeira por que trabalha a presidência portuguesa é um serviço prestado à Europa. Importa também, e sobretudo, que ela seja serviço prestado a África. E, voltando a Mia Couto, ele há tantas Africas.... A quais delas queremos que sirva a Cimeira?
(publicado no COURRIER INTERNACIONAL de 13 de Julho de 2007)
A presidência portuguesa da UE abriu com chave-de-ouro, na Cimeira UE-Brasil. Mas arrisca sair pela porta baixa, de tal modo se empolou a Cimeira UE-África, dependente de factores que Lisboa não controlava. Como Gordon Brown explicou esta semana ao Primeiro Ministro....
O que está em causa requer mais do que "criatividade" diplomática: implica saber o que quer a UE de África e para África. E para que África! Pois, como diz o escritor moçambicano Mia Couto, "conheço tantas Áfricas..."
É errado reduzir o problema à disputa bilateral entre o Reino Unido e o Zimbabwe a pretexto da presença de Mugabe. Cabe lembrar as admoestações para "deixar fora o problema bilateral" que Portugal suscitava aos parceiros europeus nas Cimeiras UE-ASEAN, a propósito da presença de Suharto. Mas a verdade é que o ditador indonésio nunca esteve sujeito a sanções europeias. Ao contrário de Mugabe, que está sob sanções decididas por todos os governos europeus. Por violações de direitos humanos, opressão e desgoverno num país que foi celeiro de África e hoje só exporta refugiados. Se as sanções não são só "para inglês ver", como afastá-las, onde e quando mais se podem fazer sentir? Como não encorajar, assim, outros émulos de Mugabe, que desgraçadamente abundam em África? É a credibilidade europeia que está em jogo.
O argumento de que a Europa não pode ficar atrás da China, também usado para justificar Cimeira a todo o preço, é, nesta perspectiva, o mais perverso: é impensável pôr a UE a competir na voragem em que Pequim embarcou por recursos naturais e energéticos, em troca de cooperação sem princípios, nem escrúpulos. O papel da Europa é outro, em resultado das suas exigências políticas e das responsabilidades históricas e morais que tem em África e globalmente. E implica chamar Pequim à pedra, como membro permanente do Conselho de Segurança da ONU.
Se se realizar, a Cimeira não pode ser só uma "photo-opportunity". E por isso a presidência portuguesa negoceia com a União Africana, procurando dar conteúdo progressista ao que houver a aprovar. Uma "Estratégia Conjunta Europa-Africa" deverá incidir tanto na capacitação africana para a prevenção e gestão de conflitos, como num roteiro vinculativo para a realização dos Objectivos de Desenvolvimento do Milénio (ODM). África é o continente com menos progressos na redução da pobreza: por exemplo, 63% da população não tem acesso a cuidados sanitários básicos, em comparação com 68% em 1990. Um ritmo mortalmente lento!
E um roteiro vinculativo é, de facto, preciso. Tanto para africanos, como para europeus. Porque de proclamações solenes, mas por cumprir, está o mundo farto! Raros são os países europeus que cumprem as promessas de Ajuda Pública ao Desenvolvimento (APD): Portugal por exemplo, atingiu apenas 0,21% do PNB em 2006, aquém do objectivo colectivo intermédio de 0,33%.
Apostar nos ODM implica investir no acesso generalizado a cuidados básicos de saúde e educação; no combate à impunidade e à corrupção; na capacitação dos sistemas judiciais e de informação; no controle do tráfico de armas ligeiras e de pequeno calibre; nos direitos das mulheres; na inclusão das minorias; no reforço das sociedades civis. Implica também, para a UE, reformar a PAC para criar condições de comércio justo para produções africanas.
Sem investimento europeu e africano não haverá desenvolvimento sustentável em África, nem será possível combater eficazmente pandemias, degradação ambiental, conflitos e guerras, fluxos migratórios e terrorismo internacional.
João Gomes Cravinho afirmou há dias que a Cimeira por que trabalha a presidência portuguesa é um serviço prestado à Europa. Importa também, e sobretudo, que ela seja serviço prestado a África. E, voltando a Mia Couto, ele há tantas Africas.... A quais delas queremos que sirva a Cimeira?
(publicado no COURRIER INTERNACIONAL de 13 de Julho de 2007)