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23 de outubro de 2007

O Tratado de Lisboa 

Por Vital Moreira

Com anos de atraso e grande prejuízo para a UE, o Tratado Reformador veio resolver o impasse institucional que vinha desde os anos 90 e que o Tratado de Nice (2000) não resolveu.
São muitas e, em geral, dignas de aplauso as mudanças trazidas pelo novo tratado. Entre as mais importantes contam-se a unificação institucional da UE e da Comunidade Europeia, pondo fim à dualidade criada em 1992 com o Tratado de Maastricht; a explicitação das atribuições da UE e a clarificação das fronteiras com as atribuições do Estados-membros; a definitiva superação da UE enquanto simples "mercado comum", acentuando a sua vertente de "espaço de liberdade, justiça e segurança"; a atribuição de valor legal à Carta de Direitos Fundamentais da UE, aprovada na cimeira de Nice em 2000, e a adesão à Convenção Europeia dos Direitos Humanos; o reforço do princípio da subsidiariedade e o seu controlo pelos parlamentos nacionais; a racionalização institucional da UE, com o estabelecimento da presidência permanente do Conselho Europeu (e o fim das presidências nacionais semestrais), a diminuição do número de membros da Comissão Europeia e a criação do ministro dos Negócios Estrangeiros e da Defesa; o aumento das questões a decidir por "dupla maioria" qualificada, em vez da unanimidade; mais poder para o Parlamento Europeu e, também, para os parlamentos nacionais; mais responsabilidade da Comissão perante o Parlamento europeu; reforço do vector social da UE ("economia social de mercado", direitos sociais da CDFUE, protocolo sobre os "serviços de interesse geral", etc.); cláusula de solidariedade com os Estados-membros em caso de calamidades, etc.
O Tratado de Lisboa constitui um grande ganho para os cidadãos europeus, para os Estados-membros (incluindo Portugal, obviamente), para a Europa e para o mundo. Depois dele, a UE torna-se uma comunidade política mais eficiente, mais democrática, mais social e mais solidária, mais respeitadora dos direitos dos Estados-membros e dos cidadãos, mais capaz de intervir internacionalmente na cooperação externa, na manutenção da paz e na regulação da globalização.
É evidente que o tratado podia ser melhor em vários aspectos. Mas um tratado de revisão deve ser comparado com o que estava e não com o que não houve condições para estabelecer. A forma menos honesta de condenar o tratado consiste em fazê-lo sob o ponto de vista de uma verdadeira construção federal, cujas condições não existem, nem vão existir num futuro previsível (sobretudo depois da rejeição da "Constituição europeia" em 2005). Têm razão de crítica, naturalmente os soberanistas, em geral, e a esquerda radical, em especial, que não consegue conviver com a economia de mercado que está na base da UE. Não a têm, porém, os partidários de "mais Europa", que podem lamentar que se não tenha ido mais longe, mas não podem negar os progressos feitos em termos de mais democracia e mais legitimidade da nova UE.
É evidente que o novo tratado da UE recupera boa parte das inovações do malogrado "Tratado Constitucional" de 2004. Todavia, entre muitas outras coisas, ficou de fora desde logo a autocaracterização "constitucional", bem como as referências mimetizadoras da "estadualidade" (símbolos, nomenclatura dos diplomas legislativos, explicitação da supremacia do direito comunitário, etc.) que alimentaram a oposição dos meios "soberanistas" contra ela.
Não sendo propriamente uma reedição do Tratado Constitucional quanto ao seu conteúdo, o Tratado Reformador muito menos o é quanto à sua natureza jurídica e política, na medida em que se apresenta como uma simples revisão dos dois tratados vigentes, e não como uma refundição global dos tratados anteriores, como sucedia com o primeiro. Isso altera substancialmente tanto a sua compreensão, como o seu alcance jurídico.
O tratado de 2004 visava refundar politicamente a UE e refundir os tratados num único instrumento "constituinte", que compilava e consolidava num só texto "corrido" todo o "direito primário" da União. Com ele desapareciam os tratados da Comunidade Europeia (Tratado de Roma de 1957, com as alterações posteriores) e da União Europeia (Tratado de Maastricht de 1992, com alterações posteriores). Esta natureza "reconstituinte" tinha duas consequências. Primeiro, embora fosse um texto longo, o Tratado Constitucional era legível e inteligível sem grandes dificuldades; segundo, não havia nenhuma distinção entre o que vinha dos tratados anteriores e as inovações do novo tratado. Os Estados-membros eram chamados a aprovar e a ratificar globalmente todo o acervo "constitucional" da União, mesmo as muitas normas que vinham do tratado fundador de 1957.
Diferentemente, o novo Tratado de Lisboa abandonou qualquer pretensão refundadora e refundidora, sendo essa a principal diferença em relação ao Tratado Constitucional. O novo tratado é uma extensa sucessão de emendas singulares ao texto dos dois tratados existentes, que se mantêm separados (embora o Tratado da Comunidade Europeia mude de nome, para "Tratado do Funcionamento da União Europeia"). Trata-se de suprimir artigos, alterar artigos, acrescentar novos artigos. Por mais numerosas que sejam as alterações, muitas delas puramente verbais, sempre se trata apenas de rever os tratados anteriores, e não de os substituir por um novo instrumento unificador.
Esta diferente natureza do Tratado de Lisboa tem duas consequências inevitáveis. Primeiro, torna-se absolutamente inóspito para um não especialista ler e apreender as alterações introduzidas, que só podem ser alcançadas por comparação com o texto anterior; os "leigos" ficam arredados da leitura e da compreensão do tratado. Segundo, o que os Estados são chamados a ratificar são somente as alterações introduzidas e não as normas antigas que não foram modificadas pelo novo tratado e que continuam em vigor com o título jurídico e a força jurídica que tinham originariamente, muitas vezes desde 1957.
Por essa razão, o Tratado Reformador torna-se imune a várias críticas que vulneraram o Tratado Constitucional, por causa da incorporação dos tratados anteriores. Por exemplo, entre os factores que ditaram a rejeição do Tratado Constitucional em França avultaram as regras da concorrência e do "mercado interno" que vinham, respectivamente de 1957 e do Acto Único Europeu de 1987!
(Público, terça-feira, 23 de Outubro de 2007)

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