22 de outubro de 2007
O radicalismo de Menezes
Por Vital Moreira
Quem diria que o novo líder do PSD iria não somente reabilitar o "santanismo", como modelo de acção política, mas também proceder à consagração do "jardinismo", como inspirador constitucional do PSD? Menezes quer refundar politicamente o PSD e também refundar constitucionalmente a República. A peregrina ideia de uma "nova Constituição" vem directamente do discurso tradicional do chefe do PSD madeirense, improvável vencedor do triunfo do "menezismo".
Para além de outras ideias mais gerais, o líder do PSD deu-se ao trabalho de mencionar duas grandes novidades da sua "nova Constituição", a saber: (i) conferir valor absoluto ao veto presidencial de leis em certas matérias (relações externas, defesa, justiça), pelo que tais leis deixariam de poder ser confirmadas pela AR, mesmo por maioria qualificada; (ii) extinguir o Tribunal Constitucional e substituí-lo por uma secção do Supremo Tribunal de Justiça. Infelizmente, ambas as ideias são destituídas de senso constitucional e político, revelando pouco sentido de responsabilidade e muita leviandade política.
A ideia do veto presidencial absoluto em certas matérias tem dois enormes defeitos. Por um lado, nem nos sistemas presidencialistas, como nos Estados Unidos, existe veto absoluto; por outro lado, trata-se de uma ideia claramente lesiva não somente da democracia parlamentar que nós somos, mas também da própria ideia da separação de poderes. Numa democracia representativa baseada na separação de poderes, o poder legislativo pertence ao Parlamento. Se se fosse para um veto absoluto, insusceptível de ultrapassagem parlamentar, mesmo por maioria qualificada, estaríamos a estabelecer uma supremacia absoluta ao Presidente da República, que nada justifica, no exercício do poder legislativo.
Acresce que, no caso português, a Constituição já exige uma maioria de 2/3 para superar o veto presidencial em certas matérias politicamente mais delicadas, pelo que nenhuma maioria governamental pode, só por si, aprovar uma lei contra um veto presidencial, pois não dispõe de tal maioria (a não ser que se trate um governo de "bloco central"...). Por isso, o veto presidencial absoluto só se pode compreender como operação demagógica para tentar cativar a opinião de alguns defensores menos prudentes do alargamento dos poderes de Belém. Só que isso seria feito à custa da democraticidade do sistema político e do equilíbrio de poderes do nosso sistema de governo, alterando radicalmente a matriz constitucional de 1976-82.
Embora não inédita, não é menos indefensável a ideia de extinguir o Tribunal Constitucional. Por um lado, seria ir contra a corrente constitucional nas últimas décadas, que levou à generalização dos tribunais constitucionais por esse mundo fora, como garantes dos direitos fundamentos, do equilíbrio de poderes e da regularidade do processo políticos. Por outro lado, os tribunais superiores ordinários não gozam habitualmente da necessária sensibilidade constitucional nem estão em geral preparados para lidar com as questões de "justiça política" que são próprias dos tribunais constitucionais, como as que dizem respeito às eleições, aos partidos políticos, ao financiamento ilícito de partidos políticos e outras que a crescente judicialização da vida política tem gerado.
No caso português acresce que a justiça constitucional nunca poderia ser atribuída a um dos tribunais supremos (no caso, o STJ), pela simples razão de que ela é transversal às várias ordens de tribunais, tendo portanto de pertencer a um órgão judicial autónomo, independente dos tribunais supremos de cada uma das ordens judiciais existentes, ou seja, os tribunais judiciais e os tribunais administrativos (para além do Tribunal de Contas). Seria perfeitamente ilógico confiar ao STJ o julgamento de recursos de constitucionalidade oriundos, por exemplo, do STA.
Independentemente da concordância, ou não, com as orientações jurisprudenciais do Palácio Ratton e com o modo de designação dos seus juízes, a verdade é que o TC conquistou a sua legitimidade por mérito próprio e a sua existência constitui um dado institucional incontornável do nosso sistema político-constitucional.
A ideia de refundação constitucional, através de uma "nova Constituição", não é somente constitucionalmente insustentável, visto que a Constituição só pode ser alterada por via de revisão, e não de uma "novação" constitucional. É também politicamente despropositada. Uma das características habituais do discurso político radical - e o "menezismo" é um radicalismo - consiste em pôr em causa a própria lei fundamental do país, a pretexto da salvação do país, mesmo que o levantamento da questão constitucional seja um fenómeno claramente artificial, como sucede entre nós. De facto, os problemas do país não estão na Constituição, e mesmo na medida em que possam ter uma vertente constitucional para algumas orientações políticas mais liberais no campo económico e social, eles não passam por uma "refundação constitucional", reduzindo-se a questões pontuais de revisão constitucional.
Ressuscitar uma questão constitucional em Portugal é tanto mais surpreendente quanto é certo que a Constituição de 1976, depois da sua revisão em 1982, é o produto do grande "acordo histórico" entre os dois grandes partidos do regime que são o PS e o PSD acerca da constitucionalização da transição e da consolidação democrática em Portugal. A "refundação constitucional" agora proposta pelo PSD, por mais votada ao fracasso que esteja - como seguramente está -, revela assim uma vontade de ruptura não somente com os fundamentos histórico-políticos do regime instaurado há três décadas, mas também com a própria história do partido que a propõe.
(Publico, terça-feira, 16.10.2007)
Quem diria que o novo líder do PSD iria não somente reabilitar o "santanismo", como modelo de acção política, mas também proceder à consagração do "jardinismo", como inspirador constitucional do PSD? Menezes quer refundar politicamente o PSD e também refundar constitucionalmente a República. A peregrina ideia de uma "nova Constituição" vem directamente do discurso tradicional do chefe do PSD madeirense, improvável vencedor do triunfo do "menezismo".
Para além de outras ideias mais gerais, o líder do PSD deu-se ao trabalho de mencionar duas grandes novidades da sua "nova Constituição", a saber: (i) conferir valor absoluto ao veto presidencial de leis em certas matérias (relações externas, defesa, justiça), pelo que tais leis deixariam de poder ser confirmadas pela AR, mesmo por maioria qualificada; (ii) extinguir o Tribunal Constitucional e substituí-lo por uma secção do Supremo Tribunal de Justiça. Infelizmente, ambas as ideias são destituídas de senso constitucional e político, revelando pouco sentido de responsabilidade e muita leviandade política.
A ideia do veto presidencial absoluto em certas matérias tem dois enormes defeitos. Por um lado, nem nos sistemas presidencialistas, como nos Estados Unidos, existe veto absoluto; por outro lado, trata-se de uma ideia claramente lesiva não somente da democracia parlamentar que nós somos, mas também da própria ideia da separação de poderes. Numa democracia representativa baseada na separação de poderes, o poder legislativo pertence ao Parlamento. Se se fosse para um veto absoluto, insusceptível de ultrapassagem parlamentar, mesmo por maioria qualificada, estaríamos a estabelecer uma supremacia absoluta ao Presidente da República, que nada justifica, no exercício do poder legislativo.
Acresce que, no caso português, a Constituição já exige uma maioria de 2/3 para superar o veto presidencial em certas matérias politicamente mais delicadas, pelo que nenhuma maioria governamental pode, só por si, aprovar uma lei contra um veto presidencial, pois não dispõe de tal maioria (a não ser que se trate um governo de "bloco central"...). Por isso, o veto presidencial absoluto só se pode compreender como operação demagógica para tentar cativar a opinião de alguns defensores menos prudentes do alargamento dos poderes de Belém. Só que isso seria feito à custa da democraticidade do sistema político e do equilíbrio de poderes do nosso sistema de governo, alterando radicalmente a matriz constitucional de 1976-82.
Embora não inédita, não é menos indefensável a ideia de extinguir o Tribunal Constitucional. Por um lado, seria ir contra a corrente constitucional nas últimas décadas, que levou à generalização dos tribunais constitucionais por esse mundo fora, como garantes dos direitos fundamentos, do equilíbrio de poderes e da regularidade do processo políticos. Por outro lado, os tribunais superiores ordinários não gozam habitualmente da necessária sensibilidade constitucional nem estão em geral preparados para lidar com as questões de "justiça política" que são próprias dos tribunais constitucionais, como as que dizem respeito às eleições, aos partidos políticos, ao financiamento ilícito de partidos políticos e outras que a crescente judicialização da vida política tem gerado.
No caso português acresce que a justiça constitucional nunca poderia ser atribuída a um dos tribunais supremos (no caso, o STJ), pela simples razão de que ela é transversal às várias ordens de tribunais, tendo portanto de pertencer a um órgão judicial autónomo, independente dos tribunais supremos de cada uma das ordens judiciais existentes, ou seja, os tribunais judiciais e os tribunais administrativos (para além do Tribunal de Contas). Seria perfeitamente ilógico confiar ao STJ o julgamento de recursos de constitucionalidade oriundos, por exemplo, do STA.
Independentemente da concordância, ou não, com as orientações jurisprudenciais do Palácio Ratton e com o modo de designação dos seus juízes, a verdade é que o TC conquistou a sua legitimidade por mérito próprio e a sua existência constitui um dado institucional incontornável do nosso sistema político-constitucional.
A ideia de refundação constitucional, através de uma "nova Constituição", não é somente constitucionalmente insustentável, visto que a Constituição só pode ser alterada por via de revisão, e não de uma "novação" constitucional. É também politicamente despropositada. Uma das características habituais do discurso político radical - e o "menezismo" é um radicalismo - consiste em pôr em causa a própria lei fundamental do país, a pretexto da salvação do país, mesmo que o levantamento da questão constitucional seja um fenómeno claramente artificial, como sucede entre nós. De facto, os problemas do país não estão na Constituição, e mesmo na medida em que possam ter uma vertente constitucional para algumas orientações políticas mais liberais no campo económico e social, eles não passam por uma "refundação constitucional", reduzindo-se a questões pontuais de revisão constitucional.
Ressuscitar uma questão constitucional em Portugal é tanto mais surpreendente quanto é certo que a Constituição de 1976, depois da sua revisão em 1982, é o produto do grande "acordo histórico" entre os dois grandes partidos do regime que são o PS e o PSD acerca da constitucionalização da transição e da consolidação democrática em Portugal. A "refundação constitucional" agora proposta pelo PSD, por mais votada ao fracasso que esteja - como seguramente está -, revela assim uma vontade de ruptura não somente com os fundamentos histórico-políticos do regime instaurado há três décadas, mas também com a própria história do partido que a propõe.
(Publico, terça-feira, 16.10.2007)