<$BlogRSDUrl$>

27 de setembro de 2007

Os capelães 

Por Vital Moreira

Trinta anos depois da Constituição e seis anos depois da Lei da Liberdade Religiosa, continua por regular, em termos conformes com ambas, a assistência religiosa nas instituições públicas que acolhem pessoas, como são os estabelecimentos militares, os hospitais, as prisões, os asilos, etc. No fundamental, a Igreja Católica mantém os favores que vêm desde o Estado Novo, aliás escandalosamente reforçados por pios governantes já depois de 1976, à margem da Constituição e da própria Concordata. As demais igrejas continuam sem ver garantido o direito à assistência religiosa dos seus crentes. Esta situação não pode continuar.
Comecemos pelos princípios constitucionais e legais. Por um lado, os crentes e as respectivas igrejas gozam da liberdade religiosa e do direito a assistência religiosa nos estabelecimentos públicos, tendo por únicos limites a missão das instituições e a liberdade religiosa das demais pessoas. Por outro lado, devendo facilitar o direito à assistência religiosa, o Estado tem de observar uma posição de estrita imparcialidade, sem favorecimentos nem discriminações.
Antes de mais, a garantia da liberdade religiosa nos estabelecimentos públicos impõe ao Estado obrigações específicas, devendo assegurar as condições para que ela possa ser exercida pelos interessados. Concretamente, incumbe aos estabelecimentos públicos facultar o acesso dos ministros do culto, disponibilizar espaços próprios para o efeito e informar as pessoas sobre as facilidades existentes.
No entanto, a assistência religiosa incumbe em exclusivo às igrejas e aos seus ministros. Não cabe ao Estado promover nem patrocinar actos religiosos. Nos estabelecimentos públicos, tal como fora deles, o Estado não tem religião. E também não têm religião os agentes e funcionários públicos, nessa qualidade e no exercício de funções. As instituições públicas em causa não gozam de imunidade perante o princípio da separação entre o Estado e as igrejas.
No exercício das suas funções, os encarregados da assistência religiosa continuam a ser apenas ministros do culto e não agentes públicos. Devem ser livremente nomeados e credenciados pelas respectivas igrejas. Não cabe ao Estado nomeá-los nem sustentá-los, mas somente reconhecê-los e respeitá-los. Deve terminar de uma vez por todas a bizarra figura dos capelães designados e remunerados pelo Estado, como funcionários públicos. No caso das forças armadas, o responsável católico pela assistência religiosa tem mesmo uma patente de oficial, o que consubstancia a mais inadmissível promiscuidade entre o Estado e a religião. A assistência religiosa não constitui uma tarefa própria do Estado.
A assistência religiosa só é naturalmente devida a quem a solicite explicitamente. É o que resulta da Constituição, da lei e da Concordata. Nem no Estado Novo era diferente. Está naturalmente excluída qualquer actividade de proselitismo ou de assédio religioso nos estabelecimentos públicos É inaceitável que um ministro de uma religião entre, por exemplo, numa enfermaria de um hospital e se dirija a todos os pacientes como se todos fossem crentes e precisassem de assistência religiosa. A crença religiosa não se presume, muito menos a necessidade de assistência religiosa. A reacção da Igreja Católica ao projecto de regulamento da assistência religiosa nos hospitais, que requer pedido dos interessados (aliás de acordo com a lei), mostra como a liberdade religiosa como direito individual ainda não entrou na cultura da Igreja dominante entre nós.
Em princípio, salvo quanto tal seja impossível (por exemplo, doentes incapazes de se moverem), a assistência religiosa deve decorrer nos espaços a isso dedicados pelos estabelecimentos públicos, evitando impor a outras pessoas - crentes de outras confissões ou não crentes - a participação ou assistência forçada em actos religiosos. A liberdade religiosa também inclui o direito de não ter religião e de não ser importunado com cerimónias religiosas não solicitadas.
Quando não seja possível disponibilizar espaços de culto privativos para cada religião (até pelos encargos que isso implicaria), devem os mesmos ser de utilização comum, pluri-religiosa, não sendo então lícita a sua apropriação exclusiva por uma igreja, como sucede tradicionalmente com a Igreja Católica. Decididamente, ninguém goza do monopólio oficial da religião entre nós, nem do direito de expropriação ou de servidão sobre espaços públicos.
Sem prejuízo da liberdade religiosa e do bem-estar espiritual das pessoas a cargo das instituições (doentes, reclusos, etc.), os estabelecimentos devem observar a mais estrita neutralidade em matéria religiosa e o mais escrupuloso respeito pela autonomia das igrejas. Desnecessário será dizer que são absolutamente interditos os sinais e símbolos religiosos nos estabelecimentos públicos, fora dos espaços dedicados ao culto. A exibição de crucifixos, ou outros símbolos de identificação religiosa, em hospitais, prisões e outras instituições não constitui somente uma violação do princípio da separação mas também, e sobretudo, uma falta de respeito para com os crentes de outras religiões e os não crentes.
Um Estado laico num país religiosamente plural não pode comportar-se como se fosse um Estado confessional nem como se houvesse uma igreja oficial ou oficiosa. É tempo de levar a sério a laicidade do Estado e de encerrar definitivamente as relações iníquas que o Estado estabeleceu com a Igreja Católica, conferindo-lhe privilégios inadmissíveis à luz da Constituição e da própria Concordata. O compromisso do Estado só pode ser com a liberdade religiosa de crentes e não crentes, sem privilégios nem discriminações.

(Público, terça-feira, 25.09.2007

This page is powered by Blogger. Isn't yours?