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13 de dezembro de 2007

A nova "constituição social" da UE 

Por Vital Moreira

Não precisa de ser exaltada a importância do Tratado de Lisboa. Por um lado, ele supera o impasse resultante da rejeição do Tratado Constitucional de 2004 e resolve a questão institucional da UE, que vem desde muito antes, permitindo à União libertar as suas energias e os seus recursos para as políticas que tem de definir e para as tarefas que tem de desenvolver. Por outro lado, o novo quadro institucional confere à União instrumentos mais favoráveis para dar conta da sua missão, no sentido de mais integração económica, mais desenvolvimento, mais justiça e segurança, mais coesão territorial e social.

Seria irrealista esperar um consenso universal sobre o novo tratado. Os adversários da integração europeia em nome da soberania nacional verão nele mais um passo no sentido da "união cada vez mais estreita". Os partidários de mais integração denunciarão mais uma oportunidade perdida de avançar para formas genuinamente federais, tanto mais que nesse aspecto existe um efectivo recuo, desde logo simbólico, em relação ao frustrado Tratado Constitucional. Por sua vez, a direita liberal censurará a garantia do "modelo social europeu" e as restrições ao império do mercado, enquanto a esquerda radical, ao invés, condenará o excesso de mercado e as imposições do "mercado único". Porventura será sempre assim, variações sobre clivagens conhecidas e argumentos reiterados.

Mas se para alguns sectores políticos existem suficientes motivos de oposição ao tratado (do seu ponto de vista, bem entendido), o que não se justifica é condenar o novo tratado por motivos que não encontram nele nenhum fundamento. Em artigo anterior, já mostrei a absoluta improcedência do argumento segundo o qual o tratado constituiria um "recuo" em termos de democracia europeia, provando que com ele sai reforçada tanto a democracia na arquitectura institucional da UE como a participação das parlamentos nacionais na vida institucional da UE, incluindo no escrutínio do respeito pelo princípio da subsidiariedade. Importa também contrariar outra das críticas não menos injustificadas, nomeadamente a de que o novo tratado privilegia o mercado e a concorrência e desvaloriza o modelo social europeu e a coesão social.
Tal argumento é inteiramente desprovido de substância. Pelo contrário, um dos progressos do novo tratado consiste justamente num melhor compromisso entre a economia de mercado, a concorrência e o mercado interno, por um lado, e o modelo social europeu, por outro lado. O facto de um dos motivos para a rejeição do Tratado Constitucional em França em 2005 ter sido o argumento social - mesmo que já na altura sem fundamento - levou o Tratado Reformador a ser mais cuidadoso e mais exigente nessa matéria.

A primeira grande alteração em relação ao frustrado tratado de 2004 está em que, ao contrário deste - que era um tratado refundador e que, portanto, incorporava e consolidava todo o direito "constitucional" anterior, incluindo a ordem económica do Tratado de Roma, de 1957, cujo objectivo exclusivo era a criação de um "mercado comum" -, o novo tratado, sendo um simples tratado de revisão dos instrumentos anteriores - que permanecem com a sua independência, ainda que alterados -, não os incorpora na parte não modificada, pelo que não tem de reassumir e relegitimar a ordem económica originária da Comunidade Económica Europeia. O que está agora em causa é um conjunto de modificações, e não todo o acervo do direito "primário" da UE.

Em segundo lugar, o novo tratado recupera todos os aperfeiçoamentos do Tratado Constitucional em matéria social, designadamente a noção de "economia social de mercado", os direitos sociais da Carta de Direitos Fundamentais da UE, a "cláusula social geral", a "cláusula do diálogo social". A inovadora noção de "economia social de mercado" importa obviamente uma explícita qualificação da economia de mercado, autorizando as medidas necessárias a conformar esta com as missões do "Estado social". A Carta de Direitos Fundamentais da UE, aprovada em 2000, passa a ter força jurídica, incluindo quanto aos direitos sociais nela consagrados, e não são poucos. A cláusula social geral confere força transversal, em todas as políticas da UE, à dimensão social (elevado nível de emprego, protecção social adequada, luta contra a exclusão social, elevado nível de protecção na educação, na formação e na protecção da saúde humana). A cláusula do diálogo social obriga a União a reconhecer e a promover o papel dos parceiros sociais e a facilitar o diálogo entre eles, incluindo o reconhecimento da "cimeira social tripartida para o crescimento e o emprego".

Em terceiro lugar, o novo tratado acrescenta alguns progressos nesta dimensão social, de onde cumpre realçar o protocolo adicional sobre os "serviços de interesse geral" (SIG) - e já não apenas dos "serviços de interesse económico geral" (SIEG) -, conferindo uma base jurídica reforçada para a salvaguarda dos serviços essenciais ao "modelo social europeu", desde a educação à energia, desde os cuidados de saúde aos transportes colectivos. Não é por acaso que, ainda antes da assinatura formal do tratado, a Comissão Europeia tenha aproveitado, há dias, o balanço da construção do "mercado único" para emitir uma nova reflexão sobre a defesa e promoção dos "serviços de interesse geral".

Em suma, a "constituição social" europeia que decorre do novo Tratado de Lisboa não só salvaguarda todo o "acquis" social anterior, como também procede a um indesmentível reforço do "modelo social europeu", nas suas diversas componentes (coesão social, direitos sociais, serviços públicos, diálogo social, etc.). Não é por aí, pelo contrário, que se podem encontrar argumentos contra ele.

(Público, 3ª feira, 11 de Dezembro de 2007)

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