14 de novembro de 2007
Juízes-funcionários?
Por Vital Moreira
Está a suscitar protestos o novo regime dos vínculos, carreiras e remunerações dos trabalhadores da administração pública, na parte em que abrange os juízes e os magistrados do Ministério Público, embora salvaguardando o disposto na Constituição e em leis especiais quanto aos mesmos. Importa analisar os termos da questão.
Apesar das referidas salvaguardas em relação à Constituição e ao estatuto legal especial das magistraturas, deve considerar-se constitucionalmente infundada e politicamente errada a qualificação dos juízes como funcionários ou trabalhadores da administração pública. Eles não são tecnicamente trabalhadores, nem integram a administração pública. Não têm uma relação de emprego, não estão sujeitos a uma relação de subordinação, não compartilham de outras características próprias da relação laboral. Os juízes são titulares de um cargo público, desempenhando a função judicial, caracterizada pela sua independência, inamovibilidade, irresponsabilidade e garantias especiais de imparcialidade, função essa que não pode ser integrada no conceito de administração pública, cujo desempenho é por definição dependente e responsável.
É certo que, em certos aspectos, os próprios juízes parecem auto-qualificar-se como funcionários, por exemplo, ao exercerem actividades sindicais, ao reivindicarem o direito à greve (e ao exercerem-no) e ao reclamarem um horário de trabalho, como sucedeu há poucos anos. De facto, só enquanto funcionários e não enquanto titulares de cargos públicos é que eles poderiam ter tais direitos, salvo se a lei lhos reconhecesse explicitamente enquanto magistrados, o que não sucede. Os juízes não podem, por um lado, recusar a qualificação como funcionários quando não lhes convém e, por outro lado, prevalecer-se dessa qualificação quando lhes interessa, como por exemplo para beneficiarem das regalias dos Serviços Sociais do Ministério da Justiça, que a lei deixou de lhes reconhecer.
Todavia, independentemente da versátil auto-percepção dos juízes quanto ao seu estatuto jurídico e da eventual aplicação legal de certos aspectos do regime da função pública aos magistrados judiciais - o que pode ocorrer sempre que tal se justifique e não seja incompatível com as suas funções judiciais, como por exemplo o regime de férias e de segurança social -, a verdade é que uma coisa é a sua qualificação como titulares de um cargo público, sem prejuízo da extensão legal de certos aspectos do regime da função pública, e outra é a sua qualificação como funcionários, embora com especificidades. A diferença é substancial. Na solução da nova lei, o regime dos juízes é, "por defeito", o dos funcionários públicos, salvaguardando as peculiaridades do seu estatuto; na solução alternativa, os juízes dispõem de um estatuto próprio, sem prejuízo dos aspectos do regime da função pública que a lei lhes mande aplicar, e só desses. Por consequência, a solução correcta teria sido não incluir os juízes no universo de aplicação da nova lei do emprego na administração pública, salvaguardando quando muito a possibilidade de o seu estatuto próprio poder mandar aplicar-lhes alguns aspectos da nova lei.
A concepção do cargo público, em alternativa à da função pública, permite compreender muito melhor as características próprias do estatuto judicial, designadamente a exclusividade, a irresponsabilidade, a independência funcional, as garantias especiais de imparcialidade, as imunidades e certas regalias especiais, a interdição de actividades políticas, etc.
Quanto aos aspectos do regime da função pública que não devem ser estendidos aos juízes devem incluir-se os que pressupõem necessariamente uma relação de emprego e, especificamente, uma relação de subordinação funcional. Entre eles contam-se, por exemplo, o direito de negociação colectiva e o direito à greve, que são direitos específicos dos trabalhadores assalariados e que não se afiguram de modo nenhum compatíveis com o desempenho de cargos públicos.
Em contrapartida, porém, nada no estatuto próprio dos magistrados judiciais exige ou justifica qualquer regime especial em matéria de direito aos cuidados de saúde ou de segurança social. Nenhuma categoria de titulares de cargos públicos goza de tais regimes especiais (depois da revogação do regime de pensões dos titulares de cargos políticos). Impõe-se, por isso, revogar as regalias em matéria de aposentação dos juízes, incluindo o estatuto da jubilação, que só serve para garantir a manutenção e actualização das condições remuneratórias da situação de activo (incluindo o famigerado subsídio de residência!..), com vantagem de, até agora, o tratamento fiscal mais favorável das pensões implicar um aumento do rendimento disponível!...
Ao contrário do que se poderia supor, o discurso precedente sobre a qualificação funcional dos juízes não vale para os magistrados do Ministério Público. É certo que a tendencial equiparação do estatuto das duas magistraturas vem desde há muito.
Mas há boas razões para reequacionar a questão e para defender uma diferente perspectiva. O Ministério Público é uma magistratura de representação do Estado, cabendo-lhe especialmente exercer a acção penal, de acordo com as prioridades da política criminal definidas pelo poder político. Diferentemente dos juízes, trata-se aqui de uma magistratura hierarquizada na sua organização e subordinada e responsável no exercício das suas funções, sob comando do Procurador-Geral da República, livremente nomeado e exonerado pelo poder político.
Por consequência, não relevam para o Ministério Público as razões constitucionais e políticas que no caso dos magistrados judiciais afastam a sua qualificação como funcionários públicos. Ainda que com algumas especificidades, nada há de incompatível entre o regime da função pública e as funções dos magistrados do Ministério Público.
(Público, 13 de Novembro de 2007)
Está a suscitar protestos o novo regime dos vínculos, carreiras e remunerações dos trabalhadores da administração pública, na parte em que abrange os juízes e os magistrados do Ministério Público, embora salvaguardando o disposto na Constituição e em leis especiais quanto aos mesmos. Importa analisar os termos da questão.
Apesar das referidas salvaguardas em relação à Constituição e ao estatuto legal especial das magistraturas, deve considerar-se constitucionalmente infundada e politicamente errada a qualificação dos juízes como funcionários ou trabalhadores da administração pública. Eles não são tecnicamente trabalhadores, nem integram a administração pública. Não têm uma relação de emprego, não estão sujeitos a uma relação de subordinação, não compartilham de outras características próprias da relação laboral. Os juízes são titulares de um cargo público, desempenhando a função judicial, caracterizada pela sua independência, inamovibilidade, irresponsabilidade e garantias especiais de imparcialidade, função essa que não pode ser integrada no conceito de administração pública, cujo desempenho é por definição dependente e responsável.
É certo que, em certos aspectos, os próprios juízes parecem auto-qualificar-se como funcionários, por exemplo, ao exercerem actividades sindicais, ao reivindicarem o direito à greve (e ao exercerem-no) e ao reclamarem um horário de trabalho, como sucedeu há poucos anos. De facto, só enquanto funcionários e não enquanto titulares de cargos públicos é que eles poderiam ter tais direitos, salvo se a lei lhos reconhecesse explicitamente enquanto magistrados, o que não sucede. Os juízes não podem, por um lado, recusar a qualificação como funcionários quando não lhes convém e, por outro lado, prevalecer-se dessa qualificação quando lhes interessa, como por exemplo para beneficiarem das regalias dos Serviços Sociais do Ministério da Justiça, que a lei deixou de lhes reconhecer.
Todavia, independentemente da versátil auto-percepção dos juízes quanto ao seu estatuto jurídico e da eventual aplicação legal de certos aspectos do regime da função pública aos magistrados judiciais - o que pode ocorrer sempre que tal se justifique e não seja incompatível com as suas funções judiciais, como por exemplo o regime de férias e de segurança social -, a verdade é que uma coisa é a sua qualificação como titulares de um cargo público, sem prejuízo da extensão legal de certos aspectos do regime da função pública, e outra é a sua qualificação como funcionários, embora com especificidades. A diferença é substancial. Na solução da nova lei, o regime dos juízes é, "por defeito", o dos funcionários públicos, salvaguardando as peculiaridades do seu estatuto; na solução alternativa, os juízes dispõem de um estatuto próprio, sem prejuízo dos aspectos do regime da função pública que a lei lhes mande aplicar, e só desses. Por consequência, a solução correcta teria sido não incluir os juízes no universo de aplicação da nova lei do emprego na administração pública, salvaguardando quando muito a possibilidade de o seu estatuto próprio poder mandar aplicar-lhes alguns aspectos da nova lei.
A concepção do cargo público, em alternativa à da função pública, permite compreender muito melhor as características próprias do estatuto judicial, designadamente a exclusividade, a irresponsabilidade, a independência funcional, as garantias especiais de imparcialidade, as imunidades e certas regalias especiais, a interdição de actividades políticas, etc.
Quanto aos aspectos do regime da função pública que não devem ser estendidos aos juízes devem incluir-se os que pressupõem necessariamente uma relação de emprego e, especificamente, uma relação de subordinação funcional. Entre eles contam-se, por exemplo, o direito de negociação colectiva e o direito à greve, que são direitos específicos dos trabalhadores assalariados e que não se afiguram de modo nenhum compatíveis com o desempenho de cargos públicos.
Em contrapartida, porém, nada no estatuto próprio dos magistrados judiciais exige ou justifica qualquer regime especial em matéria de direito aos cuidados de saúde ou de segurança social. Nenhuma categoria de titulares de cargos públicos goza de tais regimes especiais (depois da revogação do regime de pensões dos titulares de cargos políticos). Impõe-se, por isso, revogar as regalias em matéria de aposentação dos juízes, incluindo o estatuto da jubilação, que só serve para garantir a manutenção e actualização das condições remuneratórias da situação de activo (incluindo o famigerado subsídio de residência!..), com vantagem de, até agora, o tratamento fiscal mais favorável das pensões implicar um aumento do rendimento disponível!...
Ao contrário do que se poderia supor, o discurso precedente sobre a qualificação funcional dos juízes não vale para os magistrados do Ministério Público. É certo que a tendencial equiparação do estatuto das duas magistraturas vem desde há muito.
Mas há boas razões para reequacionar a questão e para defender uma diferente perspectiva. O Ministério Público é uma magistratura de representação do Estado, cabendo-lhe especialmente exercer a acção penal, de acordo com as prioridades da política criminal definidas pelo poder político. Diferentemente dos juízes, trata-se aqui de uma magistratura hierarquizada na sua organização e subordinada e responsável no exercício das suas funções, sob comando do Procurador-Geral da República, livremente nomeado e exonerado pelo poder político.
Por consequência, não relevam para o Ministério Público as razões constitucionais e políticas que no caso dos magistrados judiciais afastam a sua qualificação como funcionários públicos. Ainda que com algumas especificidades, nada há de incompatível entre o regime da função pública e as funções dos magistrados do Ministério Público.
(Público, 13 de Novembro de 2007)