21 de dezembro de 2007
Kosovo: teste decisivo à UE
por Ana Gomes
A questão do estatuto final do Kosovo representa o maior desafio à eficácia da acção externa da União Europeia (UE) desde as divisões causadas pela invasão do Iraque em 2003. Não deixa de ser irónico que, pela enésima vez, sejam os Balcãs o calcanhar de Aquiles da Europa. Mas a UE pode agora ultrapassá-lo para sempre.
Ao fim de 18 meses de negociações intensas, acompanhadas de perto por uma troika em que a União Europeia agiu em pé de igualdade com a Rússia e com os EUA, não há acordo possível entre sérvios e kosovares: os primeiros insistem em querer exercer soberania sobre o Kosovo; os segundos só aceitam a independência.
Ora a independência é inevitável. Desde a campanha militar assassina que as forças militares de Milosevic levaram a cabo no Kosovo em 1999 que se tornou impossível voltar ao status quo ante. Se acrescentarmos o direito à auto-determinação dos povos, inscrito na Carta das Nações Unidas, e o potencial desestabilizador da presente situação de ambiguidade, só resta uma opção: reconhecer a independência (embora condicional e limitada) ao Kosovo.
Os argumentos contra a independência podem ser desmontados com alguma facilidade. O primeiro e mais comum, é o medo de estabelecer precedentes. A Rússia usa regularmente os seus protectorados da Abkázia, da Ossétia do Sul (ambas parte integrante da Geórgia) e da Transnístria (na Moldávia) para ameaçar uma proliferação de estados independentes. A verdade é que o reconhecimento do Kosovo não estabelece nenhum precedente, já que reflecte uma série de circunstâncias particulares que não são válidas para outras regiões. Essas circunstâncias estão reflectidas na resolução 1244 do Conselho de Segurança de 1999, em que já se fala da importância de "determinar o estatuto futuro do Kosovo" - passagem que deixa entreaberta uma porta jurídica para a independência. Quanto à Rússia, o que é que tememos? Que Moscovo acicate as tensões na Geórgia e na Moldávia? Que trate as três regiões acima referidas como entidades independentes? Que desestabilize a sua vizinhança para cimentar a sua influência? Tudo isto já acontece! E, acima de tudo, a Rússia tem o hábito de tirar partido de interlocutores que demonstrem fraqueza e indecisão...
O segundo argumento é mais sofisticado. Será que reconhecer o Kosovo não vai desestabilizar a Sérvia e pôr em perigo a estabilidade dos Balcãs? A resposta é que tudo vai depender da comunidade internacional e, especialmente, da UE. Se a UE se mantiver firme e unida na defesa do famoso plano Ahttisari - que prevê uma 'soberania controlada' para o Kosovo - e investir os recursos humanos, financeiros, e políticos necessários para demonstrar que o futuro da região - de toda a região! - é dentro da UE, as forças democráticas e pró-europeias da Sérvia podem utilizar a inevitabilidade deste processo, e a luz europeia ao fundo do túnel, como armas contra o nacionalismo bacoco e perigoso dos seus adversários. Caso contrário, caso a União dê sinais ambíguos em relação ao futuro europeu dos Balcãs Ocidentais, aí sim, existe o risco de incentivar aqueles que defendem um caminho alternativo para a Sérvia: a Grande Sérvia, ou seja, o passado.
O teste decisivo para a UE consiste precisamente em demonstrar de forma convincente que é capaz de se manter unida para distribuir os incentivos e a dissuasão necessários: para os kosovares, tanto a substituição da presença da ONU por uma da UE, como o envio imediato de 1800 efectivos numa missão civil da Política Europeia de Segurança e Defesa (PESD), deve indicar que - mesmo se o Kosovo se tornar independente - a UE (e a NATO) vão continuar a agir como garantes da estabilidade da região e da segurança das minorias; para os sérvios, é preciso manter a condicionalidade do Tibunal Penal de Haia, mas aplicando-a de forma flexível ao processo de pré-adesão europeia em que se encontra a Sérvia.
As conclusões do último Conselho Europeu da Presidência portuguesa da UE já vão na direcção certa e dão como dado adquirido o envio iminente da importantíssima missão da PESD (a maior e mais complexa missão civil da história da UE).
Tudo indica que o momento da verdade virá durante a Presidência eslovena quando o Kosovo decidir declarar a independência unilateralmente. Só espero que os eslovenos consigam convencer os seus colegas europeus que nos Balcãs a indecisão, a desunião e a fraqueza - como as guerras dos anos 90 demonstraram - se pagam caro e com sangue.
(publicado no COURRIER INTERNACIONAL em 21.12.07)
A questão do estatuto final do Kosovo representa o maior desafio à eficácia da acção externa da União Europeia (UE) desde as divisões causadas pela invasão do Iraque em 2003. Não deixa de ser irónico que, pela enésima vez, sejam os Balcãs o calcanhar de Aquiles da Europa. Mas a UE pode agora ultrapassá-lo para sempre.
Ao fim de 18 meses de negociações intensas, acompanhadas de perto por uma troika em que a União Europeia agiu em pé de igualdade com a Rússia e com os EUA, não há acordo possível entre sérvios e kosovares: os primeiros insistem em querer exercer soberania sobre o Kosovo; os segundos só aceitam a independência.
Ora a independência é inevitável. Desde a campanha militar assassina que as forças militares de Milosevic levaram a cabo no Kosovo em 1999 que se tornou impossível voltar ao status quo ante. Se acrescentarmos o direito à auto-determinação dos povos, inscrito na Carta das Nações Unidas, e o potencial desestabilizador da presente situação de ambiguidade, só resta uma opção: reconhecer a independência (embora condicional e limitada) ao Kosovo.
Os argumentos contra a independência podem ser desmontados com alguma facilidade. O primeiro e mais comum, é o medo de estabelecer precedentes. A Rússia usa regularmente os seus protectorados da Abkázia, da Ossétia do Sul (ambas parte integrante da Geórgia) e da Transnístria (na Moldávia) para ameaçar uma proliferação de estados independentes. A verdade é que o reconhecimento do Kosovo não estabelece nenhum precedente, já que reflecte uma série de circunstâncias particulares que não são válidas para outras regiões. Essas circunstâncias estão reflectidas na resolução 1244 do Conselho de Segurança de 1999, em que já se fala da importância de "determinar o estatuto futuro do Kosovo" - passagem que deixa entreaberta uma porta jurídica para a independência. Quanto à Rússia, o que é que tememos? Que Moscovo acicate as tensões na Geórgia e na Moldávia? Que trate as três regiões acima referidas como entidades independentes? Que desestabilize a sua vizinhança para cimentar a sua influência? Tudo isto já acontece! E, acima de tudo, a Rússia tem o hábito de tirar partido de interlocutores que demonstrem fraqueza e indecisão...
O segundo argumento é mais sofisticado. Será que reconhecer o Kosovo não vai desestabilizar a Sérvia e pôr em perigo a estabilidade dos Balcãs? A resposta é que tudo vai depender da comunidade internacional e, especialmente, da UE. Se a UE se mantiver firme e unida na defesa do famoso plano Ahttisari - que prevê uma 'soberania controlada' para o Kosovo - e investir os recursos humanos, financeiros, e políticos necessários para demonstrar que o futuro da região - de toda a região! - é dentro da UE, as forças democráticas e pró-europeias da Sérvia podem utilizar a inevitabilidade deste processo, e a luz europeia ao fundo do túnel, como armas contra o nacionalismo bacoco e perigoso dos seus adversários. Caso contrário, caso a União dê sinais ambíguos em relação ao futuro europeu dos Balcãs Ocidentais, aí sim, existe o risco de incentivar aqueles que defendem um caminho alternativo para a Sérvia: a Grande Sérvia, ou seja, o passado.
O teste decisivo para a UE consiste precisamente em demonstrar de forma convincente que é capaz de se manter unida para distribuir os incentivos e a dissuasão necessários: para os kosovares, tanto a substituição da presença da ONU por uma da UE, como o envio imediato de 1800 efectivos numa missão civil da Política Europeia de Segurança e Defesa (PESD), deve indicar que - mesmo se o Kosovo se tornar independente - a UE (e a NATO) vão continuar a agir como garantes da estabilidade da região e da segurança das minorias; para os sérvios, é preciso manter a condicionalidade do Tibunal Penal de Haia, mas aplicando-a de forma flexível ao processo de pré-adesão europeia em que se encontra a Sérvia.
As conclusões do último Conselho Europeu da Presidência portuguesa da UE já vão na direcção certa e dão como dado adquirido o envio iminente da importantíssima missão da PESD (a maior e mais complexa missão civil da história da UE).
Tudo indica que o momento da verdade virá durante a Presidência eslovena quando o Kosovo decidir declarar a independência unilateralmente. Só espero que os eslovenos consigam convencer os seus colegas europeus que nos Balcãs a indecisão, a desunião e a fraqueza - como as guerras dos anos 90 demonstraram - se pagam caro e com sangue.
(publicado no COURRIER INTERNACIONAL em 21.12.07)