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16 de outubro de 2007

Mercenários à solta 

por Ana Gomes

"Mercenários e auxiliares são inúteis e perigosos, e se algum Estado se apoiar nas armas dos mercenários nunca terá uma base firme e segura, porque eles são desunidos, ambiciosos, indisciplinados, desleais, corajosos entre amigos, cobardes entre inimigos...não têm amor ou outra razão para manter-se em armas, senão um salário insignificante que não é suficiente para que estejam prontos a morrer [pelo Príncipe]."
(Maquiavel, O Príncipe [1513])

Esta passagem aplica-se aos mercenários hoje contratados pela Administração Bush, com uma diferença significativa: são pagos... principescamente. Só a empresa privada de segurança Blackwater, uma das três a trabalhar no Iraque sob contrato do Departamento de Estado, no ano passado recebeu $600 milhões de fundos federais, por serviços de protecção prestados a diplomatas e outros americanos.
Os EUA têm hoje no Iraque 160.000 soldados. Mas são ainda mais numerosos os “civis contratados” por cerca de 20 empresas privadas de segurança, que operam no Iraque ao serviço de diferentes departamentos do Estado americano.
Um relatório do Congresso diz que desde 2005 houve 195 tiroteios envolvendo empregados da Blackwater: em 80% das vezes dispararam primeiro, frequentemente de carros a alta velocidade, deixando para trás mortos e feridos. Em Dezembro de 2006, um guarda-costas do Vice-presidente iraquiano foi morto a tiro por um “segurança” embriagado: a Blackwater pagou $15.000 e o assassino apanhou um avião de volta para os EUA. Nenhum caso teve consequências legais para a empresa.
Na semana passada, o Congresso mostrou finalmente alarme e adoptou medidas para travar esta escandalosa impunidade. Tudo porque no dia 16 de Setembro passado a Blackwater fez mais uma demonstração de eficácia: em plena luz do dia, numa rotunda no centro de Baghdad, matou 17 civis e feriu 24 homens, mulheres e crianças, numa orgia assassina que até envolveu lançamento de granadas. As autoridades iraquianas reagiram com indignação. O FBI está a investigar.
Na semana passada, no Pentágono, perguntei a um alto funcionário se as revelações sobre a Blackwater não comprometiam a imagem de quem é suposto fazer a guerra respeitando as leis da guerra - o Estado e os militares americanos. Diante de uma delegação de parlamentares europeus, ele respondeu que sim: o recurso a "contractors" tinha-se tornado a regra, para suprir a falta de militares no Iraque, no Afeganistão, na Colômbia (contra o narcotráfico); “e desde que há 4 ou 5 anos adoptámos uma abordagem arrogante ['cavalier approach'], tudo ainda mais se descontrolou...". Referia-se, porventura, à obstinação do Secretário da Defesa Rumsfeld, que quis “fazer” a campanha do Iraque pelo “barato” em número de tropas. Mas não de mercenários...
A crescente privatização da guerra é uma regressão – ao Estado deve caber o exclusivo do uso da força legítima, já Maquiavel há 500 anos o sublinhava. E é um desenvolvimento muito perigoso: além de criar uma zona cinzenta mortífera entre civis e militares, coloca milhares de aventureiros armados até aos dentes a agir fora do controlo de qualquer lei civil ou militar. E, realmente, não «racionaliza» encargos financeiros - os contratos com as empresas de mercenários são pagos pelos orçamentos estatais e a sua opacidade não tranquiliza quem paga impostos.
Em 1999 o mundo indignou-se com as milícias organizadas e financiadas pelos militares indonésios para intimidar, destruir e matar em Timor Leste; tudo em nome, claro, da segurança e da protecção dos interesses indonésios. A diferença para os modernos rambos da Blackwater e congéneres no Iraque, Afeganistão e “elsewhere” está sobretudo na sofisticação dos equipamentos e da logística.
Enfim, pode ser que as investigações desencadeadas pelo massacre de Setembro sirvam para pôr mais um prego no caixão do modus operandi da Administração Bush no Iraque: "primeiro disparamos, depois fazemos perguntas".

(publicado em 12.10.07 no Courrier Internacional)

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