23 de novembro de 2007
Abuso de poder corporativo
Por Vital Moreira
A propósito da polémica sobre o estatuto deontológico da Ordem dos Médicos, que condena como "falta disciplinar grave" a interrupção voluntária da gravidez mesmo nos casos legalmente lícitos, há quem entenda que o Estado não se devia intrometer em questões de "ética profissional". Mas não é bem assim.
Assim seria, se a Ordem dos Médicos fosse uma associação civil, de inscrição livre, ao abrigo da autonomia privada e da liberdade de associação. Uma associação de médicos católicos, por exemplo, tem todo o direito de considerar como violação grave da sua ética médica a realização do aborto ou da eutanásia em todas as circunstâncias. Nesse caso, porém, só pertence à associação e se submete aos seus ditames quem concordar com os seus princípios e regras. A violação de tais deveres só poderá ser punida com a censura moral dos seus correligionários ou com a expulsão da agremiação, mas não com sanções que afectem os direitos profissionais dos seus associados (como a suspensão do exercício da profissão). E, obviamente, fica fora da "jurisdição" da associação quem não faça parte dela ou quem a abandone.
A posição profissional dos médicos que consideram eticamente inaceitável a prática do aborto em qualquer circunstância está constitucionalmente protegida pelo direito à objecção de consciência, que lhes permite eximirem-se legalmente à prática de actos médicos que considerem contrários às suas convicções religiosas ou morais. O que eles não podem é pretender impor oficialmente os seus padrões de ética profissional aos demais profissionais que não compartilham desse valores e não desejam deixar de cumprir as suas obrigações profissionais.
A Ordem dos Médicos não é uma associação privada e voluntária de médicos, mas sim, tal como todas as corporações profissionais públicas, uma instituição oficial, criada pelo Estado, de inscrição obrigatória para o exercício da profissão, com jurisdição universal sobre todos os médicos, dotada de poderes públicos, incluindo o poder regulamentar e o poder disciplinar. Como todas as demais entidades públicas, as ordens profissionais só têm os poderes que lhes sejam conferidos por lei. O seu poder normativo, que deriva da lei, está sujeito à lei e não pode contrariar a lei. Os princípios do Estado de direito relativos ao poder regulamentar, incluindo a precedência da lei e a primazia da lei, aplicam-se por inteiro ao poder normativo das ordens profissionais.
O código deontológico da Ordem dos Médicos é um regulamento oficial da profissão, emitido ao abrigo de um poder conferido por lei, sendo a base do poder disciplinar da Ordem. Por isso, nenhuma ordem profissional pode considerar infracção disciplinar a prática de actos profissionais não só lícitos mas mesmo profissionalmente devidos (salvo objecção de consciência). Os regulamentos deontológicos das ordens podem estabelecer deveres para além da lei, mas não contra a lei. Aliás, na generalidade das profissões reguladas, as normas deontológicas revestem forma legislativa, constando do estatuto da respectiva ordem ou de lei própria. O facto de, no caso dos médicos, a lei ter deixado para a Ordem a emissão do código deontológico não altera em nada a natureza dos deveres deontológicos nem a sua natureza disciplinar.
Constitui uma pura mistificação a ideia defendida pelo bastonário da Ordem dos Médicos, que admite que o código deontológico, na parte em que considera "falta disciplinar grave" a prática do aborto, não poderá servir de base à aplicação de sanções disciplinares, por falta de base legal, mas sustenta que poderá continuar a funcionar como simples norma de ética médica. Primeiro, a norma está definida como norma disciplinar, sendo como tal ilegal. Segundo, como entidade pública que é, a Ordem dos Médicos só tem os poderes que a lei lhe confere, entre os quais não se conta o poder de definir infracções deontológicas sem relevo jurídico. No caso de entidades públicas, mesmo o chamado "soft law" - ou seja, as recomendações e advertências insusceptíveis de serem sancionáveis e "justiciáveis" - não pode contrariar a lei.
Não é aceitável que uma corporação profissional pública possa constranger moralmente uma parte maior ou menor dos seus membros (obrigatórios), considerando eticamente censurável aquilo que é juridicamente devido. Uma entidade pública não pode impor aos seus membros códigos morais contrários à lei, expondo a um juízo de censura moral quem se limita a cumprir a lei. As ordens profissionais não podem pretender ser simultaneamente entidades oficiais de regulação da profissão - o que só podem fazer nos termos impostos ou consentidos por lei - e instâncias de censura moral à margem da lei.
Neste episódio, o que é inaceitável não é a iniciativa governamental de convocar a Ordem a adaptar o seu código deontológico à lei, mas sim a recusa daquela em fazê-lo. Não se pode admitir que uma corporação profissional pública se coloque ostensivamente fora e acima da lei, num intolerável desafio à primazia da lei e ao Estado de direito. O Estado tem o dever de impor o respeito pela autoridade da lei. A posição da Ordem dos Médicos é que não pode prevalecer.
De resto, o ministro da Saúde escolheu a via mais moderada e menos intrusiva de lidar com a situação, ao decidir pedir a declaração judicial de nulidade das normas em causa, pois poderia optar pura e simplesmente pela revogação legislativa do código deontológico, na parte ilegal. É bom não esquecer que, além de não estarem protegidas por uma "garantia institucional", as ordens profissionais muito menos gozam de uma autonomia regulamentar constitucionalmente garantida. Se abusam dela, sujeitam-se a serem dela privadas...
(Público, terça-feira, 20.11.2007)
A propósito da polémica sobre o estatuto deontológico da Ordem dos Médicos, que condena como "falta disciplinar grave" a interrupção voluntária da gravidez mesmo nos casos legalmente lícitos, há quem entenda que o Estado não se devia intrometer em questões de "ética profissional". Mas não é bem assim.
Assim seria, se a Ordem dos Médicos fosse uma associação civil, de inscrição livre, ao abrigo da autonomia privada e da liberdade de associação. Uma associação de médicos católicos, por exemplo, tem todo o direito de considerar como violação grave da sua ética médica a realização do aborto ou da eutanásia em todas as circunstâncias. Nesse caso, porém, só pertence à associação e se submete aos seus ditames quem concordar com os seus princípios e regras. A violação de tais deveres só poderá ser punida com a censura moral dos seus correligionários ou com a expulsão da agremiação, mas não com sanções que afectem os direitos profissionais dos seus associados (como a suspensão do exercício da profissão). E, obviamente, fica fora da "jurisdição" da associação quem não faça parte dela ou quem a abandone.
A posição profissional dos médicos que consideram eticamente inaceitável a prática do aborto em qualquer circunstância está constitucionalmente protegida pelo direito à objecção de consciência, que lhes permite eximirem-se legalmente à prática de actos médicos que considerem contrários às suas convicções religiosas ou morais. O que eles não podem é pretender impor oficialmente os seus padrões de ética profissional aos demais profissionais que não compartilham desse valores e não desejam deixar de cumprir as suas obrigações profissionais.
A Ordem dos Médicos não é uma associação privada e voluntária de médicos, mas sim, tal como todas as corporações profissionais públicas, uma instituição oficial, criada pelo Estado, de inscrição obrigatória para o exercício da profissão, com jurisdição universal sobre todos os médicos, dotada de poderes públicos, incluindo o poder regulamentar e o poder disciplinar. Como todas as demais entidades públicas, as ordens profissionais só têm os poderes que lhes sejam conferidos por lei. O seu poder normativo, que deriva da lei, está sujeito à lei e não pode contrariar a lei. Os princípios do Estado de direito relativos ao poder regulamentar, incluindo a precedência da lei e a primazia da lei, aplicam-se por inteiro ao poder normativo das ordens profissionais.
O código deontológico da Ordem dos Médicos é um regulamento oficial da profissão, emitido ao abrigo de um poder conferido por lei, sendo a base do poder disciplinar da Ordem. Por isso, nenhuma ordem profissional pode considerar infracção disciplinar a prática de actos profissionais não só lícitos mas mesmo profissionalmente devidos (salvo objecção de consciência). Os regulamentos deontológicos das ordens podem estabelecer deveres para além da lei, mas não contra a lei. Aliás, na generalidade das profissões reguladas, as normas deontológicas revestem forma legislativa, constando do estatuto da respectiva ordem ou de lei própria. O facto de, no caso dos médicos, a lei ter deixado para a Ordem a emissão do código deontológico não altera em nada a natureza dos deveres deontológicos nem a sua natureza disciplinar.
Constitui uma pura mistificação a ideia defendida pelo bastonário da Ordem dos Médicos, que admite que o código deontológico, na parte em que considera "falta disciplinar grave" a prática do aborto, não poderá servir de base à aplicação de sanções disciplinares, por falta de base legal, mas sustenta que poderá continuar a funcionar como simples norma de ética médica. Primeiro, a norma está definida como norma disciplinar, sendo como tal ilegal. Segundo, como entidade pública que é, a Ordem dos Médicos só tem os poderes que a lei lhe confere, entre os quais não se conta o poder de definir infracções deontológicas sem relevo jurídico. No caso de entidades públicas, mesmo o chamado "soft law" - ou seja, as recomendações e advertências insusceptíveis de serem sancionáveis e "justiciáveis" - não pode contrariar a lei.
Não é aceitável que uma corporação profissional pública possa constranger moralmente uma parte maior ou menor dos seus membros (obrigatórios), considerando eticamente censurável aquilo que é juridicamente devido. Uma entidade pública não pode impor aos seus membros códigos morais contrários à lei, expondo a um juízo de censura moral quem se limita a cumprir a lei. As ordens profissionais não podem pretender ser simultaneamente entidades oficiais de regulação da profissão - o que só podem fazer nos termos impostos ou consentidos por lei - e instâncias de censura moral à margem da lei.
Neste episódio, o que é inaceitável não é a iniciativa governamental de convocar a Ordem a adaptar o seu código deontológico à lei, mas sim a recusa daquela em fazê-lo. Não se pode admitir que uma corporação profissional pública se coloque ostensivamente fora e acima da lei, num intolerável desafio à primazia da lei e ao Estado de direito. O Estado tem o dever de impor o respeito pela autoridade da lei. A posição da Ordem dos Médicos é que não pode prevalecer.
De resto, o ministro da Saúde escolheu a via mais moderada e menos intrusiva de lidar com a situação, ao decidir pedir a declaração judicial de nulidade das normas em causa, pois poderia optar pura e simplesmente pela revogação legislativa do código deontológico, na parte ilegal. É bom não esquecer que, além de não estarem protegidas por uma "garantia institucional", as ordens profissionais muito menos gozam de uma autonomia regulamentar constitucionalmente garantida. Se abusam dela, sujeitam-se a serem dela privadas...
(Público, terça-feira, 20.11.2007)