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1 de novembro de 2007

O direito à escola pública 

Por Vital Moreira

Já faz parte do calendário político anual. Mal são publicadas as classificações dos exames do ensino básico e secundário, confirmando a melhor posição das escolas privadas nos usuais rankings das notas, e logo o lóbi do ensino privado lança uma vasta campanha a favor da "liberdade de escolha da escola" e da "concorrência entre o ensino público e o privado". O objectivo, aliás não escondido, é pôr o Estado a financiar o ensino privado.
No entanto, o problema com os rankings escolares é que provavelmente as melhores escolas, privadas ou públicas, são feitas sobretudo pelos seus alunos, oriundos das elites sociais, com melhores condições de sucesso escolar. A correlação inversa, entre as escolas menos bem classificadas e a origem social menos favorável dos alunos, também é em geral verdadeira. As escolas mais bem classificadas seguramente ficariam longe dos primeiros lugares, se tivessem os alunos das piores; e as escolas com piores resultados dariam um grande salto na classificação, se tivessem os alunos das melhores.
As melhores escolas privadas são caracterizadas pela sua selectividade social, quer porque o seu preço as reserva para as camadas sociais de mais elevados rendimentos, quer porque algumas delas fazem selecção explícita, recusando alunos menos "seguros" quanto às suas perspectivas de aproveitamento. Ao contrário, as escolas públicas não são nem podem ser socialmente selectivas, tendo de aceitar e de integrar todos os alunos, independentemente da sua origem social e da sua potencialidade de aproveitamento escolar.
Se se fizer um estudo sobre o universo do grupo selecto das melhores escolas privadas e o das escolas públicas, não é difícil adivinhar a enorme diferença média quanto à origem social, nível de escolaridade dos pais, frequência de ensino pré-escolar, etc. A segmentação social é um dos dados mais característicos das melhores escolas privadas. E é utópico pensar que, mesmo que todos passassem milagrosamente a poder aceder às escolas de elite, todos passariam, por isso mesmo, a ter elevado desempenho escolar.
Ao contrário do que se pretendeu insinuar, não existe uma equação entre escola de qualidade e escola privada. Primeiro, porque também existem escolas privadas com baixas classificações médias, figurando entre as piores; segundo, porque, em igualdade de situações (sobretudo quanto à origem dos alunos), provavelmente as escolas públicas poderiam fazer tão bem como as melhores privadas. Para um mesmo universo numérico, os melhores alunos das melhores escolas públicas comparam-se bem com os das melhores escolas privadas. Será preciso referir o ensino superior, para mostrar que o ensino privado pode ser muito pior do que o ensino público?
É evidente que para o sucesso escolar e as boas classificações contam também factores como a qualidade do corpo docente, a motivação, a exigência e a disciplina escolar, a qualidade das instalações e dos equipamentos, etc. Mas, por um lado, há boas razões para crer que se não trata dos factores mais relevantes; e, por outro lado, não há nenhuma razão para que a escola pública não possa atingir níveis elevados quanto a todos esses factores.

Não pode merecer nenhum acolhimento político a ideia de que o Estado deve financiar a frequência de escolas privadas, designadamente pelo mecanismo do "vale escolar" (voucher). As razões são óbvias. Primeiro, essa solução seria financeiramente incomportável, pois o Estado teria de manter paralelamente a rede escolar pública, embora com menos alunos, não dando a redução de custos para compensar os gastos com a manutenção de duas redes. Segundo, o montante do "vale" nunca poderia cobrir os elevados custos das melhores escolas privadas, pelo que a frequência destas continuaria acessível somente aos que pudessem suportar os custos adicionais.
O mecanismo proposto redundaria, em geral, num subsídio às famílias mais ricas, que já frequentam as escolas de elite, não sendo de esperar um grande alargamento, até pela selectividade que tais escolas continuariam a manter. No final, o resultado seria a oficialização da segmentação social entre o ensino privado e o ensino público, provavelmente com o desencadeamento de uma lógica favorável à transformação da escola pública numa "escola para os pobres", num círculo vicioso de perda de alunos e de degradação do prestígio e da qualidade.
Não pode ser esse o caminho em Portugal. O ensino privado constitui seguramente uma liberdade de todos os que queiram e possam frequentá-lo, mas a escola pública constitui um direito de todos e uma obrigação do Estado. A principal responsabilidade do Estado no domínio do ensino é a universalidade e a qualidade da escola pública, como factor de democratização do ensino, de igualdade de oportunidades e de integração social. A prioridade deve ser investir na escola pública, aberta e não-confessional, e não fomentar o negócio do ensino privado e a segregação ideológica ou confessional do ensino.
A mais instante tarefa nacional consiste em suprir o criminoso défice de investimento na qualidade do ensino público, em todos os seus aspectos (professores, instalações, equipamentos, cantinas, meios técnicos, etc.), bem como na autonomia e responsabilidade das escolas e na competição entre elas. O que não é admissível é que, havendo falta de dinheiro para investir na escola pública, o Estado desperdice tanto dinheiro com a manutenção abusiva de "contratos de associação" e com a elevadíssima "despesa fiscal" que representam as benefícios fiscais relativos às despesas com o ensino privado,.
O Estado deve, por isso, proceder a uma revisão de todos os "contratos de associação", eliminando os que já não encontram justificação na carência de escolas públicas, bem como dos referidos benefícios fiscais, que só beneficiam os titulares de mais altos rendimentos, contribuindo para reduzir a progressividade fiscal do IRS.
(Público, 3ª feira, 30 de Outubro de 2007)

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