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18 de setembro de 2007

Quem tem medo do Dalai Lama? 

por Ana Gomes

Em 1992, na Comissão dos Direitos Humanos das Nações Unidas, apresentei, em nome da Europa e da sua Presidência portuguesa, o primeiro projecto de resolução sobre os direitos humanos na China. O massacre de Tien An Men ocorrera em 1989 e explicava a iniciativa europeia (com as chancelarias encurraladas por uma intensa campanha das ONGs e a articulação de meia dúzia de diplomatas e governantes com princípios). O texto incidia sobretudo em Tien An Men, mas incluía parágrafos sobre o Tibete. Durante o processo negocial, percebi, pelos recados e advertências insistentes de Pequim que eram as referências ao Tibete que o PCC mais abominava. A resolução acabou por ser posta de lado por uma “no action motion” movida pelo Paquistão e apoiada pela maioria dos Estados na Comissão. Mas meses depois, já os diplomatas chineses se desdobravam em almoços com europeus para dissuadir uma repetição (que aconteceu). Frisaram-me: “não servirá para nada, voltaremos a derrotá-la!”. Retorqui “nunca vi projecto tão derrotado mas, no entanto, tão eficaz!” É que, por essa altura, Pequim, que antes se considerava acima do escrutínio internacional, já se esmifrava para demonstrar ao mundo que a situação dos direitos humanos não era assim tão tenebrosa como a pintavam. Convidara até uma missão britânica para visitar e relatar!
Claro que as violações eram massivas e acabrunhantes, mesmo levando a crédito do regime comunista a evolução económica que, pelo menos, dava de comer aos chineses. E hoje continuam acabrunhantes e massivas, apesar de inegáveis progressos associados à explosão económica que assumiu o lucro como única ideologia: diariamente , por toda a China, protestam massas de camponesas e desempregados, conspiram cibernautas apesar de censurados e perseguidos, organizam-se as “Mães da Praça de Tien An Men” à espera dos filhos e maridos desaparecidos e reclamam os familiares dos milhares de condenados à morte anualmente executados. Os Jogos Olímpicos no próximo ano vão certamente torná-los a todos mais visíveis e audíveis.
Também o Tibete “evoluiu”, com a colonização chinesa – hoje os tibetanos são menos e mais estrangeiros e marginalizados na sua própria terra. Pequim, volta e meia, até ensaia uns passes ao Dalai Lama. Mas os velhos reflexos persistem: as autoridades precipitam-se em diligências intimidatórias sobre quem quer que o Dalai Lama possa visitar. Cabe aos visitados entender e sobretudo não se deixar intimidar. Até porque, em Pequim ou Alguidares de Baixo, quem se deixa intimidar não é, por isso, mais respeitado por quem intimida.
Vem isto a propósito da vinda do Dalai Lama a Portugal. O MENE, Dr. Luís Amado, disse que "oficialmente, o Dalai Lama não é recebido por responsáveis do Governo português, como é óbvio". Instado a explicar, avançou: "pelas razões que são conhecidas". Não revelou que Pequim já esperneava junto do MNE. Nem mostrou temer retaliações aos negócios da China que a máquina governamental e empresarial andará a tecer. Limitou-se a ser consequente com a diplomacia leve-leve e planadora que está a tornar-se imagem de marca de Portugal: nada de incomodar mandarins a abarrotar de dinheiro com minudências de direitos humanos; o que é preciso é agradar-lhes, acenando com um improvável levantamento do embargo de armas decretado pela UE à conta desse “episódio pré-histórico" de Tien An Men.
O precedente estabelecido pelo Presidente Jorge Sampaio em 2001 porventura encorajará a diplomacia lusa a procurar nova saída equilibrista, na velha tradição da “esperteza saloia”: eventualmente proporcionando encontros "não oficiais" com governantes portugueses ao Dalai Lama - que até oferece a cobertura de ser "líder religioso e espiritual".
O MENE pode percorrer a lista de governantes com que o Dalai Lama se encontrou nos últimos anos, incluindo Primeiros-Ministros no exercício de presidências europeias, e respirar de alívio ao constatar que do PM belga ao MNE italiano, do PM norueguês ao australiano, nenhum foi afinal comido ao pequeno-almoço pelo PCC; pelo contrário, qualquer um dos seus países tem intensas relações económicas com a China - muito mais rentáveis e sustentáveis do que Portugal, apesar dos 500 anos de "pied à terre" mantidos em Macau ...
Só há um problema com a "esperteza saloia": não dá credibilidade à política externa de ninguém. Princípios e coerência, em contrapartida, compensam. Acresce que Pequim cultiva também o pragmatismo: nunca deixou de dialogar connosco e com a Europa, apesar da resolução que apresentamos em 1992.

(publicado no COURRIER INTERNACIONAL de 14.9.2007)

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