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3 de dezembro de 2007

Democracia europeia 

Por Vital Moreira

Ninguém pode obviamente esperar que o Tratado de Lisboa suscite um consenso universal. Soberanistas e federalistas, neoliberais e comunistas, para citar só os casos mais óbvios, contestarão os excessos ou insuficiências da reforma da UE, aliás em termos contraditórios. Todavia, o mais improvável argumento contra o novo tratado era talvez o de que ele reduz a vertente democrática das instituições europeias. Ora, é isso justamente o que António Barreto argumenta numa recente crónica no PÚBLICO, considerando que o tratado constitui "um dos mais potentes recuos da democracia na Europa". Importa analisar este inesperado ponto de vista.
O argumento é o seguinte, por extenso: "Sob a aparência de um melhoramento, concretizado em competências marginais conferidas ao Parlamento Europeu, este tratado é um dos mais potentes recuos da democracia na Europa. O Parlamento Europeu, pela sua natureza, estrutura e função, não é uma instituição favorável à democracia. Por outro lado, este tratado relega definitivamente os parlamentos nacionais para a arqueologia política e confere-lhes um estatuto tão relevante para a liberdade como o de uma qualquer direcção-geral dos recursos hídricos." O autor não achou necessário fundamentar estas rotundas objecções. A verdade, porém, é que não há fundamento para elas.
Globalmente consideradas, as alterações introduzidas pelo Tratado de Lisboa quanto às instituições europeias, suas competências e respectivos mecanismos de decisão vão no sentido de maior democraticidade, responsabilidade e transparência da vida política da UE, e não o contrário. Para começar, é acrescentado um novo capítulo no Tratado da UE explicitamente dedicado aos "princípios democráticos" da União, que nada ficam a dever aos de qualquer constituição nacional, estabelecendo os princípios da democracia representativa, bem como, inclusive, da democracia participativa.
No que respeita em especial ao poder legislativo da UE, a generalidade das leis passam a ser aprovadas segundo o procedimento da co-decisão, implicando a aprovação cumulativa do Conselho de Ministros, representando os governos dos Estados-membros, e do Parlamento Europeu, representando os cidadãos europeus, o que replica aproximadamente o modelo de decisão federal. A própria ampliação das decisões tomadas por maioria qualificada (dupla maioria, de 55 por cento do número dos Estados-membros e 65 por cento da população) reduz consideravelmente as decisões por unanimidade, método bem pouco democrático, pois confere a cada Estado-membro o poder de veto individual contra todos os outros.
No mesmo sentido vão várias outras alterações, como o carácter público das reuniões do Conselho de Ministros com agenda legislativa, o aumento dos poderes do Parlamento Europeu em todas as vertentes (poderes legislativos, orçamentais e de escrutínio político), o reforço da responsabilidade política da Comissão Europeia perante o Parlamento Europeu, etc. Aliás, não vejo nenhuma razão para desvalorizar nem a legitimidade democrática nem os poderes do Parlamento Europeu. Pelo contrário, os seus novos poderes consubstanciam todos os ingredientes de uma genuína democracia parlamentar a nível da UE.
Também não deve ser desconsiderado o compromisso do novo tratado com a democracia participativa, incluindo a obrigação da Comissão Europeia de proceder a "amplas consultas com as partes interessadas", bem como, sobretudo, o reconhecimento, embora em termos moderados, de um direito de iniciativa popular (incluindo iniciativa legislativa) junto da Comissão Europeia, que esta não poderá rejeitar sem adequada justificação. É ainda no contexto da democracia participativa que deve ser valorizada a instituição do "diálogo social" a nível comunitário, articulando as instituições europeias e os "parceiros sociais" ("conferência social tripartida").
Por outro lado, não se pode sufragar a ideia de que o Tratado de Lisboa ignora os parlamentos nacionais. Ao invés, pela primeira vez, eles passam a ser expressamente inseridos no sistema político da UE. Há um novo preceito no tratado da UE especificamente dedicado ao papel dos parlamentos nacionais, bem como um protocolo anexo ao tratado - com o mesmo valor deste - que desenvolve os mecanismos de intervenção dos parlamentos nacionais nos procedimentos comunitários, incluindo a sua participação nas "convenções" a instituir para proceder a futuras revisões dos tratados da UE (sem prejuízo da aprovação parlamentar destas no final do processo, como passo da sua ratificação).
A mais importante das novas competências dos parlamentos nacionais consiste na supervisão do princípio da subsidiariedade, podendo contestar iniciativas comunitárias que considerem violadoras desse princípio, obrigando a Comissão a reavaliar as suas iniciativas, se o número de parlamentos nacionais que tiverem suscitado objecções atingir uma número relevante (1/3 ou 1/4, conforme os casos). Do mesmo modo, basta a oposição de qualquer parlamento nacional para impedir a adopção de uma "cláusula passerelle" pelo Conselho Europeu, tendente a substituir votações por unanimidade por votações por maioria qualificada, ou procedimentos legislativos especiais pelo procedimento legislativo ordinário.
O mínimo que se pode dizer, portanto, é que os parlamentos nacionais foram reconhecidos como partes interessadas no funcionamento da UE e nos procedimentos comunitários, sendo essa uma das grandes inovações do Tratado de Lisboa.
É evidente que as normas e instituições não são tudo e que a democracia europeia depende da existência e do bom funcionamento de partidos políticos europeus, de grupos de interesse organizados a nível europeu, de uma opinião pública europeia, etc. Todavia, isso pouco depende dos tratados; e na medida em que depende, o Tratado de Lisboa é insusceptível de ser acusado de promover qualquer recuo em relação à situação presente. Antes pelo contrário.

(Público, 3ª feira, 27 de Novembro de 2007)

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