8 de novembro de 2007
A ofensiva falhada contra o ensino público
Por Vital Moreira
Para começar, a alegada superioridade das escolas privadas não é o que parece. Tem razão António Barreto (PÚBLICO de domingo passado), quando argumenta que o que surpreende não é a habitual ocupação nos lugares cimeiros do ranking por escolas privadas, mas sim o facto de, com tantas vantagens comparativas sobre as escolas públicas, elas mal se terem destacado nos resultados do conjunto de todas as escolas.
Se, além disso, descontarmos uma dúzia de escolas de elite, socialmente selectivas, situadas em Lisboa e no Porto, que jogam um "campeonato à parte" (e que sempre existirão), as demais escolas privadas espalhadas por esse país fora, mesmo quando pertencentes às mesmas entidades instituidoras, distribuem-se na ordenação das classificações a par das escolas públicas, entre escolas boas, razoáveis ou medíocres, sem que nada permita reconhecer-lhes uma significativa superioridade de resultados. Se a comparação for feita entre escolas com mais de cem exames efectuados, a situação muda ainda mais de figura em favor das escolas públicas.
Nem se critique como fracasso da escola pública o facto de ela não conseguir atrair os filhos da classe média que tem rendimentos para enviar os filhos para escolas privadas. Mas o argumento é pouco convincente. Primeiro, está por provar que todas as famílias nessas circunstâncias, ou sequer a maior parte, desertaram da escola pública. Segundo, algumas das escolas privadas em causa não conseguem superar as melhores escolas públicas, pelo que o investimento adicional nessas escolas redunda em puro desperdício, se a razão para a sua escolha estava na busca de ensino de excelência. Terceiro, e sobretudo, entre as razões para a escolha de escolas privadas de elite estão muitas vezes motivos de prestígio social ou de recusa elitista da "promiscuidade social" da escola pública, que continuariam a valer mesmo que as escolas públicas fossem tão boas como as melhores escolas privadas. Basta ver o que se passa no caso do ensino superior, onde está por demonstrar a superioridade da Universidade Católica sobre as melhores universidades públicas, sem que isso deixe da garantir-lhe uma confortável procura, apesar da comparação das dispendiosas propinas daquela com a quase gratuitidade das universidades públicas.
A segunda razão para o falhanço da campanha contra o ensino público está na fácil demonstração da incomportabilidade financeira e na injustiça social da imaginosa solução do "vale escolar" (school voucher). Por um lado, a capitação da despesa pública com o ensino público não daria para pagar as propinas das escolas privadas de elite, pelo que estas continuariam acessíveis somente a quem pudesse suportar as despesas adicionais; por outro lado, parece evidente que o custo da saída de cada aluno para o ensino privado (custo do "vale") não seria compensado por idêntica poupança no ensino público, dados os "custos de sistema" deste (gestão, edifícios, professores, etc.). Desde logo, teriam de ser suportados pelo orçamento os actuais alunos de escolas privadas sem "contrato de associação" que actualmente são custeados pelas próprias famílias (ou seja, um puro subsídio aos mais ricos...).
A terceira razão que favorece a escola pública tem a ver com a sua insubstituibilidade em termos de igualdade de tratamento e de igualdade de oportunidades, sem discriminações económicas e sociais e sem obediência a orientações religiosas ou doutrinárias, que sempre constituiu o leit motiv da defesa do ensino público. É isso que torna "infungível" (ou seja, insubstituível) o bem especial que é o ensino público, numa escola aberta e não confessional, ao contrário das outras prestações públicas, desde a água aos cuidados de saúde, que todas podem ser prestadas indiferenciadamente por operadores privados. De resto, basta olhar para a nossa história desde o final dos anos 60, quando se iniciou a "democratização" sociológica do acesso ao ensino secundário e superior, para constatar que nada contribuiu tanto como a escola pública para a mobilidade social ascendente de milhões de portugueses.
A quarta razão para o fracasso da ofensiva contra o ensino público, apesar da força dos interesses e das ideologias dominantes em contrário, deve-se à consciência de que, pesem embora as deficiências e os insucessos que persistem na escola pública, as coisas estão em vias de melhorar com as reformas em curso. Entre essas medidas, contam-se a universalização do ensino pré-escolar, a supressão de milhares de escolas do ensino básico sem condições adequadas, a "escola a tempo inteiro" (porventura a medida singular mais virtuosa entre todas), a melhoria de instalações e de equipamentos (incluindo equipamento informático), as providências para a estabilidade e qualificação do pessoal docente, a avaliação de escolas e de professores, os avanços na autonomia e responsabilidade das escolas, os programas específicos de formação e a aprendizagem para certas disciplinas (Matemática e Português), o programa Novas Oportunidades, etc.
É essa revolução em curso, apesar das resistências e interesses instalados (incluindo atavismos sindicais), e não proclamações retóricas, que pode melhorar a qualidade e reforçar a legitimidade e o prestígio da escola pública, como parte integrante do projecto republicano de emancipação pessoal, de igualdade e inclusão social e de progresso cultural. É por isso que, sem prejuízo da liberdade e autonomia do ensino privado, o ensino público constitui uma incontornável responsabilidade e uma indeclinável obrigação do Estado.
Pelo menos, numa visão democrática, laica e progressista.
(Público, 3ª feira, 6 de Novembro de 2007)
Para começar, a alegada superioridade das escolas privadas não é o que parece. Tem razão António Barreto (PÚBLICO de domingo passado), quando argumenta que o que surpreende não é a habitual ocupação nos lugares cimeiros do ranking por escolas privadas, mas sim o facto de, com tantas vantagens comparativas sobre as escolas públicas, elas mal se terem destacado nos resultados do conjunto de todas as escolas.
Se, além disso, descontarmos uma dúzia de escolas de elite, socialmente selectivas, situadas em Lisboa e no Porto, que jogam um "campeonato à parte" (e que sempre existirão), as demais escolas privadas espalhadas por esse país fora, mesmo quando pertencentes às mesmas entidades instituidoras, distribuem-se na ordenação das classificações a par das escolas públicas, entre escolas boas, razoáveis ou medíocres, sem que nada permita reconhecer-lhes uma significativa superioridade de resultados. Se a comparação for feita entre escolas com mais de cem exames efectuados, a situação muda ainda mais de figura em favor das escolas públicas.
Nem se critique como fracasso da escola pública o facto de ela não conseguir atrair os filhos da classe média que tem rendimentos para enviar os filhos para escolas privadas. Mas o argumento é pouco convincente. Primeiro, está por provar que todas as famílias nessas circunstâncias, ou sequer a maior parte, desertaram da escola pública. Segundo, algumas das escolas privadas em causa não conseguem superar as melhores escolas públicas, pelo que o investimento adicional nessas escolas redunda em puro desperdício, se a razão para a sua escolha estava na busca de ensino de excelência. Terceiro, e sobretudo, entre as razões para a escolha de escolas privadas de elite estão muitas vezes motivos de prestígio social ou de recusa elitista da "promiscuidade social" da escola pública, que continuariam a valer mesmo que as escolas públicas fossem tão boas como as melhores escolas privadas. Basta ver o que se passa no caso do ensino superior, onde está por demonstrar a superioridade da Universidade Católica sobre as melhores universidades públicas, sem que isso deixe da garantir-lhe uma confortável procura, apesar da comparação das dispendiosas propinas daquela com a quase gratuitidade das universidades públicas.
A segunda razão para o falhanço da campanha contra o ensino público está na fácil demonstração da incomportabilidade financeira e na injustiça social da imaginosa solução do "vale escolar" (school voucher). Por um lado, a capitação da despesa pública com o ensino público não daria para pagar as propinas das escolas privadas de elite, pelo que estas continuariam acessíveis somente a quem pudesse suportar as despesas adicionais; por outro lado, parece evidente que o custo da saída de cada aluno para o ensino privado (custo do "vale") não seria compensado por idêntica poupança no ensino público, dados os "custos de sistema" deste (gestão, edifícios, professores, etc.). Desde logo, teriam de ser suportados pelo orçamento os actuais alunos de escolas privadas sem "contrato de associação" que actualmente são custeados pelas próprias famílias (ou seja, um puro subsídio aos mais ricos...).
A terceira razão que favorece a escola pública tem a ver com a sua insubstituibilidade em termos de igualdade de tratamento e de igualdade de oportunidades, sem discriminações económicas e sociais e sem obediência a orientações religiosas ou doutrinárias, que sempre constituiu o leit motiv da defesa do ensino público. É isso que torna "infungível" (ou seja, insubstituível) o bem especial que é o ensino público, numa escola aberta e não confessional, ao contrário das outras prestações públicas, desde a água aos cuidados de saúde, que todas podem ser prestadas indiferenciadamente por operadores privados. De resto, basta olhar para a nossa história desde o final dos anos 60, quando se iniciou a "democratização" sociológica do acesso ao ensino secundário e superior, para constatar que nada contribuiu tanto como a escola pública para a mobilidade social ascendente de milhões de portugueses.
A quarta razão para o fracasso da ofensiva contra o ensino público, apesar da força dos interesses e das ideologias dominantes em contrário, deve-se à consciência de que, pesem embora as deficiências e os insucessos que persistem na escola pública, as coisas estão em vias de melhorar com as reformas em curso. Entre essas medidas, contam-se a universalização do ensino pré-escolar, a supressão de milhares de escolas do ensino básico sem condições adequadas, a "escola a tempo inteiro" (porventura a medida singular mais virtuosa entre todas), a melhoria de instalações e de equipamentos (incluindo equipamento informático), as providências para a estabilidade e qualificação do pessoal docente, a avaliação de escolas e de professores, os avanços na autonomia e responsabilidade das escolas, os programas específicos de formação e a aprendizagem para certas disciplinas (Matemática e Português), o programa Novas Oportunidades, etc.
É essa revolução em curso, apesar das resistências e interesses instalados (incluindo atavismos sindicais), e não proclamações retóricas, que pode melhorar a qualidade e reforçar a legitimidade e o prestígio da escola pública, como parte integrante do projecto republicano de emancipação pessoal, de igualdade e inclusão social e de progresso cultural. É por isso que, sem prejuízo da liberdade e autonomia do ensino privado, o ensino público constitui uma incontornável responsabilidade e uma indeclinável obrigação do Estado.
Pelo menos, numa visão democrática, laica e progressista.
(Público, 3ª feira, 6 de Novembro de 2007)