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13 de novembro de 2007

Os salteadores da Arca de Zoe 

por Ana Gomes

Afinal parece que os órfãos de guerra do Darfur a salvar pela «Arca de Zoe» não eram órfãos, nem eram do Darfur. Nem realmente iam ser «salvos», mas vendidos a quem na Europa pagasse pelo menos 2.800 euros pela sua “adopção”. Nem estavam feridos, como sugeriam as ligaduras em que os envolveram os raptores. Os fins mentirosos e os métodos criminosos da Arca de Zoe não são compatíveis com a ética de uma ONG humanitária.
As responsabilidades do Estado francês, por acção ou omissão, neste escabroso “affaire” põem em causa o Quai D'Orsay, o Ministério de Defesa e a Força Aérea, pois chegaram até a pôr aviões militares à disposição para o transporte das crianças. Para não falar dos “media” franceses, que só deram por este rapto colectivo, quando ele capotou, apesar de três jornalistas nele estarem “embedded”.
O frenético Presidente francês percebeu logo que tudo tinha ido longe demais e, seguindo as pisadas da ex-mulher, empreendeu um “raid” sobre Ndjamena, resgatando jornalistas e parte da equipagem espanhola. Mas não há técnica de apagamento de fogos sarkoziana capaz de salvar de tremenda chamuscagem a França - e a Europa. Em causa pode estar a operação EUFOR no Tchad, que precisa da confiança das populações locais e refugiadas para ser útil à resolução do conflito do Darfur. Em causa podem também ficar dedicados trabalhadores humanitários das agências da ONU e das ONGs. Não foi por acaso que as mais veementes condenações vieram da UNICEF, do ACNUR, da Cruz Vermelha e de várias ONGs.
A imprensa francesa denuncia a demagogia do Presidente do Tchad ao aludir ao tráfico de crianças para abusos sexuais e vendas de órgãos. Mas a triste realidade é que esses são, muitas vezes, os destinos de menores apanhados nos circuitos internacionais de adopção. Percebi-o na Roménia, onde foram feitos notáveis progressos, implicando severas restrições às adopções internacionais (estas, desde o fim da era Ceauscescu, haviam resultado na “exportação” de mais de 30.000 crianças).
Este tenebroso “affaire Zoe” fez incidir nova luz sobre os negócios que florescem a pretexto da adopção internacional. Apesar da Convenção da Haia sobre Adopção Internacional e da vigilância da UNICEF, são frouxos e desarticulados os mecanismos nacionais e internacionais de acompanhamento.
Em Portugal, temos de reflectir. Vergonhosamente, sobretudo depois do caso Casa Pia e outras instituições onde se detectaram abusos de crianças, continuamos a ter índices quase ceauscescuanos de crianças institucionalizadas: mais de 15.000. O que é tanto mais inaceitável quanto milhares de portugueses querem adoptar crianças, queixando-se de que tribunais e outras autoridades não agilizam os processos.
Em 2005, duas agências privadas de adopção estrangeiras foram autorizadas a actuar em Portugal, dias antes do actual Governo tomar posse e sem que responsáveis da Comissão de Nacional da Protecção de Crianças e Jovens em Risco tivessem sido previamente informados. Já em 2007 foi licenciada a Agência Francesa de Adopção.
O Estado Português tem a obrigação de garantir o mais cerrado acompanhamento das crianças portuguesas que foram adoptadas por estrangeiros - segundo alguma imprensa, cerca de 160 nos últimos seis anos. Como determina a convenção dos Direitos da Criança da ONU, a adopção internacional só pode ser solução de último recurso e se garantir o superior interesse da criança. Não basta fiar-nos na idoneidade que outros Governos formalmente emprestam a agências privadas. Como a “Arca de Zoe” sordidamente ilustra.

(publicado no COURRIER INTERNACIONAL de 9.11.2007)

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