31 de janeiro de 2008
Ainda o sistema de governo autárquico
Por Vital Moreira
Sendo insuspeito de apoiar a reforma do sistema de governo autárquico acordado entre o PS e o PSD, que desde há muito critico, entendo, porém, que o que há de censurável no projecto em causa não é nenhuma violação do princípio da proporcionalidade na composição das câmaras municipais - que não tem cabimento em relação a órgãos executivos -, mas sim o desrespeito do princípio da maioria, segundo o qual deve ser o partido ou coligação vencedor/a das eleições a governar, desde que tenha a maioria na assembleia, ou pelo menos não tenha uma maioria de oposição contra.
Não existe nenhum princípio constitucional nem nenhum cânone democrático que imponha a composição proporcional de órgãos executivos (salvo se forem directamente eleitos). As câmaras municipais tinham composição proporcional por serem directamente eleitas, o que deixará de suceder (nada obstando a essa mudança). Mas o mesmo não ocorria com as juntas de freguesia, sem que alguém alguma vez tivesse sustentado a inconstitucionalidade ou a impropriedade democrática dessa solução. E o mesmo se diga das juntas regionais previstas na lei-quadro das regiões administrativas.
O que não faz sentido é, pelo contrário, a coabitação forçada, mesmo que não seja proporcional, entre governo e oposição no executivo municipal, que é insólita no direito comparado, e que aliás nunca valeu entre nós no caso das freguesias, sem nenhuma acusação de violação de algum princípio democrático. A lógica democrática reclama a separação entre governo e oposição. Fora o caso dos sistemas de governo presidencialistas - que supõem a eleição separada do chefe do governo e a independência entre o poder executivo e o poder deliberativo -, o governo deve caber ao partido ou coligação maioritário/a na assembleia.
De resto, a manutenção da presença obrigatória da oposição nas câmaras municipais, mesmo em minoria (como agora se propõe), é politicamente incongruente e contraproducente. Primeiro, cria uma diferença de regime entre os municípios e as freguesas -- visto que nas juntas de freguesia continua excluída a representação da oposição --, introduzindo no governo autárquico uma assimetria sistémica que nada justifica. Segundo, a presença da oposição nas câmaras municipais apenas serve para perpetuar a secundarização do papel político das assembleias municipais e o défice de responsabilidade política daquelas perante estas, na medida em que a dialéctica governo-oposição é transferida para dentro da câmara, em vez de estar sediada na assembleia representativa, como devia.
O lugar da oposição é nas assembleias, não nos executivos autárquicos, sendo oportunista e demagógico o argumento de que só é possível fazer oposição de dentro do governo. Se se quer valorizar o papel da oposição no sistema de governo autárquico, como se impõe, o que há a fazer é reduzir o presidencialismo autárquico e aumentar a responsabilidade do executivo perante a assembleia, bem como reforçar os direitos da oposição e os meios de escrutínio da assembleia autárquica, como sucede por esse mundo fora, incluindo, por exemplo, a criação de uma comissão permanente, composta por representantes de todas as forças políticas naquela representadas, dotada de poderes especiais de informação e controlo.
Descartada a despropositada questão da proporcionalidade na composição das câmaras municipais, o problema democrático e constitucional do projecto PS/PSD está antes no desprezo do princípio da maioria e do princípio da responsabilidade política na constituição e na sustentação das juntas e câmaras municipais, na medida em que permite governos minoritários contra maiorias de oposição na assembleia.
De facto, segundo o referido projecto, as juntas ou as câmaras propostas pelos respectivos presidentes (que são automaticamente o primeiro nome da lista mais votada para a assembleia) não precisam de ser votadas na assembleia (como hoje sucede com a junta de freguesia), só podendo ser rejeitadas por uma maioria de 3/5 na assembleia, o que lhes permite "passar" mesmo que tenham 59,9 por cento de votos contra. Além disso, o projecto não prevê a possibilidade de destituição dos executivos autárquicos por moções de censura, o que constitui uma notória violação dos mais elementares princípios da responsabilidade democrática dos órgãos executivos perante as assembleias representativas de que dependem. Ora, não sendo o executivo directamente eleito (salvo o presidente), a sua legitimidade política só pode derivar da assembleia autárquica. Mesmo que se entendesse que o presidente do órgão executivo não deve depender dos votos na assembleia, por ser "directamente" eleito, já o mesmo não se aplica aos demais membros desses órgãos colegiais.
A própria Constituição estabelece expressamente a responsabilidade dos órgãos executivos autárquicos perante os órgãos deliberativos, prevendo igualmente a possibilidade de "destituição" daqueles por estes. Deixando de haver eleição directa da câmara municipal, segue-se a aplicação dos padrões comuns da legitimidade e da responsabilidade política perante a assembleia, de acordo com o princípio da maioria. Não é admissível - como se prevê no projecto - a imposição de executivos monopartidários politicamente minoritários contra uma maioria da oposição na assembleia.
Mesmo que se não considere obrigatória a eleição dos demais membros das câmaras municipais e das juntas de freguesia pelas assembleias respectivas, sob proposta do presidente daquelas - como hoje sucede nas juntas de freguesia -, o mínimo que se tem de exigir é que as moções de rejeição e as moções de censura sejam eficazes se aprovadas por maioria absoluta, como sucede no sistema de governo nacional. O que não é aceitável é que os executivos autárquicos possam ser constituídos, ou manter-se, tendo contra si uma maioria absoluta de votos na assembleia de que dependem...
(Público, terça-feira, 29 de Janeiro de 2007)
Sendo insuspeito de apoiar a reforma do sistema de governo autárquico acordado entre o PS e o PSD, que desde há muito critico, entendo, porém, que o que há de censurável no projecto em causa não é nenhuma violação do princípio da proporcionalidade na composição das câmaras municipais - que não tem cabimento em relação a órgãos executivos -, mas sim o desrespeito do princípio da maioria, segundo o qual deve ser o partido ou coligação vencedor/a das eleições a governar, desde que tenha a maioria na assembleia, ou pelo menos não tenha uma maioria de oposição contra.
Não existe nenhum princípio constitucional nem nenhum cânone democrático que imponha a composição proporcional de órgãos executivos (salvo se forem directamente eleitos). As câmaras municipais tinham composição proporcional por serem directamente eleitas, o que deixará de suceder (nada obstando a essa mudança). Mas o mesmo não ocorria com as juntas de freguesia, sem que alguém alguma vez tivesse sustentado a inconstitucionalidade ou a impropriedade democrática dessa solução. E o mesmo se diga das juntas regionais previstas na lei-quadro das regiões administrativas.
O que não faz sentido é, pelo contrário, a coabitação forçada, mesmo que não seja proporcional, entre governo e oposição no executivo municipal, que é insólita no direito comparado, e que aliás nunca valeu entre nós no caso das freguesias, sem nenhuma acusação de violação de algum princípio democrático. A lógica democrática reclama a separação entre governo e oposição. Fora o caso dos sistemas de governo presidencialistas - que supõem a eleição separada do chefe do governo e a independência entre o poder executivo e o poder deliberativo -, o governo deve caber ao partido ou coligação maioritário/a na assembleia.
De resto, a manutenção da presença obrigatória da oposição nas câmaras municipais, mesmo em minoria (como agora se propõe), é politicamente incongruente e contraproducente. Primeiro, cria uma diferença de regime entre os municípios e as freguesas -- visto que nas juntas de freguesia continua excluída a representação da oposição --, introduzindo no governo autárquico uma assimetria sistémica que nada justifica. Segundo, a presença da oposição nas câmaras municipais apenas serve para perpetuar a secundarização do papel político das assembleias municipais e o défice de responsabilidade política daquelas perante estas, na medida em que a dialéctica governo-oposição é transferida para dentro da câmara, em vez de estar sediada na assembleia representativa, como devia.
O lugar da oposição é nas assembleias, não nos executivos autárquicos, sendo oportunista e demagógico o argumento de que só é possível fazer oposição de dentro do governo. Se se quer valorizar o papel da oposição no sistema de governo autárquico, como se impõe, o que há a fazer é reduzir o presidencialismo autárquico e aumentar a responsabilidade do executivo perante a assembleia, bem como reforçar os direitos da oposição e os meios de escrutínio da assembleia autárquica, como sucede por esse mundo fora, incluindo, por exemplo, a criação de uma comissão permanente, composta por representantes de todas as forças políticas naquela representadas, dotada de poderes especiais de informação e controlo.
Descartada a despropositada questão da proporcionalidade na composição das câmaras municipais, o problema democrático e constitucional do projecto PS/PSD está antes no desprezo do princípio da maioria e do princípio da responsabilidade política na constituição e na sustentação das juntas e câmaras municipais, na medida em que permite governos minoritários contra maiorias de oposição na assembleia.
De facto, segundo o referido projecto, as juntas ou as câmaras propostas pelos respectivos presidentes (que são automaticamente o primeiro nome da lista mais votada para a assembleia) não precisam de ser votadas na assembleia (como hoje sucede com a junta de freguesia), só podendo ser rejeitadas por uma maioria de 3/5 na assembleia, o que lhes permite "passar" mesmo que tenham 59,9 por cento de votos contra. Além disso, o projecto não prevê a possibilidade de destituição dos executivos autárquicos por moções de censura, o que constitui uma notória violação dos mais elementares princípios da responsabilidade democrática dos órgãos executivos perante as assembleias representativas de que dependem. Ora, não sendo o executivo directamente eleito (salvo o presidente), a sua legitimidade política só pode derivar da assembleia autárquica. Mesmo que se entendesse que o presidente do órgão executivo não deve depender dos votos na assembleia, por ser "directamente" eleito, já o mesmo não se aplica aos demais membros desses órgãos colegiais.
A própria Constituição estabelece expressamente a responsabilidade dos órgãos executivos autárquicos perante os órgãos deliberativos, prevendo igualmente a possibilidade de "destituição" daqueles por estes. Deixando de haver eleição directa da câmara municipal, segue-se a aplicação dos padrões comuns da legitimidade e da responsabilidade política perante a assembleia, de acordo com o princípio da maioria. Não é admissível - como se prevê no projecto - a imposição de executivos monopartidários politicamente minoritários contra uma maioria da oposição na assembleia.
Mesmo que se não considere obrigatória a eleição dos demais membros das câmaras municipais e das juntas de freguesia pelas assembleias respectivas, sob proposta do presidente daquelas - como hoje sucede nas juntas de freguesia -, o mínimo que se tem de exigir é que as moções de rejeição e as moções de censura sejam eficazes se aprovadas por maioria absoluta, como sucede no sistema de governo nacional. O que não é aceitável é que os executivos autárquicos possam ser constituídos, ou manter-se, tendo contra si uma maioria absoluta de votos na assembleia de que dependem...
(Público, terça-feira, 29 de Janeiro de 2007)