8 de dezembro de 2007
Do bom governo municipal
Por Vital Moreira
Como era de esperar, a reforma do sistema de governo municipal (e das freguesias) está a gerar acesa polémica no seguimento do anunciado acordo PS-PSD, cujas linhas principais vieram a público. Todavia, nem as críticas são todas pertinentes, nem os problemas se resumem à questão da representatividade das câmaras municipais.
Tanto quanto se sabe, o futuro sistema de governo municipal - que assentará numa única eleição, para a assembleia municipal, deixando de haver eleição separada da câmara municipal e sendo presidente desta o primeiro nome da lista mais votada para a assembleia - consiste numa adaptação do regime já hoje vigente nas freguesias, embora com várias divergências, nomeadamente a garantia de maioria absoluta no executivo para o partido vencedor das eleições para a assembleia, mesmo que tenha ganho com maioria relativa (porém, sob condição de "passagem" do executivo municipal na assembleia, o que pode obrigar a coligações).
Não se trata, portanto, nem de um sistema de governo presidencialista - pois o presidente não é eleito separadamente nem a sua subsistência é independente de votações da assembleia (estando prevista a possibilidade de rejeição do seu "governo") - nem de um regime de assembleia, pois o executivo municipal não é eleito pela assembleia municipal. Estamos perante um regime híbrido, a que a presença obrigatória de membros da oposição no executivo municipal confere traços de uma verdadeira "salgalhada institucional".
Não sendo formalmente um regime presidencialista, seguro é, porém, que o novo sistema vai tornar as eleições para a assembleia municipal em eleição do presidente da câmara municipal - como já hoje sucede nas freguesias -, consumando o processo de presidencialização e de pessoalização do governo autárquico e reforçando a tendência para a sua bipolarização política (embora a manutenção de vereadores dos partidos minoritários possa atenuar essa tendência). Com a proeminência política da eleição do presidente vem necessariamente a secundarização da eleição da assembleia.
Não creio que haja alguma inconstitucionalidade - como já se argumentou - no facto de as câmaras municipais deixarem de reflectir a representação proporcional das várias forças políticas, assegurando sempre uma maioria ao partido vencedor, mesmo que tenha ganho as eleições municipais sem maioria absoluta. Dado que os executivos municipais deixam de ser directamente eleitos, não se impõe nenhuma representação (proporcional ou não) de todos os partidos. Já assim é hoje nas juntas de freguesia - compostas pelo presidente da junta, "directamente" eleito, e por vogais eleitos pela assembleia de freguesia, sob proposta daquele (que pertencerão ao mesmo partido, se ele tiver maioria absoluta na assembleia) -, sem que se tenha suscitado qualquer problema quanto a isso.
Pelo contrário, não sendo agora a câmara municipal um órgão representativo, a inclusão de representantes dos partidos da oposição é que não apresenta nenhuma justificação, nem lógica sistémica, abrindo lugar para equívocos sobre a filosofia do novo sistema de governo municipal. Essa solução vai conservar um dos principais defeitos do sistema vigente, que é a de "ter a oposição dentro do governo", com isso desvalorizando decididamente a assembleia municipal, como hoje sucede. Num sistema democrático - seja ele presidencialista ou parlamentar, ou inominado - a oposição deve estar na assembleia e não no executivo. Por isso, ao contrário da crítica dominante, a principal censura a fazer à solução acordada não está na falta de respeito pela proporcionalidade na câmara municipal, mas sim na continuidade da coabitação forçada entre maioria e oposição dentro da mesma.
Tendo-se optado pelo sistema de eleição dois-em-um (elegendo simultaneamente a assembleia e o presidente do executivo), então mais valeria universalizar o regime actualmente vigente para as freguesias. De duas, uma: ou o partido vencedor das eleições tem maioria absoluta na assembleia, e então o presidente consegue fazer eleger um executivo homogéneo; ou não tem, e então deve fazer os acordos necessários com um ou mais partidos minoritários. A solução agora adoptada, em que garante à partida uma maioria no executivo ao partido vencedor, mesmo que não tenha maioria na assembleia, assegurando simultaneamente a presença dos partidos minoritários no próprio executivo, é que não se recomenda em termos de racionalidade democrática, desde logo em termos de separação de poderes entre órgão representativo e órgão executivo e de separação entre o governo e a oposição.
Há outros problemas de natureza política (e em alguns casos, constitucional), cuja solução o desconhecimento do teor do acordo interpartidário não permite equacionar, como, por exemplo, as relações entre o executivo e a assembleia, a substituibilidade do presidente em caso de vagatura do cargo, o modo de selecção dos representantes dos partidos minoritários no executivo, etc.
O principal problema respeita à responsabilidade do executivo perante a assembleia, aliás constitucionalmente imposta. Deixando de haver legitimidade eleitoral própria da câmara municipal (salvo do presidente), como se dá a sua "investidura" perante a assembleia? Pela eventual votação do "programa de governo", como sucede com o Governo da República? E qual será a maioria de rejeição: maioria simples, maioria absoluta (como sucede com o governo da República) ou maioria qualificada, como constava numa inaceitável proposta do PS, há alguns anos? Por outro lado, haverá possibilidade de aprovação de moções de censura, como parece incontornável? E qual será a consequência da sua aprovação: remodelação e relegitimação da câmara ou a destituição desta e novas eleições?
Todas estas questões carecem de resposta. Além de constitucionalmente viável, uma reforma do governo autárquico deve ser politicamente convincente, já que não pode ser consensual.
(Público, 3ª feira, 4 de Dezembro de 2007)
Como era de esperar, a reforma do sistema de governo municipal (e das freguesias) está a gerar acesa polémica no seguimento do anunciado acordo PS-PSD, cujas linhas principais vieram a público. Todavia, nem as críticas são todas pertinentes, nem os problemas se resumem à questão da representatividade das câmaras municipais.
Tanto quanto se sabe, o futuro sistema de governo municipal - que assentará numa única eleição, para a assembleia municipal, deixando de haver eleição separada da câmara municipal e sendo presidente desta o primeiro nome da lista mais votada para a assembleia - consiste numa adaptação do regime já hoje vigente nas freguesias, embora com várias divergências, nomeadamente a garantia de maioria absoluta no executivo para o partido vencedor das eleições para a assembleia, mesmo que tenha ganho com maioria relativa (porém, sob condição de "passagem" do executivo municipal na assembleia, o que pode obrigar a coligações).
Não se trata, portanto, nem de um sistema de governo presidencialista - pois o presidente não é eleito separadamente nem a sua subsistência é independente de votações da assembleia (estando prevista a possibilidade de rejeição do seu "governo") - nem de um regime de assembleia, pois o executivo municipal não é eleito pela assembleia municipal. Estamos perante um regime híbrido, a que a presença obrigatória de membros da oposição no executivo municipal confere traços de uma verdadeira "salgalhada institucional".
Não sendo formalmente um regime presidencialista, seguro é, porém, que o novo sistema vai tornar as eleições para a assembleia municipal em eleição do presidente da câmara municipal - como já hoje sucede nas freguesias -, consumando o processo de presidencialização e de pessoalização do governo autárquico e reforçando a tendência para a sua bipolarização política (embora a manutenção de vereadores dos partidos minoritários possa atenuar essa tendência). Com a proeminência política da eleição do presidente vem necessariamente a secundarização da eleição da assembleia.
Não creio que haja alguma inconstitucionalidade - como já se argumentou - no facto de as câmaras municipais deixarem de reflectir a representação proporcional das várias forças políticas, assegurando sempre uma maioria ao partido vencedor, mesmo que tenha ganho as eleições municipais sem maioria absoluta. Dado que os executivos municipais deixam de ser directamente eleitos, não se impõe nenhuma representação (proporcional ou não) de todos os partidos. Já assim é hoje nas juntas de freguesia - compostas pelo presidente da junta, "directamente" eleito, e por vogais eleitos pela assembleia de freguesia, sob proposta daquele (que pertencerão ao mesmo partido, se ele tiver maioria absoluta na assembleia) -, sem que se tenha suscitado qualquer problema quanto a isso.
Pelo contrário, não sendo agora a câmara municipal um órgão representativo, a inclusão de representantes dos partidos da oposição é que não apresenta nenhuma justificação, nem lógica sistémica, abrindo lugar para equívocos sobre a filosofia do novo sistema de governo municipal. Essa solução vai conservar um dos principais defeitos do sistema vigente, que é a de "ter a oposição dentro do governo", com isso desvalorizando decididamente a assembleia municipal, como hoje sucede. Num sistema democrático - seja ele presidencialista ou parlamentar, ou inominado - a oposição deve estar na assembleia e não no executivo. Por isso, ao contrário da crítica dominante, a principal censura a fazer à solução acordada não está na falta de respeito pela proporcionalidade na câmara municipal, mas sim na continuidade da coabitação forçada entre maioria e oposição dentro da mesma.
Tendo-se optado pelo sistema de eleição dois-em-um (elegendo simultaneamente a assembleia e o presidente do executivo), então mais valeria universalizar o regime actualmente vigente para as freguesias. De duas, uma: ou o partido vencedor das eleições tem maioria absoluta na assembleia, e então o presidente consegue fazer eleger um executivo homogéneo; ou não tem, e então deve fazer os acordos necessários com um ou mais partidos minoritários. A solução agora adoptada, em que garante à partida uma maioria no executivo ao partido vencedor, mesmo que não tenha maioria na assembleia, assegurando simultaneamente a presença dos partidos minoritários no próprio executivo, é que não se recomenda em termos de racionalidade democrática, desde logo em termos de separação de poderes entre órgão representativo e órgão executivo e de separação entre o governo e a oposição.
Há outros problemas de natureza política (e em alguns casos, constitucional), cuja solução o desconhecimento do teor do acordo interpartidário não permite equacionar, como, por exemplo, as relações entre o executivo e a assembleia, a substituibilidade do presidente em caso de vagatura do cargo, o modo de selecção dos representantes dos partidos minoritários no executivo, etc.
O principal problema respeita à responsabilidade do executivo perante a assembleia, aliás constitucionalmente imposta. Deixando de haver legitimidade eleitoral própria da câmara municipal (salvo do presidente), como se dá a sua "investidura" perante a assembleia? Pela eventual votação do "programa de governo", como sucede com o Governo da República? E qual será a maioria de rejeição: maioria simples, maioria absoluta (como sucede com o governo da República) ou maioria qualificada, como constava numa inaceitável proposta do PS, há alguns anos? Por outro lado, haverá possibilidade de aprovação de moções de censura, como parece incontornável? E qual será a consequência da sua aprovação: remodelação e relegitimação da câmara ou a destituição desta e novas eleições?
Todas estas questões carecem de resposta. Além de constitucionalmente viável, uma reforma do governo autárquico deve ser politicamente convincente, já que não pode ser consensual.
(Público, 3ª feira, 4 de Dezembro de 2007)