27 de novembro de 2007
Aliado mas pouco fiável
por Ana Gomes
A administração pública de um Estado moderno não é de acesso e utilização irrestrita, como o “google” na internet.
Mas ninguém o diria, a avaliar pelo à-vontade do ex-ministro Paulo Portas ao retirar do Ministério da Defesa quase 62.000 fotocópias de documentos classificados como "confidencial", "NATO", "submarinos", "ONU" e "Iraque". Documentos que não são obviamente “pessoais”, como ele alega, porque se fossem bastar-lhe-ia trazer os originais...
Outros ministros fizeram o mesmo, alega o Ministério Público, para se desinteressar do assunto. Mas se Paulo Portas ignorou a divisão entre domínio público e privado e violou regras de segurança documental da UE e da NATO que obrigam o Estado português; e se, até agora, nenhuma autoridade da República Portuguesa, incluindo Presidente, Governo, Parlamento e PGR, reconheceu a natureza ilegal, perigosa e imoral do comportamento do ex-ministro, accionando pelo menos uma investigação, é caso para perguntar: o que impedirá doravante qualquer funcionário do Ministério da Defesa de levar para casa fotocópias de dossiers do Serviço, a pretexto de conterem anotações "pessoais"? E poderei eu, amanhã, entrar pelos arquivo do MNE adentro a digitalizar os milhares de páginas de telegrafia “pessoal” que eu própria redigi, assinei e expedi para Lisboa durante quatro anos a chefiar a Embaixada em Jacarta?
O comportamento de Paulo Portas teve, pelo menos, o condão de expor a zona cinzenta da legislação nacional sobre classificação de documentos do Estado. Que urge regulamentar e compatibilizar com as regras NATO e UE, clarificando como deve actuar perante elas a Comissão de Acesso aos Documentos da Administração (CADA), suposta zelar pela transparência na administração pública e combater excessos de zelo na classificação documental.
Mas lacunas destas não servem como atenuantes para a actuação do ex-Ministro da Defesa relativamente a documentos sobre temas que têm directamente a ver não só com a segurança do Estado, mas também com um processo judicial não encerrado: o caso Portucale, que assenta em suspeitas sobre as ligações entre a decisão do Ministro Paulo Portas de comprar submarinos – equipamento de custos exorbitantes e utilidade duvidosa - e o financiamento ilegal do seu partido. Um ministro que, ao sair do Governo, segundo escutas transcritas naquele processo judicial, admite não poder prescindir da imunidade parlamentar...Um ex-ministro que se especializou na Moderna, recorde-se, após anos de refinamento na pressão política e pessoal no defunto “Independente”.
Em Bruxelas, na NATO e na UE, discutem-se à exaustão as razões e implicações da falta de cooperação entre Forças Armadas e Serviços de Informação dos Estados Membros, reconhecendo-se a ineficácia de esforços meramente nacionais na luta contra o terrorismo e a criminalidade organizada, por exemplo. Criar um clima de confiança que permita a troca de informação entre parceiros é essencial. Um clima que é construído ao longo de gerações, mas que pode ser desbaratado num ápice.
De facto, o cumprimento escrupuloso das regras de confidencialidade da NATO e da União Europeia é a base de qualquer esforço colectivo na área da informação e da segurança. Nas relações entre nações, vale o que também vale entre indivíduos: quem não sabe guardar segredos, perde a confiança dos amigos. Acresce que, quem tem telhados de vidro, é chantageável; e quem é chantageável, não pode ser fiável.
Clara Ferreira Alves, no Expresso da semana passada, sublinhou as consequências que Donald Rumsfeld teria de enfrentar nos EUA, se tivesse aproveitado a saída da Administração Bush para fotocopiar dossiers com os mesmos temas que Paulo Portas alega serem do foro «pessoal». Em nenhum dos nossos parceiros europeus ou ocidentais se toleraria tamanha permissividade, estando em causa a segurança nacional e aliada. Se nem nós, portugueses, nos levamos a sério nesta área, porque é que os nossos Aliados hão-de levar?
(publicado no COURRIER INTERNACIONAL de 23.11.07)
A administração pública de um Estado moderno não é de acesso e utilização irrestrita, como o “google” na internet.
Mas ninguém o diria, a avaliar pelo à-vontade do ex-ministro Paulo Portas ao retirar do Ministério da Defesa quase 62.000 fotocópias de documentos classificados como "confidencial", "NATO", "submarinos", "ONU" e "Iraque". Documentos que não são obviamente “pessoais”, como ele alega, porque se fossem bastar-lhe-ia trazer os originais...
Outros ministros fizeram o mesmo, alega o Ministério Público, para se desinteressar do assunto. Mas se Paulo Portas ignorou a divisão entre domínio público e privado e violou regras de segurança documental da UE e da NATO que obrigam o Estado português; e se, até agora, nenhuma autoridade da República Portuguesa, incluindo Presidente, Governo, Parlamento e PGR, reconheceu a natureza ilegal, perigosa e imoral do comportamento do ex-ministro, accionando pelo menos uma investigação, é caso para perguntar: o que impedirá doravante qualquer funcionário do Ministério da Defesa de levar para casa fotocópias de dossiers do Serviço, a pretexto de conterem anotações "pessoais"? E poderei eu, amanhã, entrar pelos arquivo do MNE adentro a digitalizar os milhares de páginas de telegrafia “pessoal” que eu própria redigi, assinei e expedi para Lisboa durante quatro anos a chefiar a Embaixada em Jacarta?
O comportamento de Paulo Portas teve, pelo menos, o condão de expor a zona cinzenta da legislação nacional sobre classificação de documentos do Estado. Que urge regulamentar e compatibilizar com as regras NATO e UE, clarificando como deve actuar perante elas a Comissão de Acesso aos Documentos da Administração (CADA), suposta zelar pela transparência na administração pública e combater excessos de zelo na classificação documental.
Mas lacunas destas não servem como atenuantes para a actuação do ex-Ministro da Defesa relativamente a documentos sobre temas que têm directamente a ver não só com a segurança do Estado, mas também com um processo judicial não encerrado: o caso Portucale, que assenta em suspeitas sobre as ligações entre a decisão do Ministro Paulo Portas de comprar submarinos – equipamento de custos exorbitantes e utilidade duvidosa - e o financiamento ilegal do seu partido. Um ministro que, ao sair do Governo, segundo escutas transcritas naquele processo judicial, admite não poder prescindir da imunidade parlamentar...Um ex-ministro que se especializou na Moderna, recorde-se, após anos de refinamento na pressão política e pessoal no defunto “Independente”.
Em Bruxelas, na NATO e na UE, discutem-se à exaustão as razões e implicações da falta de cooperação entre Forças Armadas e Serviços de Informação dos Estados Membros, reconhecendo-se a ineficácia de esforços meramente nacionais na luta contra o terrorismo e a criminalidade organizada, por exemplo. Criar um clima de confiança que permita a troca de informação entre parceiros é essencial. Um clima que é construído ao longo de gerações, mas que pode ser desbaratado num ápice.
De facto, o cumprimento escrupuloso das regras de confidencialidade da NATO e da União Europeia é a base de qualquer esforço colectivo na área da informação e da segurança. Nas relações entre nações, vale o que também vale entre indivíduos: quem não sabe guardar segredos, perde a confiança dos amigos. Acresce que, quem tem telhados de vidro, é chantageável; e quem é chantageável, não pode ser fiável.
Clara Ferreira Alves, no Expresso da semana passada, sublinhou as consequências que Donald Rumsfeld teria de enfrentar nos EUA, se tivesse aproveitado a saída da Administração Bush para fotocopiar dossiers com os mesmos temas que Paulo Portas alega serem do foro «pessoal». Em nenhum dos nossos parceiros europeus ou ocidentais se toleraria tamanha permissividade, estando em causa a segurança nacional e aliada. Se nem nós, portugueses, nos levamos a sério nesta área, porque é que os nossos Aliados hão-de levar?
(publicado no COURRIER INTERNACIONAL de 23.11.07)